6.27.2008

De Leonardo




Tirei estas fotos há poucas horas, quando saí na rua para fumar um cigarro. De manhã eu estava justamente lendo sobre Piero Manzoni e aquela esperteza dele, assinar as pessoas como estátuas vivas e cobrar pelo certificado. Ele chegou a assinar o mundo como um objeto de arte, e eu, que me recuso a fechar qualquer teoria antes de pensar sem preconceitos, estava tentando entender se me interessa ou não levar a sério aquele italiano de sorriso sacana.

Deparar-me com esta surpresa na rua foi uma sincronicidade incrível, porque me rendeu uma boa resposta para essa pergunta - e para outras que vêm e voltam na minha cabeça, tal como o mar em ressaca. O caso é que um Leonardo qualquer, certamente não o Da Vinci, assinou a árvore como presente para a namorada. Não parece ter sido obra de um artista, mas de alguém com alma poética o bastante para um gesto romântico e criativo. A assinatura não foi Para o comprador, mas para a Valentina, uma garota qualquer, que eu torço para que faça jus ao nome.

O ponto a que eu quero chegar é que a verdadeira fusão entre vida e arte se dá no espaço da vida. Tanto faz se na intimidade de pessoas amigas ou no campo social, nas relações interpessoais ou consigo mesmo, desde que na esfera da realidade. Por outro lado, se o referencial é a arte, se o receptor ideal é um crítico de arte, se a intenção é entrar em um livro chique com Duchamp e Beuys no meio, a fusão entre vida e arte só pode ser precária e artificial. Revolto-me sempre que vejo a vida etiquetada em um espaço de arte, mas me comovo ao ver um pouco de arte na vida das pessoas. Precisamos de boa arte como inspiração, como um poderoso estimulante para nos reinventarmos - arte não é o que vale mais que a vida, mas o que a faz vibrar desde fora.

Lembrei de outra coisa, por conta do nome na dedicatória, uma história meio maluca. Em 1999, eu estava na terra de Manzoni, na Itália, um pouco entediado com as pessoas que eu vinha conhecendo nos albergues. Decidi então criar um jogo: durante uma semana eu me chamaria Leonardo. Não em homenagem ao renascentista, mas porque eu gosto da sonoridade do apelido, Leo. E não sou o único: logo depois conheci dois americanos desengonçados que adoravam pronunciar Leo, my buddy!, e não demorou para que uma mestiça se apaixonasse pelo meu personagem. Tenho minhas dúvidas se o Ivan seria tão popular quanto o Leo - um nome é como uma roupa, e Leo, que evoca regiões ensolaradas, nada tem em comum com um hibernal Ivan, tão russo e tão seco. O Leo foi marcante para aquela garota, metade holandesa metade taiwanesa, a ponto de, tempos depois, mandar um cartão de Valentine's day para o Brasil. Não sei se ela daria risada ou me amaldiçoaria se soubesse o que eu fiz, mas, se eu não fui muito verdadeiro com ela, ao menos lhe dei uma semana de fantasia. Quem sabe o pseudônimo não me ajudou a ser mais simpático do que eu seria? Foi uma semana bem lúdica, eu descansei de mim mesmo, pude me reinventar, e devo tê-la encantado justamente porque estava o tempo todo jogando.

Voltando ao Leonardo da Valentina, acho que o gesto dele foi mais poético (mais sincero) do que o de Manzoni, oferecendo a árvore para sua namorada em vez de para um crítico de arte. Quanto à minha mentira, ouso dizer que teve algo de "artistíco" nela. Mas deixaria de ter se, ao final daquela semana, eu dissesse algo assim para a garota: "Querida, não leve a mal, estou tentando levar ao limite a reflexão sobre arte, e, entenda, arte se funde a vida, você sabe, esses experimentos são importantes, pense no lado bom, você vai entrar comigo para a história da arte, não é bacana? É isso, meu bem, a ficção e a realidade, sabe, mesmo assim eu adorei ficar com você." Tenho plena consciência de que isso seria aceitável para o mercado de arte, e provavelmente me renderia um trocado. Mas prefiro contar esta história como um caso, não como obra.

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