12.11.2008

Imagens de Puro Enquanto


Meu próximo romance, "Puro enquanto", já está na editora há algum tempo. Agora é com o pessoal da Annablume, não sei quanto eles levam para resolver a papelada e mandar para a gráfica... Eu queria lançar ainda este ano, mas no momento, o máximo que posso fazer é mostrar algumas imagens para vocês. Estão no meu novíssimo Flickr, é só clicar.

Os títulos das pinturas se referem sempre a um trecho do livro. É um bom jeito de obrigar os malditos especialistas a considerarem o contexto que eu estou criando, em vez do contexto deprimente da arte contemporânea, onde a pintura está sempre à beira da morte. Não tenho problemas em admitir que escrevo melhor do que pinto, por outro lado, a tabelinha que estou fazendo entre minha pintura e minhas palavras é afinada o bastante para resolver certos impasses da arte contemporânea. Há muitos pintores melhores do que eu, mas os detratores são tão obstinados que nem mesmo a reencarnação de Miró bastaria para tirar a pintura do mal-estar em que se encontra no atual panorama.



Eu quase desisti das artes plásticas, não escondo que me sinto melhor entre escritores do que entre artistas visuais. Felizmente ou infelizmente, entendi que não poderia fugir da briga: ao escrever "Puro enquanto", ficou claro que o livro não funcionaria se eu empregasse apenas a linguagem verbal. O próprio ritmo do livro pedia por algumas interrupções no fluxo de pensamento, intervalos significativos, que só as imagens poderiam criar. Terminado o livro, vi que, tanto quanto meus artigos mais "militantes", ele é uma ótima prova de que a pintura ainda é necessária, impossível de se substituir. Não é imodéstia dizer que emprego as palavras com muito mais radicalidade do que os artistas conceituais, e em "Puro enquanto" isto fica tão evidente quanto o corolário: a linguagem verbal e a linguagem não-verbal se complementam, não podendo uma eclipsar a outra. Mesmo que se vá ao limite da fala ou da escrita, ainda há uma sede pela imagem que a arte conceitual jamais poderá aplacar.

11.24.2008

Enfrentando o vazio

O vazio da Bienal, podemos dizer, é o vazio do interior de uma bolha. Uma bolha que se agigantou no afã de abarcar tudo, de se infiltrar em todo tipo de ação humana. Da mesma maneira que o mercado financeiro entrou em crise pelos excessos neoliberais, a bolha na arte se mostra prestes a estourar devido a um semelhante laissez-faire. Já temos sinais de que uma crise vá influir na outra, de que os preços dos leilões de arte se tornarão mais modestos, e que os colecionadores pensarão melhor antes de patrocinar qualquer capricho. Porém, se refletirmos apenas sobre os aspectos econômicos, a arte continuará a ser mero jogo da elite, flutuando de acordo com a demanda. A tal ponto o problema é complicado que ainda parece incerto se a intenção de Rafael Augustaitiz, ex-estudante de arte que invadiu o pavilhão com quarenta pichadores, seria o de pertencer ao interior da bolha, ou se ele já procura perfurar a membrana e forçar a explosão. Desde os anos 60, quem queira entrar para o alto circuito de arte dificilmente se arrisca a pintar uma tela, podendo ser mais vantajoso, até mesmo financeiramente, realizar uma ação radical do que batalhar com as tintas. A principal diferença entre a arte moderna e a arte que se designa pós-moderna é que a segunda tende a se restringir ao campo expandido, desprezando o campo metafórico que as cores propiciam em uma tela. Até mesmo uma pintura abstrata é considerada ilusória demais para o pensamento que hoje domina, pois as cores criam tensões e variações de profundidade que vão além da mera materialidade. A ilusão passou a ser considerada reacionária, algo que merece ser destruído – assim como se deve destruir qualquer fronteira entre o espaço da vida e o da arte. Explica-se assim o por que de não haver uma única pintura nessa edição da Bienal, onde a destruição da arte acontece mesmo sem a intervenção de pichadores.


Ironicamente, se a pintura não pode mais ser arte, qualquer anúncio de que não é arte nada do que costumamos chamar de arte pode ser considerado uma obra avançada. É o que vemos, por exemplo, em uma instalação onde falsificações de dezenas de obras consagradas se amontoam ao lado de seus pedidos por escrito, sugerindo que seja falso até mesmo o desejo de se ver uma pintura significativa. É na constante frustração de desejos como esse que muitos dos artistas selecionados se engajam. Ao lado dessa beligerante instalação, vemos um enorme painel com o livro “O estrangeiro”, de Camus, onde todas suas palavras são recortadas e dispostas em ordem alfabética. Em entrevista, a artista diz ter escolhido o livro por apreciá-lo, mas não é difícil perceber o quanto há de inveja nessa dissecação e ordenação – na aniquilação ou controle de uma fruição que seria bem mais potente com o livro em sua integridade. Em vez de um livro dilacerante, temos um livro dilacerado, muito aquém do que poderia provocar no leitor.
Do outro lado do pavilhão – começamos pelo último andar da exposição – temos duas das poucas obras que apostam na ilusão. O vídeo de Eija Liisa-Ahtila, que aborda a loucura com uma estranha suavidade, e as instigantes gravuras de Leya Mira Brander, cujo discurso sustenta um otimismo em relação à imagem que quase não se ouve mais. Para quem compreende que obras como essas, ainda que não se valham do mesmo poder retórico, são mais complexas do que a produção tipicamente contemporânea, a proposta de “morte da arte” só pode soar rancorosa. A diplomacia costuma reinar tanto na disposição do espaço quanto nas conversas de vernissage, porém por trás das aparências a briga é feia: os pós-modernos insistem no boicote ao espaço ilusório, ao passo que, contra a corrente, alguns poucos conseguem demonstrar que isso não é possível nem vantajoso. O caráter panorâmico de toda grande coletiva faz com que coabitem o mesmo espaço rivais que se ameaçam de morte. Vazio é quem acredita que esse conflito não acarreta abalos ainda maiores. Nesse contexto, o ataque de Rafael e seu grupo Pixação, consideremo-nos artistas ou vândalos, demonstram muito claramente a tensão que está em jogo.
Desçamos do andar superior para o primeiro piso. Caminhando pela arquitetura modernista de Niemeyer, avistamos o vazio e prosseguimos. Vamos nos lembrando que, desde o urinol de Duchamp, qualquer objeto, situação, informação ou sugestão que se insira em um espaço artístico, pode ser considerado arte. Seja um cachorro doente, seja um aperto de mão, seja um anúncio publicitário, uma aula de geopolítica ou a oferta de um copo d’água. É importante esclarecer que, na maior parte das vezes pueris, esses procedimentos não fazem jus ao legado de Duchamp. O artista francês disse com todas as letras que deveria restringir esses deslocamentos a um número muito reduzido – não tendo ele realizado mais do que vinte ao longo de décadas – pois do contrário perderiam o sentido. Desrespeitando o próprio inventor do jogo, muitos dos artistas selecionados levam o truque ao extremo – não é tão difícil uma vez que se aprende – com conseqüências as mais elitistas.
Há jornalistas cobrindo a Bienal, parte deles contratados para publicação interna. No entanto, há artistas fazendo o mesmo trabalho, sendo o único diferencial o status de sua profissão. A cobertura dos artistas poderia ter a mesma qualidade, o mesmo conteúdo e o mesmo foco que o trabalho dos jornalistas – não é o que vai impresso que os diferencia, assim como a caixa de sabão em pó de Andy Warhol era idêntica à das estantes dos supermercados. O Brillo Box de Warhol exauria-se em si mesmo, mas o procedimento não mudou tanto dos anos 60 para cá. Próxima às catracas da entrada, avistamos uma antiga prensa, trabalhando ruidosamente. A máquina é bonita, antiga, mas não é ela a obra. A proposta do artista é recolher perguntas e respostas de qualquer assunto levantado pelos visitantes e reunir em livretos que são distribuídos aos participantes. Basta ler algumas linhas para se perceber que não há qualquer avanço em relação à Wikipedia. Na verdade, há um recuo, pois a Wikipedia é mais dinâmica, tem acesso mais amplo e não faz de seu idealizador um novo “artista”. A prensa da instalação, por antiga que seja, funciona bem, é o pensamento que está obsoleto: uma obra espaçosa demais, que não reconhece as possibilidades de nosso tempo.
À lógica do deslocamento se alia a um discurso que prega o fim de qualquer separação entre vida e arte – seria essa a proclamada “morte da arte”. Em vez de se produzir campos ilusionistas, passar-se-ia a olhar para a vida como se essa fosse uma obra artística. É por isso que um pichador com quatro anos de estudos na Faculdade de Belas Artes sente que sua transgressão deveria ser reconhecida pelos críticos e historiadores como obra de vanguarda. Se de fato não houver a menor distância entre espaços da vida e da arte, teremos que reconhecer que a ousadia de Rafael pode ser admirada com maior profundidade do que admiraríamos uma tela de Matisse. A mentalidade pós-moderna entende que uma pintura é apenas um objeto plano preenchido com tinta, podendo ser mais honroso para um artista subir e descer de um banquinho em uma performance assumidamente narcisista do que criar um objeto. Sendo assim, como dizer que os movimentos dos pichadores invadindo o prédio, dominando os muros e se desviando da polícia em rota de fuga não tenham sido um balé a se apreciar esteticamente? Por que Vito Acconci sim e Rafael Augustaitiz não? Apenas por que Rafael é contra a lei? Se contarmos com esse argumento, a censura determinará o que é arte muito antes de qualquer reflexão. Melhor seria questionar se a arte tem mesmo se aproximado da realidade, ou se a figura do artista não tem sido a de um demagogo com privilégios especiais. Há pessoas que não precisaram de muito mais que visitar algumas ONGs em São Paulo e anotar o trajeto em um mapa da cidade para participarem oficialmente da Bienal. O que elas fizeram que as tornam exemplos tão mais destacados do que os funcionários dessas mesmas ONGs, que não serão considerados artistas?
Dentro do paradigma que se formou na arte contemporânea, o pior assistente social pode, desde que capte o tom do discurso e aperte as mãos certas, ser considerado um artista de respeito. Também um militante mais subversivo, que enfrente o sistema e desafie a polícia, pode, se souber imitar a pose certa, ser aclamado como artista radical. O mesmo vale para jornalistas, cozinheiros, decoradores, etc. Um dos muitos problemas que esse paradigma gera é que jamais temos uma verdadeira fusão entre arte e vida, a despeito do que se proclama. Um crítico importante porém pouco lembrado, Harold Rosenberg, cansou de demonstrar que não é possível a fusão com a vida em qualquer contexto de arte. Nesses casos, o que se passa é sempre deslocamento, jamais integração. Para Rosenberg, os estudantes da Sorbonne de 68 uniram vida e arte, fizeram da política uma dança, mas somente porque a tessitura era a da vida. Estavam do lado de fora da bolha. Ele considera também que é pouco provável que se possa ser libertário na vida sem qualquer repertório de arte ilusionista, com a imaginação sempre presa à realidade, limitada à concretude. Tendo em vista um cenário amplo, só temos a lamentar que a arte venha cooptando manifestações marginais que pouco dizem respeito a suas particularidades. Tanto a arte como a vida perdem, pois ambas se artificializam: o rótulo se fazendo valer mais do que seu caráter.
Duchamp estava certo ao considerar que os deslocamentos deveriam ser limitados. Hugo Ball, fundador do dadaísmo, também entendia que “transformar o dadá em uma tendência artística é problema na certa.” Guy Debord percebeu que teria de abandonar o status de artista para atingir a realidade em cheio. Lygia Clark, preocupando-se mais com a cura do que com a performance, deixou de querer ser vista como artista ao se aprofundar na psicanálise. Aqueles que buscaram ir até o limite da equação arte-vida perceberam que há uma linha a partir da qual uma ação já não deve mais ser considerada arte. Não porque seja menos interessante do que arte, mas porque seria falseamento vê-la como tal. Essa linha não é rígida, nem facilmente visível, é como a superfície de uma bolha. Fazendo-a, inchar, cedo ou tarde ela explode. Não há como levar o mundo todo para seu interior. Nem há motivos para isso, pois há coisas que se tornam mais pungentes quando em outras esferas. O que não se pode é tomar uma bolha, devido ao formato esférico, pelo planeta, pois a arte não é maior que a vida.

