8.08.2008

E fez-se o escuro!

Conheci na faculdade Sofia Borges, que hoje tem uma boa exposição de fotografias na Maria Antônia. Não é a primeira vez que vejo fotos dela, mas a primeira em que elas me impressionam. Estão mais sombrias, impenetráveis, ao mesmo tempo mais sedutoras do que qualquer outra que ela tenha exposto. Curioso é que, diante desta nova fase, não consigo tirar da cabeça uma conversa que tivemos em um ateliê da ECA, anos atrás. Eu lhe dizia que mal me reconhecia ao olhar para trás, tamanha a velocidade com que vinha me transformando. Ela, completamente cética, insistia que ninguém jamais muda, que a essência é a mesma por toda a vida.


Não posso dizer que conheço a Sofia muito profundamente, mas algo de sua trajetória eu acompanhei, e creio que esta, por si só, derruba a velha crença no essencialismo. Ela se transferiu para as Artes Plásticas partindo de uma faculdade de moda, nem por isso mostrava os trejeitos de quem segue naquela área. Parecia uma boneca, nada afetada mas graciosa, com suas blusas listradas, macacões, o cabelo loiro e os olhos azuis. Suas fotos também eram bastante claras, transmitiam inocência. Mesmo uma série em que ela deixava à mostra seu próprio corpo me parecia singela – fotos pequeninas, ela se enrolando toda em posições fetais, uma nudez que talvez preferisse o útero ao sexo adulto. Com o passar dos anos, uma dissonância começou a se fazer ver em suas imagens, mas ainda com elementos contornáveis, ainda preservando uma ternura reconfortante. O período de transição me pareceu bastante confuso, como que primeiros passos vacilantes. A maneira de se vestir também foi mudando, tornando-se mais dark, embora não fosse nas roupas que a expressão se transformaria com maior contundência.
Com a mostra em cartaz na Maria Antônia, os caminhos que ela se dispõe a percorrer ficam mais evidentes. A distorção das lentes puxando a gravidade para baixo, águas de um verde radioativo, objetos em desencontro, olhares fugidios e corpos que a câmera falha em aprisionar são alguns sinais de seu novo universo. Por mais que o computador entre para manipular todo o conjunto, há uma tensão que o Photoshop não concilia, a beleza maior estando naquilo que a imagem não paralisa. O tempo de exposição é grande, ao menos 15 segundos os modelos se detiveram em pose rígida – em várias imagens o modelo é a própria Sofia – enquanto o espectador, por mais voyeur que seja, mal retém o que se configura diante dos olhos. Há apuro técnico, inclusive tecnologia, e uma estranha harmonia, mas o prazer estético que as fotografias proporcionam nem de longe significa que elas se deixam capturar. Os cenários são banais, quartos de dormir, uma cozinha, uma piscina, um banheiro, no entanto os objetos, sejam utensílios domésticos ou pessoas seminuas, estão cada um em uma temporalidade diferente. A diferença de luminosidade que sofrem denuncia que são incompatíveis, que a coexistência entre as partes é precária – mesmo assim insistem em ressoar umas sobre as outras.
Em uma entrevista, Sofia falou em esquizofrenia ao descrever seu trabalho. Ela não emprega a palavra no sentido mais deleuziano, mesmo assim se percebe a quebra de barreiras, a tal da desterriorialização. É isso o que me entusiasma diante de uma boa obra de arte, o fato de escapar a categorias pré-definidas. Claro que sempre se pode interpretar as imagens de muitas maneiras, e não é fácil saber se cometemos uma violência ou um acréscimo com a incursão intelectual. Pode-se, por exemplo, analisar em um nível metalinguístico: na foto de um quarto de dormir uma cortina é saturada e faz-se tão escura quanto o pano que protege um laboratório fotográfico da luz externa; em outra imagem, Sofia opera um cortador de papel com tamanha ausência de espírito que parece prestes a decepar a mão. Poderíamos enveredar por esse caminho, pela hesitação quanto a renunciar ou não aos aspectos artesanais da criação. Ou então, detendo-se no formalismo: são estabelecidas relações internas entre objetos os mais díspares, em especial o fulgor das costas nuas, de um dourado quase tão metálico quanto uma panela cujo brilho se destaca no meio da pia. Ou psicologicamente: em um banheiro, as toalhas adquirem maior nitidez que o corpo feminino; por mais que o decote esteja aberto, a promessa carnal é tão perturbadora que a mente neurótica tem o foco na higiene. E, se quisermos, temos também a situação política: pode-se falar no quanto toda imagem ludibria seu consumidor, no quanto de mistificação há na imagem que o espectador crê resolvida, capturada, representativa da realidade. No entanto, se houve ao menos 15 segundos de diafragma aberto, o que se passou nesse tempo é muito mais do que o instante apresentado.



O que mais importa não é o enfoque específico, mas o fôlego que tem a obra para nos instigar. Ao situarmos a série de Sofia em um contexto que inclua toda a arte conceitual, o contraste com o que tem sido feito é notável. A quase totalidade dos artistas contemporâneos parece satisfeita em se deixar reduzir por um discurso, por uma “explicação”, em uma perfeita submissão à crítica. A despeito do que a Sofia me disse anos atrás no ateliê da faculdade, suas fotografias me provam que algo se transforma, algo se movimenta para além do previsível. Se não há um impulso desse tipo a obra não sobrevive à dissecação, e torna-se inócuo falar em resistência, torna-se ridículo acreditar que a arte valha mais do que o encarte em anexo. Uma forte intuição parece ter guiado a artista, mais do que a descrição pedagógica de problemas já conhecidos por quem é do meio. Uma boa notícia, diante de obras como a dela, é que a abnegação não tem nada de necessário – ou seja, ninguém precisa se contentar apenas com a forma ou apenas com o conteúdo. Não é preciso ser deleuziano para lamentar que a esquizofrenia, melhor dizendo, o desejo que não se detém nos territórios, pouco tem estimulado os artistas. É somente na confluência de muitos aspectos simultâneos que uma obra não se deixa dominar, e o interessante na série de Sofia Borges é que ali se fez o escuro. Quem já revelou em um laboratório entenderá a parábola: a luz mesmo, quando intensificada, cria zonas de escuridão.



Fotografias – Sofia Borges
visitação 20 jun a 24 ago 2008
ter a sex, das 12h às 21h
sáb, dom e feriados, das 10 às 18h
visitas monitoradas agendamento no 11 3255 7182
entrada gratuita
Local:
Centro Universitário Maria Antonia - USP
Rua Maria Antonia, 294 Vila Buarque
01222 010 São Paulo SP
tel 11 3255 7182
fax 11 3255 3140
E-mail: mariantonia@edu.usp.br
web: http://www.usp.br/mariantonia/

No comments: