10.15.2010

Diagnósticos diferenciais para uma arte em crise

Alguns reclamaram por eu estar me despedindo de L'Enfant Le Terrible. Se servir como prêmio de consolação, reuni meus melhores textos sobre arte em uma espécie de livroblog, Diagnósticos diferenciais para uma arte em crise. Para quem quiser conhecer o tratamento de última geração, a casa está aberta. Mais ou menos a metade do livroblog é inédita, outra metade circulou por aqui e por outros canais. Todos os textos foram revisados, ganharam imagens e links para outros endereços para facilitar a vida de vocês. Aliás, achei que lidos em conjunto eles fazem muito mais sentido do que quando ficavam dispersos. Os dois blogs ficam melhores assim - mesmo este aqui, fica mais ligeiro depois da partilha de textos.

Em L'enfant Le Terrible, ainda quero postar uma Nota final. Assim que eu tiver tempo.
Não se sintam abandonados, ok? Pode não ser aqui, mas vocês ainda vão receber notícias de mim de outros lugares, online e offline.

Abraços

10.03.2010

Qual revolução?

Antes de encerrar o blog, vou tentar deixar um pouco mais clara minha visão política a quem possa interessar. A melhor maneira de transmitir o conflito em que fico a cada eleição é lembrando que nasci em 14 de julho. Ou seja, mesmo dia da Queda da Bastilha e do nascimento de Buenaventura Durruti. O momento decisivo da Revolução Francesa, que espalhou o espírito democrático para todo o planeta, inclusive em nossas terras; e aniversário do maior guerrilheiro anarquista, figura heroica daquela que talvez tenha sido a luta mais libertária de que temos notícia, a Revolução Espanhola. A coletivização de terras em Aragão e a ocupação de órgãos estratégicos na Catalunha durou pouco demais para que soubéssemos o quanto uma sociedade seria capaz de se manter fielmente anarquista. A democracia, por outro lado, tem sido praticada há tempo demais para que não sintamos que é intrinsicamente falha.

As pessoas costumam associar anarquismo com desordem, mas quem poderá dizer que é harmonioso o processo democrático em nosso país? Não ficou definido sequer o que haverá com os votos assinalados para os candidatos ficha suja, decisão que foi jogada para depois da convocação às urnas. Claro que nenhuma decepção pode ser mais engraçada do que a de quem fizer questão em votar em um político sob litígio e não puder ter confirmado seu desejo inabalável de ser enganado. A Lei da Ficha Limpa é, de longe, o fato político mais importante destas eleições, muito mais do que a figura que vier a assumir o poder, seja ela quem for. O Projeto Ficha Limpa nos oferece um mínimo de esperança, nem tanto por coibir candidatos criminosos, mais por ter sido uma iniciativa popular. Alguém consegue imaginar um projeto como esse sendo proposto pelos deputados e senadores, restringindo sua própria festa? 

Os políticos no Planalto supostamente representam aqueles que neles votaram, no entanto jamais contrariarão seus próprios interesses. Não há como esperar algo muito diferente, pois representam em primeiro lugar aqueles que patrocinam suas campanhas e estes obviamente vão querer algum retorno. A elite econômica sempre será atendida antes do povo, mesmo por governantes que tenham vindo das classes populares. Para chegar ao poder, Lula moderou seu discurso, fez alianças com a direita, foi conivente com a corrupção no congresso, manteve relações das mais ambíguas com Daniel Dantas, entre outros fatos lamentáveis. Mas como poderia ter sido diferente? O famoso comentário de Lula não deixa de ser um desabafo: no Brasil até mesmo Jesus teria que fazer acordos com Judas. E completa: "entre o que você quer e o que você pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico". Não dá para criticar Lula sem criticar o sistema, estamos falando de realpolitik.