10.20.2008

Entre o agora e o nunca

Prefácio de Puro Enquanto, por Yudith Rosenbaum.

O que ocorre durante o estado de coma de alguém que tentou se matar ao saber que foi traído?
É em torno desse núcleo, construído entre a vigília e o devaneio, que se organiza a trama de Puro Enquanto. O tema da traição, de tão longa tradição na literatura, ganha aqui um tratamento singular, visto pela perspectiva madura de um jovem autor, interessado em devassar o submundo das paixões, descortinar a nebulosa das convenções sociais, revelar – com uma linguagem cristalina e potente- o que se esconde sob o verniz da hipocrisia social.

Para isso, Hegenberg não poupa o leitor e o convoca a uma jornada multifocal: o sono acordado do protagonista é o plano onde se entrecruzam um narrador em terceira pessoa, que cede sua voz ao discurso indireto livre da personagem, marcando uma oscilação constante entre quem vive e quem conta. Ora o sujeito em coma é visto de fora (talvez por ele mesmo, travestido em narrador onisciente), ora por dentro, trazendo ao vivo sua mistura de sensações antagônicas, fantasmas, visões, insights.
Essa trama de vozes acaba por revelar um protagonista ressentido, fracassado, algumas vezes paranóico, agoniado de amor e ódio contidos. Dividido entre a paixão pela infiel Larissa e a amizade apaziguadora de Michele, ele relembra e funde cenas infantis e atuais, compondo um retrato duro e desencantado da vida urbana contemporânea, tocada por uma sensibilidade singular:

O bípede-homem passou o dia inteiro andando, agora precisa dormir. Desde que o sol se levantou até depois do início da noite, nada mais fez do que trabalhar e caminhar - por todas as ruas, pelos shoppings, comprando coisas, pagando contas, resolvendo problemas. Essa inepta matéria viva em forma de gente abusou das pernas, precisa do repouso, e por isso se aninha, encolhe os membros, para que a realidade externa se desacelere e permita um pouco da dulcíssima magia do sono. Sabedoria atávica do sono. A energia recomposta se aconchega como um segundo cobertor, e ele suspira, feliz como um gato ronronando.

Como se vê, não há apenas crueldade nesse narrador rejeitado pela volúvel Larissa, assediado por uma mãe lasciva (o aspecto incestuoso do romance é explícito) e um pai a quem dedica a sede de vingança. Também de indulgência e poeticidade se faz o olhar desse personagem, tão bem construído por Hegenberg. Aliás, a prosa tende ao poético a tal ponto que as frases discursivas vão perdendo referencialidade para assumirem a poesia como fundo primordial da narrativa:

Fogos de artifício são gritos coloridos para a cidade inteira ouvir
Uivos de lobos se harmonizam com a celebração
Os raios que rasgam ao vento são como veias mostrando que
mesmo no invisível circula sangue
O mar incrivelmente dourado
sereno como o mais límpido céu
O céu turbulento treme
como ondas marítimas em dia de fúria



O relato se compõe, também, em diálogo com a linguagem plástica - são pinturas do artista/escritor, entremeadas ao longo do enredo. Da abstração ao figurativo, as telas acompanham o emergir do sono à vigília. Palavra e imagem buscam espaço num mundo corrompido e ameaçador, onde o sujeito se encapsula para sobreviver. Na contramão de uma suposta ordem regrada da vida, violência e erotismo (mais fantasiados do que atuados) desagregam a face plácida das coisas. E para alertar-nos da atualidade desse universo fechado e sufocante, o texto se faz quase todo no presente do indicativo, “puro enquanto” de um tempo absoluto.

A prosa urbana de Hegenberg se mostra afiada, pulsante e promissora de um lugar forte na narrativa brasileira. Um romance para mostrar que Esta é a metrópole dos altos papelões enrugados. A noite jamais tem estrelas. Escuridão monocromática, apenas.


Aguardem. Agora só falta diagramar e imprimir - o tempo é curto, mas vou tentar lançar ainda este ano.

10.11.2008

Por uma arte mais potente

“Porque pensar é mais intenso” foi a resposta de Deleuze. Eu gostaria de fazer a mesma pergunta para os artistas conceituais, pois não creio que eles possam se valer da mesma saída. Para que a busca intelectual, se exige tanto esforço, se desfaz tantas ilusões e se nada garante que a filosofia nos torne mais felizes? Os melhores artistas não são necessariamente os mais cerebrais, apesar de hoje em dia prevalecer a crença de que a arte deva se reduzir ao conceito. Para Deleuze, a arte e a filosofia só interessam na medida que sejam acontecimentos, propiciando intensidades. O sexo é melhor quando praticado do que pensado, mas se for convertido em pensamento, que o seja com vivacidade. Talvez a intenção de Luísa Duarte tenha sido boa ao propor a exposição É Claro Que Você Sabe Do Que Estou Falando? Ela notou que nossos jovens artistas estavam se esquecendo da sexualidade, e propôs o tema para estimulá-los. Não sei se a culpa é da curadora, que convidou algumas das maiores revelações dos últimos anos, mas eu saí da Galeria Vermelho com uma certa vergonha, achando que não se deve tratar o sexo com tanta falta de respeito. No início da era moderna, os artistas chocavam pela libertinagem. Hoje, nos impressionam por fazerem questão de ser brochantes.

No século XX, Freud abriu caminho para a revolução sexual, o que lhe garantiu posição de herói para a vanguarda artística. Em especial os surrealistas acompanhavam com avidez suas teorias. À sua maneira, eles reproduziam nas obras uma vitória contra a repressão semelhante à que o vienense obtinha com suas neuróticas. De arte moderna para pós-moderna, a intelligentsia de hoje não lembra muito a boemia de outrora. Está mais parecida com a neurótica, sofrendo de paralisia, do que com os sensualistas da revolução surreal. Suas obras procuram ser impenetráveis, não seduzem, não flexionam, não permitem o prazer nem a entrega. Bem representativo é um vídeo do plano fechado de uma cabeça, mais meditativa do que excitada, que não interage com nada enquanto aguarda por uma esguichada de sêmen. A corrente se diz pós-moderna, mas talvez seja um platonismo mal-ajambrado: separação do corpo e da alma, privilegiando o intelecto; desprezo pela arte, vista como deturpação do mundo das Idéias; e a crença de que o filósofo poderia salvar a República. Com um platonismo tão fraco não há atualização possível, o caminho para “sair da caverna” passa sempre por um desencanto com o corpo. Outro vídeo poderia ter uma sutileza erótica notável, não fosse o mal uso da filosofia: o fôlego de dois parceiros sexuais percebido apenas pela maneira como partículas de pó são espalhadas pelo sopro. A corporeidade estaria nesse movimento resfolegante, que, no entanto, se faz com intervalos tão longos que podemos associá-los a uma partida de xadrez, mas não a movimentos de alcova.

No teatro, no cinema e na literatura contemporâneos não encontramos os mesmos sinais de pudor ascético. Pelo contrário: Philip Roth, um dos maiores romancistas vivos, disse não ter muito respeito por escritor que não saiba falar de sexo; Lars Von Trier intercala filmes pornô com obras-primas como Dogville; e qualquer um que acompanhe o teatro dos Satyros nota que ainda se pode fazer do sexo uma provocação consistente. Talvez a falta de libido nas artes plásticas tenha alguma solução, mas é preciso que se comece a olhar para outras referências. Aqui e ali há quem apresente algo estimulante – um exemplo é Natacha Merritt, que rompe a fronteira entre pornografia e grande arte nos mais lascivos auto-retratos.

A ala mais careta das artes plásticas associa sexualidade à indústria cultural, como se a única posição do sexo fosse a de mercadoria. Nossos artistas estão confundindo resistência com desistência, com um apego à derrota que chega a ser neurótico. É como se o sexo já não nos pertencesse, completamente anexado pela direita. Mal se pode enveredar por seus territórios, irremediavelmente perdidos para o inimigo... Mas de que adianta acusarem a pasteurização do sexo promovida pela mídia, se a alternativa que oferecem é um discurso da impotência?


Foda, de Lia Chaia

Voltando à questão inicial. Um artista conceitual, antes de se declarar artista, deveria considerar com inquietação: Por que pensar? Ainda mais ao falar de sexo – o intelectual se rende muito fácil à masturbação. Ao menos uma obra da exposição conseguiu me dar uma boa resposta. O título poderia ser menos óbvio – Foda – no entanto, Lia Chaia mostrou uma proposição inteligente sem desprezo pelo sensorial. A partir de uma incursão à Rua Augusta, famosa pelos prostíbulos, ela criou uma composição com losangos, juntando espelhinhos contra um fundo vermelho. Os losangos se organizam concentricamente, ocupando boa parte da parede, estando o centro à altura da virilha do espectador. As formas vibram de maneira frenética, em jogo com o reflexo especular e com a cor quente, fazendo com que o olhar oscile para dentro e para fora da composição. Por mais cerebral que seja, dificilmente uma obra de arte se relaciona com a percepção de maneira mais íntima e intensa. A despeito de todo o recato reinante na pós-modernidade, não há bons motivos para achar que vida e arte não possam ser bons amantes.

10.03.2008

Hakim Bey: um amante do caos na vernissage

Se é ou não coisa de adolescente pode ser discutido, mas é fato que boa parte do que se apresenta hoje no mundo da arte se parece muito com o que Hakim Bey chama de terrorismo poético – não fossem o tom politicamente correto e o essencialismo desfigurarem o que poderia ser ao menos sincero. O que o extravagante agitador norte-americano denomina terrorismo poético é muito semelhante ao que se tem chamado de artivismo: intervenções na rua que confrontem os transeuntes com atos inusitados, propiciando reflexões sobre política e sobre o cotidiano. O terrorista poético chega à arte ao tentar mudar a realidade; o artivista chega à realidade ao tentar mudar a arte, mas as práticas se assemelham muito. Alguns exemplos extraídos do livro CAOS, de Hakim Bey: “poemas rabiscados nos lavabos dos tribunais, pequenos fetiches abandonados em parques e restaurantes, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds, cartas anônimas enviadas a destinatários previamente eleitos ou escolhidos ao acaso (fraude postal)”, entre outros. O problema é que qualquer dessas ações poderia ser encontrada em uma exposição de arte contemporânea, e lá estaria muito confortável. Não são poucos os críticos de arte que pensam que o registro dessas intervenções devem substituir o interesse que antes se dava à pintura e à escultura. Hakim Bey discordaria: “Para que o TP (terrorismo poético) funcione, deve afastar-se de forma categórica de todas as estruturas tradicionais para o consumo de arte (galerias, publicações, mídia).” É evidente que, quando os interesses são confusos, o oposto pode funcionar melhor. Por mais que pareça bizarro, a subversão do cotidiano hoje faz com que os acadêmicos bem posicionados se sintam “sérios” ao dispô-lá no espaço museológico.

