10.20.2008

Entre o agora e o nunca

Prefácio de Puro Enquanto, por Yudith Rosenbaum.

O que ocorre durante o estado de coma de alguém que tentou se matar ao saber que foi traído?
É em torno desse núcleo, construído entre a vigília e o devaneio, que se organiza a trama de Puro Enquanto. O tema da traição, de tão longa tradição na literatura, ganha aqui um tratamento singular, visto pela perspectiva madura de um jovem autor, interessado em devassar o submundo das paixões, descortinar a nebulosa das convenções sociais, revelar – com uma linguagem cristalina e potente- o que se esconde sob o verniz da hipocrisia social.

Para isso, Hegenberg não poupa o leitor e o convoca a uma jornada multifocal: o sono acordado do protagonista é o plano onde se entrecruzam um narrador em terceira pessoa, que cede sua voz ao discurso indireto livre da personagem, marcando uma oscilação constante entre quem vive e quem conta. Ora o sujeito em coma é visto de fora (talvez por ele mesmo, travestido em narrador onisciente), ora por dentro, trazendo ao vivo sua mistura de sensações antagônicas, fantasmas, visões, insights.
Essa trama de vozes acaba por revelar um protagonista ressentido, fracassado, algumas vezes paranóico, agoniado de amor e ódio contidos. Dividido entre a paixão pela infiel Larissa e a amizade apaziguadora de Michele, ele relembra e funde cenas infantis e atuais, compondo um retrato duro e desencantado da vida urbana contemporânea, tocada por uma sensibilidade singular:

O bípede-homem passou o dia inteiro andando, agora precisa dormir. Desde que o sol se levantou até depois do início da noite, nada mais fez do que trabalhar e caminhar - por todas as ruas, pelos shoppings, comprando coisas, pagando contas, resolvendo problemas. Essa inepta matéria viva em forma de gente abusou das pernas, precisa do repouso, e por isso se aninha, encolhe os membros, para que a realidade externa se desacelere e permita um pouco da dulcíssima magia do sono. Sabedoria atávica do sono. A energia recomposta se aconchega como um segundo cobertor, e ele suspira, feliz como um gato ronronando.

Como se vê, não há apenas crueldade nesse narrador rejeitado pela volúvel Larissa, assediado por uma mãe lasciva (o aspecto incestuoso do romance é explícito) e um pai a quem dedica a sede de vingança. Também de indulgência e poeticidade se faz o olhar desse personagem, tão bem construído por Hegenberg. Aliás, a prosa tende ao poético a tal ponto que as frases discursivas vão perdendo referencialidade para assumirem a poesia como fundo primordial da narrativa:

Fogos de artifício são gritos coloridos para a cidade inteira ouvir
Uivos de lobos se harmonizam com a celebração
Os raios que rasgam ao vento são como veias mostrando que
mesmo no invisível circula sangue
O mar incrivelmente dourado
sereno como o mais límpido céu
O céu turbulento treme
como ondas marítimas em dia de fúria



O relato se compõe, também, em diálogo com a linguagem plástica - são pinturas do artista/escritor, entremeadas ao longo do enredo. Da abstração ao figurativo, as telas acompanham o emergir do sono à vigília. Palavra e imagem buscam espaço num mundo corrompido e ameaçador, onde o sujeito se encapsula para sobreviver. Na contramão de uma suposta ordem regrada da vida, violência e erotismo (mais fantasiados do que atuados) desagregam a face plácida das coisas. E para alertar-nos da atualidade desse universo fechado e sufocante, o texto se faz quase todo no presente do indicativo, “puro enquanto” de um tempo absoluto.

A prosa urbana de Hegenberg se mostra afiada, pulsante e promissora de um lugar forte na narrativa brasileira. Um romance para mostrar que Esta é a metrópole dos altos papelões enrugados. A noite jamais tem estrelas. Escuridão monocromática, apenas.


Aguardem. Agora só falta diagramar e imprimir - o tempo é curto, mas vou tentar lançar ainda este ano.

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