Justamente por ter visto a velocidade com que o PT foi se deformando conforme saia da oposição para a situação, não consigo me entusiasmar muito por nenhum projeto partidário. Mesmo os que se mantiveram mais à esquerda, não poderão crescer tanto quanto o PT sem fazer concessões semelhantes. Não gosto de generalizações, não acho que todos os políticos sejam iguais, mas mesmo que alguns se salvem individualmente, não dá para ignorar que a tendência natural do sistema é se manter injusto, manipulador e covarde. Algumas melhorias os políticos mais progressistas podem propiciar, até o Plínio admitiu isso - mas é pouco, velhos hábitos tendem a se cristalizar.

Por outro lado, uma experiência como a da Ficha Limpa, impulsionada pela internet, aponta para possibilidades de uma democracia mais direta. Quanto mais as pessoas se politizarem, quanto mais sentirem que seu papel nas decisões vai muito além da escolha dos candidatos, menor nossa dependência do governo para mudar o país. Sou um tanto cético quanto a derrubada do Estado à força, mas vejo em certas iniciativas populares algo que muito agrada meu lado Buenaventura Durruti. Não é a extinção do Poder Central, não é o fim da exploração dos ricos sobre os pobres, mas maneiras de colocar o establishment sob tensão. Com uma melhor distribuição do poder, pode vir uma melhor distribuição de todos os recursos.

Em Totem e tabu, Freud conta de uma tribo na África onde o rei era espancado por seus súditos antes de assumir a coroa. Ele não deixava de ser amado por seu povo, mas na mesma proporção que era odiado. Pode parecer uma prática primitiva, mas me parece conter sabedoria. Tenho pensado em amadurecimento político como uma conciliação dos dois 14 de julho. O espírito revolucionário da Queda da Bastilha não pode se apagar com a democracia instaurada, pois para que haja verdadeira democracia, com oportunidades para todos, é vital que o povo saiba "anarquizar" sempre que contrariado. Não basta votar no seu candidato favorito, por melhor que você conheça sua trajetória, ou mesmo por melhores que sejam as intenções dele. O jogo do poder é podre demais para ficar tranquilo com isso, para achar que o voto indireto garanta os interesses do eleitor. Para o bem da democracia, é preciso saber confrontá-la.

8.31.2010

Mais leve

Eu estava dando uma olhada na pasta de rascunhos para ver o que ainda quero publicar antes de encerrar o blog. No meio dessa faxina, reencontrei este texto do ano passado. Deve ter parado no meio dos rascunhos sem querer, é um post de que gostei muito. Era de agosto de 2009, quase exatamente um ano atrás.

Não é só porque minha mãe se recuperou completamente da cirurgia. Não é só porque meu pai, que estava sob suspeita de câncer, recebeu um diagnóstico bem mais suave. Não é porque finalmente lancei o livro em que eu trabalhei por dez anos. Não é apenas o Brasil saindo da crise, ou mesmo a arte querendo sair da crise. O melhor é aquilo de que estou lembrando, e de que eu nunca deveria ter me esquecido.

Sobre a leveza. Ela, que parecia me escapar pelos dedos. Reencontro-a como a uma amiga íntima de quem conheço as histórias mais inusitadas. Eu quase me esquecia onde ela faz a morada. Não é no coração dos ignorantes ou entre os sedentos de poder. Tampouco um privilégio das crianças. Com quem aprendi sobre a leveza? Inesperadamente, com artistas e pensadores os mais subversivos. O sorriso falso não convence, não como os que ensinam malabarismo com o mundo às costas. Os inquietos podem parecer densos, tocando nas feridas, rompendo o que é estável, invertendo perspectivas – mas o fazem porque são ágeis o bastante, porque encontram força.

Nietzsche, por exemplo, o filósofo das marteladas, não é ele também o mais sutil? As marteladas, um bom tradutor já apontou, são perscrutações no corpo, pequenos toques para compreender reflexos. Seus livros estão além do bem e do mal, mas para ele o pensamento é “algo leve, divino, e intimamente aparentado à dança e à exuberância.” O mais corrosivo dos pensadores definiu a si mesmo como um bufão. Nossa época é cética demais para captar tais nuances, mas é aí que está a mais doce sabedoria.