O acadêmico-padrão só leva vantagem em relação a Bey por ter uma retórica mais pomposa, marcada por jargões redundantes e uma ideologia já bem disseminada entre seus colegas. Bey pode até mesmo, em alguns momentos, soar como um metaleiro entupido de haxixe, mas no mínimo é alguém que absorveu boa filosofia de vida antes de disparar suas idéias na cadência eletrizante que o faz popular entre os jovens. Se não há motivos para considerar Artaud, um interno de hospício, menos inteligente do que um intelectual médio, está na hora de considerar se um sobrevivente de Woodstock não pode ter uma compreensão de arte mais acurada do que os manipuladores do espetáculo. Ao menos é algo que merece ser discutido, o que de maneira alguma tem acontecido. A arte que se entende como a mais contemporânea deve muito ao dadaísmo, mas Hakim Bey me parece ser um dos poucos que levam em conta esse legado sem esvaziá-lo.

Hakim Bey é o nome árabe de Peter Lamborn Wilson, convertido ao sufismo. Historiador de profissão, ele se especializou em sociedades paralelas e insurreições populares. Seu público-alvo é, sem dúvida, os jovens, o que me parece o mais acertado para quem esteja mais interessado em ação do que em requintes artistícos ou retóricos. Já nesse quesito, o artivismo perde pontos, na medida que se propõe a ser uma força direta de transformação da sociedade, mas defende sua causa com tanto hermetismo que jamais poderia mobilizar as pessoas de fora de seu circuito restrito. Uma diferença crucial é que, por mais que as expressões radicais de arte façam parte de seu repertório, Bey entendeu que a fusão entre arte e política só acontece quando já não nos remetemos mais ao mundo da arte. “Não faça TP para outros artistas, faça-o para aquelas pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você fez é arte”. O sucesso dos PROVOS em Amsterdam ou dos Situacionistas em Paris se devem ao respeito a essa regra, e é para movimentos como estes que o terrorista poético está atento, muito mais do que para as pequenas ousadias de salão dos artivistas.

Bey não fala em arte como quem espera sair na Artforum ou ser convidado para a Bienal de Veneza, mas simplesmente como tempero para seu neo-anarquismo. Tal como os Situacionistas, ele tem alguma noção de arte e se vale disso, mas já não está preocupado em pertencer à História da Arte. É para uma História das Resistências, em toda sua objetividade, que ele pretende colaborar. A estética é uma arma boa demais para não ser usada, pois é na confluência da contestação com a festa que um levante se torna libertário. A esses espaços de alegre ruptura com a lógica dominante Bey chama de Zonas Autônomas Temporárias, semelhantes às linhas de fuga de Deleuze. Bey vê com a mesma clareza que o filósofo francês o quanto os projetos totalizantes estão fadados ao fracasso, e propõe a única coisa que se pode fazer, que são as pequenas desestabilizações. Sua guerrilha é mais psicológica do que física, derrubando, com uma escrita pulsante, os símbolos de poder que estão na mente do leitor, e incitando-o a ajudar outras pessoas a passarem pelo mesmo através de atos “terroristas”. No Brasil, o grupo Delinquentes desenvolveu essa lógica com muito humor e com uma penetração considerável. Até que ponto o choque-estético transforma a vida das “vítimas” é difícil dizer, mas eu o considero uma espécie de contra-propaganda, que funcionam ao menos como convite para a reflexão. Os artivistas aparentemente também têm a mesma confiança que eu de que a guerrilha psicológica é interessante como micropolítica, mas pecam em primeiro lugar pelo essencialismo. De modo geral, eles pensam que estão fazendo Arte com A maiúsculo, o que não só é pouco convincente como reacionário. Ao darem tanta importância à figura mítica do artista em ações que pedem por capilaridade, eles neutralizam a experiência, colocam-lhe uma moldura. A assinatura, a legitimação artistíca passa a preceder a ação, que já não é mais relacionada com o cotidiano.

Afrouxa-se o laço com a imediaticidade do mundo quanto mais se aperta sua ligação com a História da Arte. A ação se aliena, passa por uma mediação que não se justifica.
Não bastasse esse grave mal-entendido, os artivistas ainda fazem questão de propagar um tedioso moralismo em seus discursos. Giram muito em torno da culpa e da vitimização, não indo além de uma pequena economia sobre o peso da consciência. Hakim Bey é um porra-louca, mas ao menos possui uma desconfiança arguta: se ele percebe as armadilhas da sociedade do espetáculo, também não vê com bons olhos o mártir que exige sacrifícios. Quando ele propõe uma resistência menos abnegada, não está apenas considerando uma maior chance de adesão, mas também que, depois de Nietzsche, não é mais possível ver no bem e no mal princípios sólidos com os quais se possa orientar. Não são poucos os artistas e os “revolucionários” que ele classificaria como “policiais-sem-poder" - todo ódio e toda vergonha pelo mundo são coisas a se combater, não a se pregar. Hakim Bey me parece alguém que compreendeu muito bem a saúde nietzschiana e se dispôs a ajudar outras pessoas a alcançá-la. Não é mais do que isso que o terrorismo poético pretende, o que me soa mais decente do que se aproveitar da condição de rebanho dos outros para manobrá-los. “Esmague os símbolos do Império, mas não o faça em nome de nada que não seja a busca do coração pela graça".

Um dos termos mais interessantes de Hakim Bey é o anarquismo ontológico. Com isso, ele quer dizer que tudo o que está vivo tende ao caos, ao passo que os valores da nossa civilização se baseiam na negação do desejo. Sendo assim, a vontade de se contrapor à ordem dominante não precisa de qualquer ideologia. Sua aposta na espontaneidade e na liberdade fazem com que ele compreenda o espírito do Cabaret Voltaire muito melhor do que os sisudos neo-dadaístas. Nosso mundo pode estar tomado por caos negativo, mas é ilusória qualquer tentativa de miná-lo pela imposição de uma ordem. O caos é anterior à sociedade – até mesmo a Segunda Lei da Termodinâmica prevê a tendência para a entropia – mas nem por isso devemos nos render ao niilismo. Se não há como derrubar o poder, cada sujeito que se sinta um “anarco-monarca”, seguindo suas próprias leis e criando suas linhas de fuga.

Algo curioso é que ele, por mais que estimulasse o caos, era sensível o bastante para rejeitar toda manifestação de arte onde haja sofrimento inútil, a começar pela auto-mutilação, como nos experimentos radicais de body art. Creio que não se tratava apenas de incômodo pessoal, mas de uma posição contra a negatividade que não cabia em sua visão de caos positivo. Não é fácil distinguir o caos positivo do negativo, e não creio que se possa chegar a essa sensibilidade sem um certo apreço pelos ritmos e pelas formas, entendendo quais que fluem desimpedidos e quais derivam da auto-repressão. Tal percepção é tão sutil que me faz pensar – e nisto estou de acordo com Harold Rosenberg – que mesmo a guerrilha poética mais radical ainda requer a sobrevivência da arte enquanto atividade autônoma e potente. Somente na rua se dá a verdadeira fusão entre arte e política – no cubo branco das galerias isso sempre tem algo de ridículo – mas o guerrilheiro da contracultura ainda precisa da velha arte como influência. Na verdade, a grande arte e o terrorismo poético são um o limite e o complemento do outro. Ambos contribuem para uma vida mais plena, embora de maneiras distintas.

Por fim, os artivistas deveriam ler um texto de Bey chamado Vernissage, onde ele mostra toda sua descrença na vanguarda elitista. “Não é o suficiente ocupar
um pedestal sagrado e especial chamado Arte de cima do qual se zomba da
estupidez e injustiça do mundo ‘quadrado’. A arte é parte do problema.” Ele recomenda que todos evitem ganhar a vida com arte, embora não seja autoritário a ponto de fazer disso a bandeira hipócrita que alguns artivistas fazem. Melhor do que pensar que a grande questão seja essa, ele faz a lista do que não interessa a quem faz sua maior aposta no desejo, dentro ou fora do circuito: “Morbidez sem sentido, niilismo cínico, tendências de frivolidade pós-moderna, reclamar/praguejar/resmungar (o culto liberal da ‘vítima’), exaustão, hiperconformidade irônica Baudrillardiana; nenhuma destas opções é séria o suficiente, e ao mesmo tempo nenhuma é intoxicada o bastante para servir aos nossos propósitos, muito menos merecer o nosso riso”.

9.23.2008

Conto inédito na Terra Incógnita

Acabou de sair o primeiro número da revista virtual Terra Incógnita, editada por Fábio Fernandes e Jacques Barcia. A linha editorial deles é muito boa: querem deixar para trás os grandes clichês da ficção científica e mostrar uma produção que não se restrinja a este nicho quase invisível. O desafio é oferecer mais do que literatura "de genêro" e estabelecer um diálogo de igual para igual com a literatura contemporânea. Nas palavras deles, "explodir as espaçonaves clarkeanas, desprogramar os robôs asimovianos, desvendar as farsas dos códigos davincis e tirar a titia Úrsula K. Leguin para dançar forró."
Eu venho pensando que a ficção científica vai ganhar uma importância enorme nos próximos anos, principalmente com as descobertas que o LHC, o acelerador de partículas de Genebra, pode nos proporcionar. Os físicos estão a poucos passos de desvendar alguns mistérios que prometem transformar completamente nossa maneira de pensar e sentir. Não se trata de mera elocubração nerd, é bem provável que logo mais você abra o jornal e descubra que vive em mais do que quatro dimensões! Ou fique estarrecido com novidades sobre a tal da anti-matéria. Também sobre a evolução do universo se esperam algumas notícias. Tudo isso me faz crer que o século XXI vai ser dos mais empolgantes da História, e que todo escritor deveria prestar atenção à revolução que a ciência está prestes a realizar.
Meu conto na revista se chama Emaranhamento, um fenômeno que deixava Einstein assombrado e até hoje não foi explicado. Trata-se da influência entre partículas a uma distância potencialmente infinita, o que contraria os princípios da Teoria da Relatividade. Pensando nisso, escrevi sobre o "emaranhamento" de duas pessoas que se distanciam, mas continuam a influir uma sobre a outra.
Outros autores desta edição são Carlos Orsi, Guilherme Kujawski, Fábio Fernandes e Ekaterina Sedia. É só clicar aqui e aproveitar a leitura.

Obs: continuo devendo o texto sobre Hakim Bey. Meu maior inimigo tem sido o tempo (o presente mesmo, quanto ao futuro eu ando otimista). Assim que eu tiver uma brecha, cometo a insensatez de falar sobre essa criatura maldita.

9.09.2008

Terrorismo poético ou oportunista?



Desde que fiquei sabendo da última investida de Rafael Augustaitiz, muita coisa me passou pela cabeça - inclusive se valia a pena publicar qualquer coisa a respeito. Eu já havia escrito sobre a invasão na Faculdade de Belas Artes, quando ele e quarenta amigos picharam as paredes da instituição e definiram o ato como um "trabalho de conclusão de curso". No último sábado, o alvo foi a Galeria Choque Cultural, especializada em arte urbana e grafite, onde ele e seu bando danificaram dezenas de obras alheias. No primeiro ataque, eu deixei claro o quanto me parecia bisonho que um ato de vandalismo reivindicasse a anuência da academia, e o quanto isso era sintomático de uma crise mais antiga no pensamento da arte contemporânea. Algumas pessoas do meio artistíco defenderam o rapaz, o que só prova que a anti-arte faz parte de uma lógica disseminada. Meses depois, nesta ação contra uma galeria comercial, ao menos a contravenção não parece pedir elogios da parte das vítimas. Se o bando que pretende "discutir os limites da arte" falhou ao tentar obter um diploma universitário para seu líder, tampouco se esforça para obter a simpatia de muitos artistas considerados alternativos, que viam nessa galeria a maior esperança de sair das ruas para o estrelato.

Eu dei uma olhada no blog do Rafael. A primeira coisa que me ocorreu foi procurar incongruências, apontar o quanto ele, apesar da iconoclastia, procura um lugar ao sol, o quanto ele quer reconhecimento de seus pares e mecenas bacanas patrocinando o que ele está fazendo. Exatamente como os artistas que ele ataca. A verdade é que, nos tempos niilistas em que vivemos, a auto-destruição da arte é a epítome do que se tem prestigiado nos salões, com tanta insistência que não sobrou muito para se destruir. Rafael não é mais contraditório que os artistas contemporâneos, apenas levou a cabo o que os outros vêm deixando no campo da sugestão. No fundo, acho bom que isso tenha acontecido, talvez obrigue as pessoas a pensarem até o fim o que só interessava pensar pela metade.

E eu não estou fora disso. A maneira como penso arte hoje em dia não pode ser entendida sem o contato que tive com o terrorismo poético - que o Rafael cita sem saber do que se trata, do contrário diria "anarquismo ontológico" em vez de "antológico". Se eu vislumbro coisas que os acadêmicos têm dificuldade de enxergar, devo muito à minha leitura de Hakim Bey, ao grande impacto que me causou Ari Almeida e à experiência de sair da retórica para a ação. Também tive minhas experiências com a subversão do cotidiano, mas tive a decência de não chamá-la de arte. O terrorismo poético que eu conheci, para quem não sabe do que estou falando, tem muito mais generosidade do que destruição pela destruição. A anti-arte é um discurso do ressentimento, nos afasta de Dionísio, ao passo que o terrorismo poético propõe o choque como maneira de despertar a consciência dos desavisados, de proporcionar um pouco de poesia a quem jamais entraria em uma galeria de arte. Uma das sugestões de Hakim Bey é invadir as casas alheias, mas, em vez de roubar, deixar objetos desconcertantes. Sem dúvida, essa proposta influenciou o filme Edukators, mas conheci quem o fizesse na prática.

Quando entrei em contato com o maior terrorista poético do Brasil, Ari Almeida, apesar de estar cometendo meus próprios crimes poéticos, eu pensei que ele iria me ignorar ou me mandar à merda, simplesmente porque eu continuava me interessando por pintura e outras artes comerciais. O discurso que mais zumbiam na minha orelha era o detestável pós-modernismo de faculdade, e me surpreendi ao saber que a radicalidade do Ari, muito mais ampla do que a dos artistas contemporâneos, não precisava da tal da morte da pintura. O grande barato é não se importar com dogma nenhum, e logo notei que mesmo quando nos diferenciávamos nos métodos, nós buscávamos coisas parecidas. Mais surpreso ainda eu fiquei quando ele me disse que adorou um dos meus artigos sobre arte, justamente porque sentiu que eu lhe dava alfinetadas. Era Não-vida e a superação da anti-arte, onde eu tentei distinguir os objetivos de qualquer militância criativa e os das artes plásticas. Fiz isso justamente para evitar essa institucionalização do caos que vejo imperar na arte contemporânea. Afinal, qual o sentido de uma transgressão consentida?

Verdade que meu número de pinturas é maior que o número de ataques que realizei, mas sempre foi uma questão de honra deixar meus atos de terrorismo poético fora do meu portfólio de artista. Eu jamais cobraria nota na faculdade para o que aprontei na rua ou pediria ao Ivo Mesquita para expor na Bienal. O marasmo crítico chegou a tal ponto que eu poderia muito bem fazê-lo e estar em sintonia com o que há de mais "vanguardista", mas me recuso a agir assim por um motivo muito simples. Eu adoraria ver a subversão do cotidiano se espalhar ao máximo, em vez de confiná-la ao meio artistíco. Foram ações não-autoritárias, é bom deixar claro. O que eu fiz nas ruas - ataques críticos-poéticos a shoppings e a lanchonetes - qualquer um que queira se sentir menos passivo pode fazer, e acho que ao menos os jovens deveriam tentar, com a naturalidade de quem combate o próprio tédio.

Ainda assim, confesso que para mim mesmo não é tão fácil entender como posso ter me apaixonado por duas atividades que a princípio parecem concorrer uma contra a outra. Faz sentido se influenciar igualmente por Ari e por Kandinsky? Ou dar atenção a Hakim Bey sem perder de vista Guimarães Rosa? É por isso que a pergunta do título acima não se dirige tanto a Rafael e seu bando. Nem para os grafiteiros alternativos que, segundo o movimento PixAção, traíram a verdadeira arte de rua ao colocarem seus trabalhos à venda. É a mim mesmo que questiono. Como posso realizar pinturas, ou seja, arte em seu sentido mais convencional, depois de já ter deixado Matisse e Miró de lado e ter ido para a rua? Depois de ter despejado a criatividade numa militância muito mais frontal do que a de uma tela? Pior que isso: o que eu devo fazer se, a partir da publicação do Puro Enquanto, a demanda por óleos de Hegenberg se tornar maior que a demanda por óleo de baleia? Moralismos e ideologias à parte, o Ivan de hoje, ainda não muito famoso e com apenas 28 anos, não gostaria de ser desapontado por um Ivan veterano, que ao se afogar em mares de dinheiro se esqueça do quanto a arte pode ser potente. Não posso garantir muito sobre quem eu serei no futuro - e quem é que pode? - mas não acho que todo artista que finalmente consiga viver de arte se esqueça completamente de como era quando começou. Além do mais, para mim não há opção: o que eu crio é sério o bastante para consumir uma quantidade enorme de tempo e energia, a ponto de até hoje eu não ter conseguido conciliar arte com uma profissão estável. Vivo de free-lances para ter algum tempo livre, mas vivo mal. Talvez os moralistas preferissem que eu fosse um artista ainda mais "atitude", que eu passasse a vida inteira sem vender uma peça, mas a obra que eu tenho para criar não é compatível com horários de hobby. Se eu não conseguir transformá-la em ganha-pão, aí sim estarei fazendo a maior concessão: pintar e escrever muito menos do que eu poderia, ficar aquém de onde posso chegar.

Nem por isso acho que os problemas se resolvam tão facilmente. Acho que, apesar das contradições, Rafael aponta para uma angústia genuína. Não seria mal um pouco de humildade da nossa parte: o cara está disposto a enfrentar polícia para dar seu recado, não precisamos pensar que seja tudo encenação. É bom saber que nem tudo é retórica - ainda há quem se incomode quando o comércio sufoca as sempre pequenas possibilidades de a arte permanecer honesta. Não concordo com o autoritarismo de seu método, mas a apatia geral também seria tão triste quanto. É bem provável que Rafael tenha lido a mesma matéria que eu, na Folha de São Paulo da semana passada: o dono da galeria atacada falando de arte como quem fala de ações na bolsa. Baixo Ribeiro, o galerista, demonstrava sua animação com os colecionadores iniciantes que, segundo ele, ganham gosto por arte ao constatar, após um par de anos, que as peças que haviam comprado estão se valorizando. Até o galerista de um espaço alternativo diz que é a rentabilidade que deve levar uma pessoa a apreciar arte? Pensando no quanto o valor de uma obra vem se reduzindo ao seu valor de mercado, também me passa pela cabeça alguma maneira de desestabilizar esse esquema. No entanto, acho que se chega mais longe com um mínimo de sutileza. Aliás, este post já é bem menos sutil do que eu gostaria.Se eu não testemunhasse o quanto não estão entendendo nada, eu não teria que ser tão explícito, não precisaria dizer que a cada artigo que escrevo me parece mais plausível abalar o pregão.

O que vai acontecer quando finalmente os colecionadores perceberem que 90% da arte contemporânea é pura enganação? Isto sim, pode causar muito mais impacto do que a destruição física de algumas pinturas. Muita gente perdendo dinheiro muito rápido - basta deixar claro o que é arte de verdade, para que a desvalorização do que não presta seja estrondosa. O único jeito de fazer isso é através de um pensamento que se mostre mais sofisticado do que os discursos que se ramificaram da anti-arte. Não me parece tão difícil de fazê-lo: se não engolirem o moleque de 28 anos que constatou que a subversão funciona melhor fora do circuito, são muitos os intelectuais mais "respeitáveis" que apontam para a fragilidade da arte pós-moderna. Basta reavivar os melhores livros de Harold Rosenberg. Ou fazer uma leitura decente de Nietzsche, de Lacan, de Deleuze, de qualquer um que tenha pensado o ser humano com este nível de complexidade.

Mas já que queremos todos parecer tão ousados, e já que calhou de eu só conseguir escrever este artigo em um 11 de setembro, termino com uma pequena sugestão para todos os artistas do ressentimento. Em vez de agir só com sinal negativo (sempre moralmente, sempre reclamando de que arte não deveria dar aos mãos ao comércio, etc), por que não agir de forma mais potente, com sinal positivo? Por que não usar o enorme montante que a arte consegue proporcionar a uma pessoa (e, supostamente, uma pessoa com consciência crítica) de uma maneira que desnorteie o status quo? Até o Bin Laden, fanático e anêmico, é mais interessante do que vocês: por mais que ele detestasse os dólares, juntou muitos deles para organizar um ataque eficaz. Longe de mim fazer apologia à violência, mas vocês não conseguem ver que a partir de certo ponto o enfrentamento não se dá mais internamente, não se faz na obra de arte? Nas artes visuais já está mais do que provado que não, o autoritarismo também não interessa, mas e quanto a um terrorismo verdadeiramente... poético?


PS: Mesmo quem não for fiel à deusa da discórdia, peço que faça uma oração para Éris em nome do Ari, que está com um problema grave no rim.

8.28.2008

Orelha de Puro Enquanto

Por Fernando Bonassi


Por enquanto é isso aí... Aqui...

Isso tudo, aliás, é puro enquanto! Por mais que queiramos permanecer...

O tempo passa com essa velocidade de arrepiar. Chega a dar vertigem na paisagem!

É também uma miragem. Há muitos sonhos maus, esperanças desfeitas e mal estares por baixo de toda essa sacanagem consentida...