Ou então, Clarice Lispector. Ela que vai da delicadeza ao soco no estômago, ela que se humaniza e se desumaniza nas mais inquietas metamorfoses... “Estremece em mim o mundo”, ela diz, mas “não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo”. Só na coragem de atravessar as piores tormentas é que se amplia o espírito o bastante para longas viagens.

Então podem retrucar: “leveza, nesse mundo sórdido? E as pessoas morrendo, e as guerras, e a injustiça?” Aí mesmo que é preciso não se deixar abater. O oncologista que trata doentes terminais, um guerrilheiro que combate o fascismo, o promotor que desafia a banda mais podre do poder... ou o fazem para aliviar o mundo do excesso de peso, ou seus gestos são inúteis. Seriedade não é manter os lábios constritos. Mesmo Kafka, tão obscuro, lia seus contos às gargalhadas com os amigos. É preciso rir com Kafka, já dizia Deleuze.

Arte e pensamento valem quando propiciam sobrevoos. Viajando de balão ganhamos a paisagem do alto, mas para isso é preciso dominar a gravidade. É preciso esforço de construção: o preparo do envelope, a tensão das cordas, o equilíbrio das formas, e – porque somos leves mas não levianos – o manejo do fogo.

8.04.2010

Não subestimar o rock

Quando se fala de Beatles, é fácil. Todos se sentem à vontade para dizer que eles entraram para a História, que realizaram uma revolução dentro e fora da música. Seja pelo impacto que exerceram sobre jovens contestadores em todo o planeta, seja pela sofisticação dos arranjos de A day in the life ou I am the walrus, poucos duvidam que eles serão lembrados por gerações ainda por vir. No entanto, curiosamente, o grupo de Liverpool não conseguiu estender o mesmo reconhecimento para outras bandas de rock que estiveram à sua altura. O jazz ou a bossa nova, por exemplo, são gêneros com status bem mais confortável, recebendo elogios de maestros notáveis e entrando facilmente nas estantes dos intelectuais. Para os guardiões do bom gosto, Beatles é totalmente aceitável, porém Beach Boys, 13th Elevator Floor, The Who, Jefferson Airplane, Rolling Stones, Elvis Presley ou Chuck Berry já lhes soam como um som mais adolescente, menos sério. E nem se dispõem a notar que as canções de Lennon e McCartney são impensáveis sem o intenso diálogo com todos esses.
Talvez seja um mérito dos roqueiros. Eles não se importavam com o que os acadêmicos ou os bons cidadãos iriam pensar, e grande parte de sua energia vem de sua independência. Mas muito se engana quem crê que a História do rock pertence ao mero entretenimento. Os conservatórios se apegam demais à etimologia da palavra, ao menos quando julgam que a verdadeira música é apenas a que os velhos homens de peruca compunham. Da boca para fora, era essa a opinião expressa de Frank Zappa, mas por algum motivo, ele pegou a guitarra, ligou na tomada e preferiu inovar do que diluir o que já pertence a outra época. Jon Lord, tecladista do Deep Purple, também tem formação erudita e se mostrou bem à vontade em Concerto For Group and Orchestra. O renomado Philip Glass criou composições inspiradas em David Bowie e Brian Eno. Miles Davis bebeu do rock para chegar a um de seus melhores trabalhos, Bitches Brew. John Cale trocou a sonolência de La Monte Young pelo Velvet Underground, com Lou Reed.

E, no entanto, ainda aquela desconfiança, a sensação de que um pianista de fraque sempre nos levará mais longe do que um cabeludo tentando revirar cordas de aço do avesso. Para colocar um pouco de preconceito neste artigo – ou melhor, para não ceder demais ao relativismo – na minha opinião, a música pop mais rebolante dificilmente consegue. Pode-se selecionar as loiras mais provocantes, abusar da iluminação, da maquiagem e dos efeitos especiais, juntar dezenas de bailarinos para acompanhar, e pouco importa, o resultado sonoro será banal, previsível, reduzido a fórmulas batidas, e portanto a bilionésima execução do pianista de fraque continuará tendo algo mais a dizer.