Então vêm esses malditos pesadelos, amores e autores que nos ensinam aquilo que não gostaríamos de saber. Aliás, é duro de entender quem é mentira enquanto a realidade é produzida pelas agências de propaganda da verdade, onde os produtos humanos exibem esnobes os seus rótulos, mas escondem o prazo de validade. Puro Enquanto faz um ruído no disco do moto contínuo; é um ponto de desencontro com aquilo que viemos nos fazendo...

Assim, puro enquanto é também um rito de passagem para uma outra coisa. Uma crise que seja. Uma espécie de viagem com destino incerto, o certo lugar dos infernos de nós mesmos.

Puro Enquanto deixa esse cheiro esquisito, meio novo e meio antigo, meio fóssil e meio sintético, bem fedido na garganta...

Puro Enquanto é uma caixa de esgoto, ressonância ou de segredos, travestida de armário de cacarecos. É esse desalento desgraçado, embalado por ironias impagáveis. O preço, no entanto, está fechado e acertado com o editor e o livreiro. São mentiras cristalinas, deslavadas e pagas com dez por cento das favas amargas na conta corrente do autor.

Deve, é claro, dar um tranco, ou um treco na mente dos contentes obscuros.

Tem uma coisa masoquista muito sádica também, como convém a quem leu Dostoiéviski desde criancinha.

É uma coisinha diabólica que invoca o próprio diabo mais invocado para esclarecer. O esclarecimento que ele tem, ou dá, no entanto, pode ser duvidoso. É incômoda a poesia do desconforto!

Escrever pode ser gostoso, mas viver é que é perigoso. E Ivan descreve a nossa ignorância muito bem.

Puro enquanto é isso aí, ou aqui... Cada um sabe o que faz... Ou deixa de fazer, mas leia atentamente o que eu te digo: se segure pra torrente desse livro.


Fernando Bonassi é escritor, dramaturgo, roteirista e gosta muito da pegada do Ivan.

Obs: Puro enquanto está quase pronto. Se tudo der certo, sai no final do ano.

A literatura contemporânea segundo Bonassi

Adorei a orelha que o Bonassi escreveu para o Puro Enquanto, que deixei no post logo acima. Para quem quiser saber porque eu me identifico com a escrita dele, recomendo veementemente sua nova peça, Literatura contemporânea. Está em cartaz em São Paulo no SESC Paulista, mas acredito que vá circular pelo Brasil todo.
É um monólogo afiado, interpretado por César Figueiredo, onde se discutem diversos problemas que assolam a atividade do escritor. A dificuldade de se manter resistente quando a escrita é encomendada, os impasses ideológicos, as veleidades (ou frescuras, como ele traduz) e a nostalgia por um tempo em que a literatura parecia mais transformadora. O texto do Bonassi não se rende a facilidades: a tudo isso ele vê de um panorama vasto, pós-utópico, sem esquemas prontos, passeando pelas correntes do pensamento contemporâneo sem que nenhuma se torne camisa-de-força. Ao mesmo tempo - e não fosse isso, não teria graça alguma - ele não absolve nem a si mesmo, sabe rir de si e de seu lado sórdido, permitindo que a literatura não se reduza a mero projeto moralizante.

Vou deixar para vocês um trecho em que ele cutuca os escritores que não passam de representantes da boa consciência:

Um gesto resistente desses terroristas parece mais convincente do que suas páginas moralistas e supostamente revolucionárias... Não que sejam reacionárias, mas é esse "bom senso" que as aniquila... e como o "bom senso" é de todos, há sempre essa vivência emprestada, entendiada, empestada...


Foram tantas as vezes em que eu senti exatamente isso, diante de obras feitas com nada mais do que "boas intenções"...

8.23.2008

Do lado de lá do mundo

Os desafios e contradições da China em transição me fazem lembrar de uma das minhas canções favoritas, China Girl. Parece ter mais a mão de David Bowie que a de Iggy Pop (eles compuseram juntos), mas prefiro a versão do segundo. A canção faz sentido pela sua violência, a começar pela sem-cerimônia com que as guitarras corrompem as tradicionais melodias chinesas. Milênios de cultura de um império soberano são deformados pela invasão pop, e os gritos de Iggy revelam a intensidade de um dilema. Por maior que seja a paixão, (I’m a mess without you), o americano sente que vai arruinar sua amada, ao lhe dar televisão, olhos azuis e um homem que quer dominar o mundo. Ele chega a confessar o lado fascista de seu desejo, as visões de suásticas na mente, no entanto a guitarra prossegue, demolindo os fraseados mais delicados de uma tradição que não lhe pertence. A música é de 1990, início da abertura econômica da China para o ocidente.

Confesso que não é fácil, mas venho tentando entender o que se passa com os 1,3 bilhões de habitantes deste país. Se, por um lado, as projeções de crescimento econômico parecem infalíveis, na política e na cultura o solo é dos mais instáveis. Para começar, o choque de gerações é muito forte. Os velhos ainda reproduzem a moral maoísta, os jovens cada vez mais adquirem valores ocidentais. A mudança de costumes, acelerada pela internet, é bem mais abrupta que nossa revolução sexual dos anos 50 e 60. Hoje os jovens vão para as baladas e fazem sexo casual, ainda que não precisem mais do que abraçar alguém na rua para serem mal vistos por quem viveu outros tempos. Durante a chamada revolução cultural de Mao, não eram permitidas demonstrações de afeto em público, como beijos ou caminhar de mãos dadas. A paixão era considerada um sentimento “burguês" e “contra-revolucionário”, por nos afastar dos interesses coletivos. Mao certamente concordaria com as visões de suásticas da canção, muito mais do que os roqueiros que a compuseram. O moralismo do Partido era tomado a peito pela população, capaz de apedrejar os casais que ostentassem seu romance. Parece folclore mccarthista, mas tamanha era a repressão que muitas pessoas morriam virgens mesmo quando casadas, devido à total ignorância no assunto. Ainda hoje é um problema sério para os sexólogos chineses, por mais que o governo invista em conscientização. A expressão “criado com a avó”, que usamos para descrever alguém assexuado, na China pode significar um adulto que não sabe sequer quais são as partes do corpo envolvidas em um ato sexual.



Não está longe o dia em que a China ultrapassará os EUA e se consolidará como a principal potência econômica mundial. Só não acredito que tão cedo ela possa ocupar o mesmo espaço no imaginário popular, nos empurrando cultura de massa com o mesmo fôlego que a indústria cultural norte-americana. Por enquanto, acontece o oposto: os jovens chineses que têm algum poder aquisitivo se comportam como os brasileiros, preferindo a cultura enlatada dos gringos do que suas raízes ou qualquer coisa mais autêntica. Isto, é claro, para os que podem se regalar com cultura, para os que vivem o lado bom do crescimento chinês. Alguns se tornam milionários rapidamente, outros viverão até o fim uma miséria de terceiro mundo. Supostamente, estão todos contribuindo igualmente para um país "comunista”, mas é pouco provável que essa ideologia tenha a mesma aceitação hoje do que no tempo dos avós. Ficou para trás o tempo em que o maoísmo podia ser recebido como dádiva pela esquerda no mundo todo. Os jovens chineses parecem ver na revolução cultural o mesmo retrocesso que nós vemos hoje; e, em comparação, a abertura para o ocidente parece mesmo com um avanço. Pena que não seja um progresso tão entusiasmante: como a China girl, deixam-se arrebatar pelos americanos.

O preço desta aproximação entre capitalismo avançado e resquícios de ideologia autoritária pode ser mais alto que o de uma Guerra Fria. Em pleno ano olímpico, a China massacra os tibeteanos, e por mais que o ocidente se oponha, não pode fazer nada. A China canta Why don't you just shut your mouth up, tanto para a imprensa local quanto para os demais países, provando que ninguém contraria quem detém um sexto dos consumidores do mundo. Dinheiro jamais se importou com ideologia, do contrário o McDonald’s não poderia ser o restaurante oficial dos Jogos de Pequim. O Partido Comunista também está mais preocupado com dinheiro do que com Marx, já que não se incomoda em firmar parceria com empresas do país que propagou o fordismo. Se o discurso oficial é comunista, na prática temos uma exploração do trabalhador que não se via desde o século XIX. Em um documentário transmitido no GNT, vi cenas de uma fábrica de jeans onde as operárias enfrentam rotinas de até 16 horas seguidas, sem hora extra, ameaçadas de demissão à menor reclamação, sem direitos trabalhistas, ganhando um salário insignificante. As filmagens tiveram que se fazer em segredo, pois qualquer documento que mostre o lado sórdido do país é reprimido com prisões – o que, de fato, aconteceu com alguns integrantes da equipe. E é sob esta pressão que a China vem obtendo um crescimento anual de quase 10%.


Ao McDonald’s não interessam nem a semi-escravidão dos trabalhadores nem o genocídio no Tibete – enquanto as pessoas se sentirem alegres consumindo China Menu, não há problema algum. Em todo o planeta, trabalha-se cada vez mais para ganhar menos, em grande parte por culpa do modelo chinês, que obriga todos seus competidores a nivelarem por baixo. É claro que a China está muito longe daquilo que os comunistas mais simpáticos sonharam – vamos admitir, existem comunistas bem-intencionados, assim como existem padres humanistas. Até mesmo Godard, na minha opinião o cineasta mais inteligente do século XX, caiu nessa, e rodou um filme um tanto idílico, impossivelmente otimista sobre sua chinesa. A revolução cultural era celebrada quando não era compreendida, quando a falta de informação permitia idealizações. Era o lado de lá do mundo, tão distante quanto o paraíso cristão. Ninguém por aqui o conhecia de perto, poderia imaginá-lo como quisesse, era bonito como escape da realidade. Hoje se pode discutir comunismo à vontade em um país como o nosso, que tem algumas liberdades democráticas. Na China, que se diz comunista, não há a menor possibilidade de discutir o que a esquerda tradicional sonha aqui – que o digam as centenas de sociólogos e antropólogos que iriam a um congresso em Pequim, cancelado para abafar qualquer conversa sobre o Tibete.



O capitalismo é insensível e o socialismo real uma desgraça elevada ao quadrado. Então o que fazemos? Agimos cinicamente e aplaudimos a cerimônia das Olimpíadas, depois vamos ao McDonald’s comemorar a união dos povos? Não sou padre, me recuso a pregar. Postura política jamais deveria ser a de um Cristo preso na cruz, deveria vir a cada um sem coação, só assim para dar liberdade de movimentação. No meu caso, venho boicotando produtos Made in China. Não muda muito, mas me sinto menos otário ao fazê-lo. O que se passa na China respinga em você, até mesmo na diminuição do seu salário – não é exagero, não há fatores isolados em uma economia mundializada.

Há alguns anos, evito também os produtos norte-americanos. Se no futebol ou no vôlei torcemos com tanta garra pelo Brasil contra os EUA, por que em política fazemos o contrário? Por que damos tanta moral a um país que nos explora copiosamente? O que os Estados Unidos vêem no Brasil é um reservatório de mão-de-obra barata e consumidores que abrem a perna fácil. Não estou nem mesmo sendo polêmico: não temos um governo como o chinês que nos impeça de falar de problemas evidentes. Ainda assim, reconheço ao menos uma coisa que os americanos criaram que quase compensa todos os filmes kistch, toda a fast-food insípida e os produtos superestimados que eles nos empurram. Eu não me sinto nem um pouco alienado ao dizer que considero o rock mais revolucionário do que qualquer tentativa de se implantar o comunismo. Mesmo quem não gosta do ritmo tem que admitir, a revolução sexual deve muito àqueles primeiros cabeludos. Por outro lado, confronto a teoria política mais doutrinária com maus exemplos como o da China. Que me desculpem todos meus amigos marxistas, mas não há nada que me leve a acreditar que o próximo ditador do proletariado, seja lá em que país surgir (no Brasil não vai ser, duvido muito), finalmente vai ser gentil com os trabalhadores e fazer tudo como manda a utopia. Para mim, isso é messiânico, é a crença em um lado de lá, tão fictício quanto o reino da Cocanha. É esquecer que onde há desejo há vontade de poder. Ou, como na canção de Bowie e Iggy Pop, esquecer que até mesmo um homem apaixonado pode arruinar aquilo que preza – e nem mesmo a consciência política pode impedi-lo. A meu ver, o rock dá conta da condição trágica do ser humano muito melhor do que o comunismo utópico. Basta notar que, por mais que que os roqueiros tenham seu lado maldito, falam de amor em todas suas nuances, ao passo que no comunismo, este se torna um de seus maiores obstáculos. É de desejo que eu quero falar, algo que não tem muito espaço no pensamento marxista.

8.14.2008

Flávia

Há anos eu quase não pensava na Flávia, mas ontem à noite sonhei com ela. Ela que encarnou meus maiores traumas, que me forçou aos mais estrambólicos desvios. Foi há muito tempo, no final do século passado. Já não tenho direito de guardar mágoas, mas só pelo avesso posso me certificar de que se foram. Sonhei que conversávamos em paz. Ela um pouco diferente, com os cabelos roxos, o rosto sereno. Não lembro do que dizíamos um ao outro, exceto uma solenidade madura, meio budista.
 Quem se agitava eram meu pai e meu irmão. Não os convidamos, mas faziam a ronda, presumindo um perigo que não existia. Fingíamos que não estavam ali, como se pertencessem à mera opinião.

Tenho pensado pouco na Flávia, mas penso bastante em Larissa, personagem do Puro Enquanto. Que é meu livro costurado com sonhos. Não há lugar, no livro, para uma Larissa tão suave quanto esta Flávia recente. Larissa é a Flávia que me marcou, mas não sei até que ponto elas coincidem. Confundiram-se por anos nos meus sonhos, hoje entendo que nenhuma das duas foi maldição. Por mais que a traição tenha doído na carne.

Eu a admirava e odiava ao mesmo tempo, pela audácia de dar prazer a mim e ao meu melhor amigo. Logo ela, a primeira mulher a quem eu realmente me entregava. Logo eu, que me sentia sem pai e sem pátria. Que me escorava nos outros para não saber dos pés. Que tinha nos amigos a única religião. Poetas morrem desses males, mas pouco importa, não houve erro. Eu estaria sempre só, a não ser que descobrisse em mim um bocado de deus. Sem metafísica e sem Verdades.

Às vezes me pergunto o que seria de mim se não fossem os abalos. Impossível saber, eis que sou fruto de grandes desvios. Não fossem as verdades e mentiras que tiveram início com Flávia, talvez eu me perdesse na retidão. Não fossem os descaminhos, eu jamais me alinharia. Traição maior teria sido rejeitar o Abismo, que eu tanto receava adentrar.

Não há necessidade de perdoar Flávia, pois pecado não é a melhor palavra. Não foi a mulher mais desonesta com quem me envolvi, tampouco a mais vã. Maior desgosto me causam as que traem a si mesmas. Essas, podem pensar que são respeitáveis, mas em sonho algum merecem perdão por suas faltas.

8.08.2008

E fez-se o escuro!

Conheci na faculdade Sofia Borges, que hoje tem uma boa exposição de fotografias na Maria Antônia. Não é a primeira vez que vejo fotos dela, mas a primeira em que elas me impressionam. Estão mais sombrias, impenetráveis, ao mesmo tempo mais sedutoras do que qualquer outra que ela tenha exposto. Curioso é que, diante desta nova fase, não consigo tirar da cabeça uma conversa que tivemos em um ateliê da ECA, anos atrás. Eu lhe dizia que mal me reconhecia ao olhar para trás, tamanha a velocidade com que vinha me transformando. Ela, completamente cética, insistia que ninguém jamais muda, que a essência é a mesma por toda a vida.


Não posso dizer que conheço a Sofia muito profundamente, mas algo de sua trajetória eu acompanhei, e creio que esta, por si só, derruba a velha crença no essencialismo. Ela se transferiu para as Artes Plásticas partindo de uma faculdade de moda, nem por isso mostrava os trejeitos de quem segue naquela área. Parecia uma boneca, nada afetada mas graciosa, com suas blusas listradas, macacões, o cabelo loiro e os olhos azuis. Suas fotos também eram bastante claras, transmitiam inocência. Mesmo uma série em que ela deixava à mostra seu próprio corpo me parecia singela – fotos pequeninas, ela se enrolando toda em posições fetais, uma nudez que talvez preferisse o útero ao sexo adulto. Com o passar dos anos, uma dissonância começou a se fazer ver em suas imagens, mas ainda com elementos contornáveis, ainda preservando uma ternura reconfortante. O período de transição me pareceu bastante confuso, como que primeiros passos vacilantes. A maneira de se vestir também foi mudando, tornando-se mais dark, embora não fosse nas roupas que a expressão se transformaria com maior contundência.
Com a mostra em cartaz na Maria Antônia, os caminhos que ela se dispõe a percorrer ficam mais evidentes. A distorção das lentes puxando a gravidade para baixo, águas de um verde radioativo, objetos em desencontro, olhares fugidios e corpos que a câmera falha em aprisionar são alguns sinais de seu novo universo. Por mais que o computador entre para manipular todo o conjunto, há uma tensão que o Photoshop não concilia, a beleza maior estando naquilo que a imagem não paralisa. O tempo de exposição é grande, ao menos 15 segundos os modelos se detiveram em pose rígida – em várias imagens o modelo é a própria Sofia – enquanto o espectador, por mais voyeur que seja, mal retém o que se configura diante dos olhos. Há apuro técnico, inclusive tecnologia, e uma estranha harmonia, mas o prazer estético que as fotografias proporcionam nem de longe significa que elas se deixam capturar. Os cenários são banais, quartos de dormir, uma cozinha, uma piscina, um banheiro, no entanto os objetos, sejam utensílios domésticos ou pessoas seminuas, estão cada um em uma temporalidade diferente. A diferença de luminosidade que sofrem denuncia que são incompatíveis, que a coexistência entre as partes é precária – mesmo assim insistem em ressoar umas sobre as outras.
Em uma entrevista, Sofia falou em esquizofrenia ao descrever seu trabalho. Ela não emprega a palavra no sentido mais deleuziano, mesmo assim se percebe a quebra de barreiras, a tal da desterriorialização. É isso o que me entusiasma diante de uma boa obra de arte, o fato de escapar a categorias pré-definidas. Claro que sempre se pode interpretar as imagens de muitas maneiras, e não é fácil saber se cometemos uma violência ou um acréscimo com a incursão intelectual. Pode-se, por exemplo, analisar em um nível metalinguístico: na foto de um quarto de dormir uma cortina é saturada e faz-se tão escura quanto o pano que protege um laboratório fotográfico da luz externa; em outra imagem, Sofia opera um cortador de papel com tamanha ausência de espírito que parece prestes a decepar a mão. Poderíamos enveredar por esse caminho, pela hesitação quanto a renunciar ou não aos aspectos artesanais da criação. Ou então, detendo-se no formalismo: são estabelecidas relações internas entre objetos os mais díspares, em especial o fulgor das costas nuas, de um dourado quase tão metálico quanto uma panela cujo brilho se destaca no meio da pia. Ou psicologicamente: em um banheiro, as toalhas adquirem maior nitidez que o corpo feminino; por mais que o decote esteja aberto, a promessa carnal é tão perturbadora que a mente neurótica tem o foco na higiene. E, se quisermos, temos também a situação política: pode-se falar no quanto toda imagem ludibria seu consumidor, no quanto de mistificação há na imagem que o espectador crê resolvida, capturada, representativa da realidade. No entanto, se houve ao menos 15 segundos de diafragma aberto, o que se passou nesse tempo é muito mais do que o instante apresentado.



O que mais importa não é o enfoque específico, mas o fôlego que tem a obra para nos instigar. Ao situarmos a série de Sofia em um contexto que inclua toda a arte conceitual, o contraste com o que tem sido feito é notável. A quase totalidade dos artistas contemporâneos parece satisfeita em se deixar reduzir por um discurso, por uma “explicação”, em uma perfeita submissão à crítica. A despeito do que a Sofia me disse anos atrás no ateliê da faculdade, suas fotografias me provam que algo se transforma, algo se movimenta para além do previsível. Se não há um impulso desse tipo a obra não sobrevive à dissecação, e torna-se inócuo falar em resistência, torna-se ridículo acreditar que a arte valha mais do que o encarte em anexo. Uma forte intuição parece ter guiado a artista, mais do que a descrição pedagógica de problemas já conhecidos por quem é do meio. Uma boa notícia, diante de obras como a dela, é que a abnegação não tem nada de necessário – ou seja, ninguém precisa se contentar apenas com a forma ou apenas com o conteúdo. Não é preciso ser deleuziano para lamentar que a esquizofrenia, melhor dizendo, o desejo que não se detém nos territórios, pouco tem estimulado os artistas. É somente na confluência de muitos aspectos simultâneos que uma obra não se deixa dominar, e o interessante na série de Sofia Borges é que ali se fez o escuro. Quem já revelou em um laboratório entenderá a parábola: a luz mesmo, quando intensificada, cria zonas de escuridão.



Fotografias – Sofia Borges
visitação 20 jun a 24 ago 2008
ter a sex, das 12h às 21h
sáb, dom e feriados, das 10 às 18h
visitas monitoradas agendamento no 11 3255 7182
entrada gratuita
Local:
Centro Universitário Maria Antonia - USP
Rua Maria Antonia, 294 Vila Buarque
01222 010 São Paulo SP
tel 11 3255 7182
fax 11 3255 3140
E-mail: mariantonia@edu.usp.br
web: http://www.usp.br/mariantonia/

7.30.2008

Reabilitação

Este saiu na edição de julho da Revista E, do SESC. Eu não sabia em que mês iria sair, só me dei conta de que estava impresso quando recebi o e-mail de uma leitora dizendo que sofria do mesmo mal que meu personagem.

REABILITAÇÃO

Bom dia a todos. Meu nome é Marcelo, tenho 32 anos, estou na Associação há dois anos. Após muita luta e coragem, tenho o orgulho de dizer que faz cinco semanas e dois dias que não leio uma única linha de literatura. No começo foi muito difícil, a compulsão falava mais forte, mas com o apoio de todos aqui presentes, estou conseguindo me recuperar desse vício nefasto. A guerra ainda não foi vencida, sei que a possibilidade de uma recaída está sempre nos ameaçando, mas o exemplo de vocês tem me ajudado a seguir o bom caminho e retomar uma vida digna em sociedade. Sou imensamente grato por isso.

Cada um aqui tem uma história pra contar, e cada história pessoal na verdade se abre em mil outras histórias, porque assim é o vício da ficção. Acho que no meu caso, tudo começou com cerca de seis anos de idade. Foi a professora da escolinha que me introduziu a esse universo – lembro-me bem dela, Dona Gilda – me presenteando com um livrinho ilustrado, bonito, sobre as aventuras de João no Pé-de-Feijão. Eu era uma simples criança que nada sabia sobre os perigos dessa vida. Não poderia adivinhar que um gesto tão simpático daquela velhinha de voz macia me levaria para uma trajetória de perdição que com muito custo tento agora deixar para trás. O livro colorido parecia tão inocente, e eu fiquei tão entusiasmado com o João, que não pude oferecer resistência alguma. Fui totalmente tragado pela magia dos feijões que crescem de um dia para o outro sem qualquer explicação, pelo castelo mágico repleto de maravilhas, e, como João, também eu quis derrotar gigantes e dedilhar a harpa de ouro. No começo parece tão bom, não parece? A gente se sente ótimo. Agora, o que mais me deixa revoltado... (ai, me desculpem pelas lágrimas, vou tentar ser mais forte)... o que até hoje eu não consigo entender é como que meus pais não me advertiram. Eu simplesmente não consigo perdoá-los por isso. O caso é que naquele mesmo dia, quando eles chegaram em casa depois do trabalho, eu comentei eufórico que pela primeira vez tinha lido um conto inteirinho, do começo até o fim. E que o João era incrível.

Eu tenho um filhinho pequeno, de dois anos de idade. De uma coisa eu tenho certeza: se um dia meu filho ler um livro desse tipo e me disser que “João é um cara incrível”, eu vou responder que é esse o problema. “Incrível”. Meus pais perderam a oportunidade de me colocar nos eixos, e deixaram que o faz-de-conta ganhasse espaço na minha vida. Posso dizer até mesmo que... (suspiro)... eles ficaram contentes com esse meu “aprendizado”. Disseram que eu tava crescendo. Não é um absurdo? Ali estava eu, pobre criança que se deixou arrebatar pelas ilusões, por uma historinha que nunca existiu, uma mentira descabida, e eles tiveram a pachorra de dizer que eu estava aprendendo, e que eles estavam muito orgulhosos de mim. Será que eles não sabiam que é assim que tudo começa?

A coisa foi crescendo, em pouco tempo eu perderia o controle. Não demorei muito para ler todos os contos de fada da biblioteca da escolinha, e como se isso não bastasse, logo em seguida descobri Monteiro Lobato. E, é claro, eu vibrava com as caçadas de Pedrinho, achava Emília um personagem encantador, e tinha vontade de ir com Narizinho ao Reino das Águas Claras... Dona Benta, então, me era tão querida quanto minha própria avó. São recordações que parecem doces, e eu já vejo no rosto de vocês aqui, meus parceiros nessa luta, um ar de nostalgia – mas nós precisamos ser fortes. Naquela época, não tínhamos a menor noção do perigo que corríamos, mas hoje já temos consciência. Tudo estaria bem melhor agora se fôssemos como as crianças normais, que passam horas na frente da televisão, ou mesmo jogando videogames.

Com menos de dez anos eu já estava desencaminhado, e nem sequer suspeitava. Eu devorava pilhas e pilhas de livros de aventura, das viagens de Gulliver às expedições para Marte, sem falar na paixão que eu tinha pelo suspense do Marcos Rey. Quando, alguns anos depois, a escola nos obrigou a ler Machado de Assis, todos meus colegas torceram o nariz, acharam muito difícil ou chato, mas infelizmente não pude sentir o mesmo desprezo. Para mim, que já era um viciado, aquilo foi simplesmente uma dose mais forte de algo que já havia tomado conta do meu sangue. Não havia mais volta: a acidez daquele bruxo transformou meu olhar, e eu já não podia mais ver as máscaras sociais em sua tranqüilizante superfície. Era tarde demais! Dali em diante, passei a ter um impulso irresistível para desconfiar das aparências, para desvendar a hipocrisia das relações pessoais, e para desvendar o que há por trás dos discursos oficiais. Nem mesmo o médico Fortunato, cuja profissão consiste em ajudar as pessoas, foi poupado por aquele homem tão brilhante e tão ardiloso. Hoje me pergunto, como é que pode uma escola ensinar algo assim? Eles deveriam primar pela comunhão entre as pessoas, pela civilidade, e em vez disso nos oferecem um curso completo de sarcasmo que nos pega desprevenidos. A coisa só iria piorar. Li Crime e castigo vibrando com Raskólnikov, um pérfido assassino; li Bukowski com enorme respeito por um bêbado, só porque ele descreve a miséria com um certo charme; li Lolita e achei magistral uma narrativa indecente sobre um pedófilo. E ainda fiz amigos que me incentivavam a ler cada vez mais! Um pior que o outro, é claro. Estavam todos certos de que a glória da literatura é não ter os limites que nos impomos na realidade, e eu, ingenuamente, concordei com eles.

Quando atingi a vida adulta, a literatura já se tornara uma compulsão. Ao menos tive o bom senso de não prestar Letras, mas, advogado recém-formado, eu cumpria meus deveres o mais rápido possível e reservava horas inteiras à fantasia, para assim escapar do mundo real com todos seus problemas. Continuei a encontrar com meus amigos leitores, mas mal sabíamos manter a conversa no clássico futebol, mulher e piadas sujas: todo encontro descambava para as nossas leituras, para nossos escritores prediletos, sem o menor pudor. Parecia uma doença! A literatura começou a transformar minha escala de valores a tal ponto que a mulher que eu idealizava era ninguém menos que Sherazad. Acreditei que a esposa perfeita seria ela, porque saberia me contar inebriantes histórias por mais de mil e uma noites. Mas creio que eu também teria sido o pobre K., do Castelo, e me deixado escorraçar de bom grado por Frieda; eu teria sido Proust e amado Odette sem arrependimento algum; eu teria sido Riobaldo e me apaixonado em segredo por Diadorim. Eu desejava uma vida impossível e absurda, desde que tivesse a mesma intensidade que eu encontrava nos meus romances prediletos. Pouco importava que o final fosse triste, pois o que me parecia decepcionante era o lugar comum, a falta de poesia.

É claro que pensando assim eu só poderia me tornar um desajustado. Nenhuma namorada me fazia feliz, porque eu sentia sempre que lhes faltava algo, uma aura especial sem a qual me pareciam desbotadas em comparação com as personagens preferidas. E aí está o erro, pois desbotadas só podem ser as criaturas que habitam a celulose, presas entre a capa e a contracapa. Eu bem que deveria me conformar com as maria-gasolinas que estão sempre a mão, e que se pode trocar constantemente sem pensar duas vezes, porque com elas jamais sentimos que se perdeu grande coisa. Eu deveria ser como todo homem saudável, mas não. Eu preferi ser romântico, e procurar alguém que me despertasse um amor maior que a morte, tal como o de Romeu e Julieta. Não poderia dar certo. Também no trabalho, eu fui muito aquém do que poderia, pois eu estava mais preocupado com matérias do intelecto e do espírito do que com as coisas palpáveis. Desperdicei minha juventude com essa bobagem. Eu teria força para trabalhar 14 horas por dia, se eu não achasse mais importante adquirir cultura do que dinheiro. Ponho toda a culpa nos livros que li, sendo que tudo começou com aquele maldito João e o pé de feijão que uma professora me ofereceu com insidiosa doçura, tal como se oferece droga disfarçada numa balinha de côco.

Desculpem-me, eu não queria me exaltar. Se apenas eu tivesse mais cedo encontrado alguém como vocês para me aconselhar, meus caros... Como por exemplo o Guigo, aqui presente, que compreendeu que toda poesia de que precisamos está na bula do Prozac. Ou como o Leonor, que desde que abandonou a literatura conseguiu se focar em objetivos mais altos, e em breve vai conseguir seu primeiro milhão. Ou como o Marcão, que todos conhecem bem, e que tem conquistado o triplo de mulheres desde que deixou para trás a sensibilidade refinada que bem sabemos o quanto costuma atrapalhar.

Infelizmente, eu não tive a sorte de ter amigos como vocês mais cedo, e me deixei levar por uma infinidade de sonhos inúteis. Tenho ainda um longo caminho pela frente. Hoje eu tenho mais cultura do que dinheiro, e não existe banco algum que faça a conversão. Sinto-me deslocado em todas as festas do pessoal do trabalho, porque meu assunto favorito sempre foi, por muitos anos, livros. Ainda não consigo me acostumar com os programas de tevê mais populares, mas sei que só quando eu tiver me habituado à sabedoria humilde das emissoras, poderei me sentir à vontade com as pessoas mais respeitáveis. Ao menos tenho parado de ouvir as reclamações da minha esposa, que antes ameaçava com o divórcio se eu não parasse com a mania de dar valor ao que não leva a lugar algum. Ela é uma pessoa normal e saudável, tanto quanto eu quero ser. Por isso que estou aqui. Sei que meu caso é grave, mas já faz cinco semanas e dois dias que eu não leio uma linha de literatura, e com a ajuda de vocês eu sei que posso me livrar desse mal. Obrigado a todos, era isso o que eu tinha para dizer.

7.19.2008

Márcia Denser, querida maldita


Alguns artistas estão à frente de seu tempo, mas no caso de Márcia Denser foi um pouco diferente. Estreou em 1976, época de contestação, época de experimentação e de “desbunde”. Com vinte e poucos anos já possuía uma prosa cortante e precisa, com a qual não passou desapercebida. Sem pudor ou hesitação, arrastava o leitor para recônditos onde prazer e queda se confundiam, afirmando-se como uma das escritoras mais perversas da literatura brasileira. Dona de uma narrativa ao mesmo tempo sofisticada e sem frescuras, pôde dialogar com seu próprio tempo, quando em meio à vontade de ruptura havia lugar até mesmo para a sordidez. É estranho pensar que ela tenha passado um bom tempo num semi-esquecimento, após tantos elogios que lhe renderam Paulo Francis, Rubem Fonseca e tantos outros que fizeram sua fortuna crítica. Em boa parte a responsável foi ela mesma, que passou anos sem publicar, sem dar à luz filhos novos. Mas apenas em parte essa explicação é convincente. Ao pensar em nossa época, a impressão é a de que a liberdade que Márcia incitava, a musa dark dos anos 70 e 80, sofreu um recuo generalizado. Alguma coisa se perdeu de trinta anos para cá, os estômagos estão mais fracos.
Uma falta de ousadia, talvez. Não cortes de cabelos, gírias ou piercings na língua. Mas uma sinceridade maior, quase suicida. Inocência, ainda que pelo avesso. Hoje até mesmo cantoras de axé vestem calças de couro, a rebeldia faz parte dos cálculos, inclusive os escândalos, mas não se encontra quem suporte estar acima da opinião mundana. No caso de Denser, porém, temos uma escritora que não entrega o que seu leitor pede, preferindo cometer delitos inafiançáveis contra o mundo e contra si. Creio que somente Mirisola, para o bem e para o mal, vem realizando uma façanha semelhante. À parte a diferença de gênero, os temas de ambos são praticamente os mesmos: sexo cafajeste, cinismo constante, solidão, frustrações na busca por amor, comportamento niilista, e uma crítica feroz que termina em desprezo por todos, a começar por aqueles que levam para a cama. Diante de uma empreitada dessas, não é surpresa que Márcia jamais tenha recebido um prêmio, ou que até hoje Mirisola apanhe da crítica a cada livro, por mais que os dois exibam um primor técnico que tranquilamente os colocaria entre aqueles que melhor dominam a língua portuguesa.
Márcia recorre com freqüência a longos períodos, muitas vezes ocupando um parágrafo inteiro, onde a profusão de sensações nos apresenta um universo pessoal que somente a inteligência e a poesia salvam do colapso. Ela extrai do ritmo uma expressividade que poucas vezes se vê na literatura, sabendo controlar a velocidade e variar as tensões. Há escritores que conhecem muito bem a forma, outros que exploram o conteúdo com vigor, e mesmo os que sabem lidar com as duas coisas; mas é raro quem conheça tão bem a relação íntima, orgânica, entre uma e outra. Seu ambiente natural é o conto, onde realiza a arquitetura de maneira tão cuidadosa que citar trechos isolados não faria jus ao edifício. Quem acaso nunca leu Diana caçadora, sua obra-prima, que procure um exemplar e confira. É uma injustiça que este livro não seja considerado tão obrigatório quanto, por exemplo, Obscena Senhora D da Hilda Hilst.
Tal como em Henry Miller, é seu próprio corpo que emerge das páginas, fazendo das palavras um jogo contínuo de sedução. Ao aproximar o carnal e o sublime, ela nos oferece uma escrita que é toda potência e audácia. Como revelou recentemente, houve um momento em que ela se confundiu com a personagem, Diana Marini, o que talvez nos ajude a entender como seus contos nos parecem tão vivos. Há quem se choque com tudo o que ela viveu: os porres, os desaforos, as drogas e o repertório eclético que abarca latin lovers, poetas picaretas, mecânicos, burocratas, escritores de renome, motoqueiros, jovens tietes, entre outros. Ela foi fiel aos seus desejos, não se limitando a um nicho específico, superando seus próprios preconceitos. Quantas pessoas conhecemos, hoje, que se permitem tamanha entrega, seja na vida ou na arte?
Se, no conto Tigresa, ela mostra o quanto se decepcionou com a juventude dos anos 80, uma geração depois da sua, gostaria muito de saber o que ela pensaria da minha. De modo geral, o que tenho encontrado nas baladas e botecos é gente ainda mais previsível, mais blasée, apática, e que está sempre incorrendo no velho problema da forma desconectada do conteúdo... Inadvertidamente, eis que me vejo correndo o enorme risco de me deixar embriagar por La Denser. Aconteceu ao longo do artigo, sem qualquer prevenção: percebo-me desprezando dois terços da humanidade e odiando o terço restante, tal como ela admitiu em seu encontro com Fernando Coelho/Lobo Antunes. Deve ser por isso que ela nunca ganhou um prêmio, já que definitivamente desperta nosso pior lado.
Não creio, porém, que a crueldade seja a força motriz de sua poética, nem de sua vida. Um conto que nos ajuda a compreendê-la melhor é O animal dos motéis. Os espelhos no teto nos apresentam um casal no motel que se satisfaz fisicamente, apesar de não terem uma comunicação que vá muito além disso. Diana tenta puxar conversa e alude a uma história de Hemingway, em que um toureiro precisa acertar sua espada no local exato do dorso do animal. O ponto é do tamanho de uma moeda de prata - um toureiro experiente não costuma errar, porém este falha consecutivamente . Logo vemos que se trata de uma parábola sobre o amor. Tanto no amor como na tourada, não seria diferente a precisão necessária para acertar esse ponto exato em que o bicho é subjugado pelo homem. Cito apenas um trecho: Como se fosse possível o amor, como se fosse muito fácil, muito simples. Possível. Fácil. Simples. Do tamanho de uma moeda de prata. Uma fresta úmida. O ponto exato. Amor. Segundo Diana, o toureiro passa muito perto da morte por várias vezes, mas sequer a "merecia". Amor e morte aqui são colocados em equivalência, e tendo Márcia seu lado mistíco, não é bobagem pensar numa ressonância de Kali, a um só tempo deusa-mãe e ceifadora.
Por mais que se trate de uma femme fatale, em todas as narrativas de Márcia notamos uma vontade de compreensão mútua, de carinho, de entrega a dois. Contudo, esse anseio acaba invariavelmente frustrado, e o conto se faz uma tentativa de lidar com a decepção. O maior problema é que talvez o amor seja parecido com a morte: é preciso abdicar de algo para existir em par. O pré-requisito seria um abandono de si – mas Márcia é essa raridade, uma escritora que não faz concessão alguma, que não quer mentiras, que nem mesmo para se proteger se afasta de sua verdade. Ela se deixa arranhar pelos chifres do touro, é pisoteada pelos cavalos, sangra, flerta com a morte, e apesar de tudo continua procurando o ponto exato. Não o encontra porque não merecia? O tamanho é o de uma moeda de prata, o que logo de cara exclui andar de mãos dadas e o sentimento longe, em outro país, outro tempo, como em tantos relacionamentos que só parecem amor para quem vê de fora. Márcia não quer uma sodoma de mentiras, tampouco se abster de enfiar a mão nas gangrenas alheias, senti-las como suas. Por mais frenética que seja a caçadora, encontrar o buraco negro, o corte no tempo ao atravessar a carne é projeto temerário. O mais próximo do abandono fatal que ela atingia era o orgasmo, por isso a caça constante, que nem sempre requer afinidade especial com o parceiro – e daí tanto desprezo após o ato. No entanto, na literatura, jamais dissociada da vida, ela consegue se prolongar, dar um passo a mais, e construir com as palavras um encontro com toda a plenitude que lhe foi negada. O absoluto não está na trama, na ação, menos ainda nas personagens – mas no próprio erotismo de sua linguagem.
Há pouco tempo foi lançado Toda Prosa II, que reúne alguns contos inéditos e textos selecionados. O livro dá continuidade a um movimento de resgate de sua obra, que se iniciou com a inclusão de dois contos seus nos Cem Melhores Contos do Século XX, por iniciativa de Ítalo Moriconi, e prosseguiu com o relançamento de Diana Caçadora e Tango Fantasma, além, é claro, do primeiro volume de Toda Prosa. O destaque da nova coletânea é O quinto elemento, onde a autora expõe como o uso de anfetaminas elidiu a distância entre Márcia Denser e seu alter ego. Foi sob esse êxtase que ela largou um emprego estável para viver em período integral o sonho literário. Infelizmente, o resultado foi um longo ostracismo, ao descobrir com amargura que "vida e literatura não se premedita". Outro ótimo momento do livro é Todos os amores, que também funde Márcia Denser e Diana Marini, a segunda mais intimidadora que a primeira, as duas sedentas por um espelho onde a deformidade se convertesse em perfeição. Este conto encerra o livro com tamanha dignidade que já não deixa dúvidas: se La Denser teve seus anos de obscuridade, não poderá mais ser esquecida facilmente.

6.27.2008

De Leonardo




Tirei estas fotos há poucas horas, quando saí na rua para fumar um cigarro. De manhã eu estava justamente lendo sobre Piero Manzoni e aquela esperteza dele, assinar as pessoas como estátuas vivas e cobrar pelo certificado. Ele chegou a assinar o mundo como um objeto de arte, e eu, que me recuso a fechar qualquer teoria antes de pensar sem preconceitos, estava tentando entender se me interessa ou não levar a sério aquele italiano de sorriso sacana.

Deparar-me com esta surpresa na rua foi uma sincronicidade incrível, porque me rendeu uma boa resposta para essa pergunta - e para outras que vêm e voltam na minha cabeça, tal como o mar em ressaca. O caso é que um Leonardo qualquer, certamente não o Da Vinci, assinou a árvore como presente para a namorada. Não parece ter sido obra de um artista, mas de alguém com alma poética o bastante para um gesto romântico e criativo. A assinatura não foi Para o comprador, mas para a Valentina, uma garota qualquer, que eu torço para que faça jus ao nome.

O ponto a que eu quero chegar é que a verdadeira fusão entre vida e arte se dá no espaço da vida. Tanto faz se na intimidade de pessoas amigas ou no campo social, nas relações interpessoais ou consigo mesmo, desde que na esfera da realidade. Por outro lado, se o referencial é a arte, se o receptor ideal é um crítico de arte, se a intenção é entrar em um livro chique com Duchamp e Beuys no meio, a fusão entre vida e arte só pode ser precária e artificial. Revolto-me sempre que vejo a vida etiquetada em um espaço de arte, mas me comovo ao ver um pouco de arte na vida das pessoas. Precisamos de boa arte como inspiração, como um poderoso estimulante para nos reinventarmos - arte não é o que vale mais que a vida, mas o que a faz vibrar desde fora.

Lembrei de outra coisa, por conta do nome na dedicatória, uma história meio maluca. Em 1999, eu estava na terra de Manzoni, na Itália, um pouco entediado com as pessoas que eu vinha conhecendo nos albergues. Decidi então criar um jogo: durante uma semana eu me chamaria Leonardo. Não em homenagem ao renascentista, mas porque eu gosto da sonoridade do apelido, Leo. E não sou o único: logo depois conheci dois americanos desengonçados que adoravam pronunciar Leo, my buddy!, e não demorou para que uma mestiça se apaixonasse pelo meu personagem. Tenho minhas dúvidas se o Ivan seria tão popular quanto o Leo - um nome é como uma roupa, e Leo, que evoca regiões ensolaradas, nada tem em comum com um hibernal Ivan, tão russo e tão seco. O Leo foi marcante para aquela garota, metade holandesa metade taiwanesa, a ponto de, tempos depois, mandar um cartão de Valentine's day para o Brasil. Não sei se ela daria risada ou me amaldiçoaria se soubesse o que eu fiz, mas, se eu não fui muito verdadeiro com ela, ao menos lhe dei uma semana de fantasia. Quem sabe o pseudônimo não me ajudou a ser mais simpático do que eu seria? Foi uma semana bem lúdica, eu descansei de mim mesmo, pude me reinventar, e devo tê-la encantado justamente porque estava o tempo todo jogando.

Voltando ao Leonardo da Valentina, acho que o gesto dele foi mais poético (mais sincero) do que o de Manzoni, oferecendo a árvore para sua namorada em vez de para um crítico de arte. Quanto à minha mentira, ouso dizer que teve algo de "artistíco" nela. Mas deixaria de ter se, ao final daquela semana, eu dissesse algo assim para a garota: "Querida, não leve a mal, estou tentando levar ao limite a reflexão sobre arte, e, entenda, arte se funde a vida, você sabe, esses experimentos são importantes, pense no lado bom, você vai entrar comigo para a história da arte, não é bacana? É isso, meu bem, a ficção e a realidade, sabe, mesmo assim eu adorei ficar com você." Tenho plena consciência de que isso seria aceitável para o mercado de arte, e provavelmente me renderia um trocado. Mas prefiro contar esta história como um caso, não como obra.