Posso estar sendo preconceituoso, mas não sou o único por essas paragens. Beatles como a única banda de rock que merece ser lembrada? Só chegaram à unanimidade porque se passaram por bons moços. Nem mesmo as experiências com ácido – Lucy in the Sky with Diamonds – ou a língua cada vez mais ferina de John apagaram totalmente a primeira impressão do grupo, quatro rapazes de sorrisos inocentes que pediam tão gentilmente para hold your hand. Para muita gente, não cai a ficha de que eles também cantavam Live and let die, ou que Yesterday era a véspera de the dream is over. A fase inocente dos Beatles, a meu ver, só fica interessante quando vista em retrospectiva – entender que Lennon, mesmo divulgando All you need is love, sempre foi de uma inquietude excepcional. Não foi por falta de tentativa que ele não conseguiu destruir sua imagem inicial, à qual os saudosistas se apegaram.

                                        The Who em Monterrey

Já Rolling Stones e The Who tiveram logo cedo uma imagem rebelde, rompendo decisivamente com a geração de seus pais e com os valores vigentes da sociedade. Depois deles, simplesmente não havia motivos convincentes para se retroceder à candura piegas de Love me do. Especialmente nos anos 70, talvez tenha havido algum exagero nas quebras de hoteis, nas brigas com a plateia, nas cusparadas, nas auto-mutilações e em sacrifícios animais no palco... mas a urgência por um novo ritmo de vida e a profanação dos valores estabelecidos não foi precisamente o que as vanguardas do início do século XX haviam considerado revolucionário? Os maiores intelectuais de Paris um dia celebraram Arthur Cravan, um espírito livre que transitava entre as artes e os ringues de boxe, com uma postura não menos impactante que a dos roqueiros. “Eu não desejo ser civilizado” era seu mote, e ressoava entre os artistas mais decisivos de sua época.

Claro que, ainda na linha erudita, tivemos rebeldes, como Schoenberg, Edgard Varèse, Harry Partch, John Cage, Pierre Boulez, Stockhausen, entre outros. Não são os mais apreciados nas salas de concerto, onde ainda imperam sons mais “puros”, os de Mozart, Bach, Beethoven e companhia. Nem quero dizer que não tenha algo de assustador na Quinta Sinfonia, mas é um terror sublime, ou seja, domesticado. Há uma brilhante representação de nossos medos, ainda assim, permanece dentro das margens de segurança. Se eu fosse marxista, empregaria agora a palavra “burguês”. Em vez de moralizar o discurso, vou traçar uma breve comparação com o modernismo nas artes visuais e na literatura. Minha questão é: se Baudelaire, Rimbaud, Artaud, Van Gogh, Picasso, os futuristas, os dadaístas, etc, hoje são admirados por sua ousadia, tanto na forma como no conteúdo, por que na música parece haver uma resistência tão grande a assimilar rupturas? Por mais que Beethoven tenha sido genial, não há uma certa covardia ao aceitar apenas os sons mais puros?

O que o modernismo buscou fazer é aproximar a arte do campo da vida. Quando Baudelaire flana pela cidade em busca de pequenos temas urbanos, mesmo que para isso tenha que andar por ruas sujas e mal iluminadas, ele começa a tirar a arte do limbo para torná-la mais palpável, mais próxima de nós. Walt Whitman faz poemas agitados sobre máquinas e homens comuns, Rimbaud apresenta-se como jovem indomável, Dostoievsky aborda mentes criminosas. Os temas sublimes são deixados de lado ou se misturam com o trivial e o maldito. Ao mesmo tempo, as palavras vão ganhando autonomia, ficam menos descritivas para que cada sílaba ganhe peso.

Os impressionistas, e logo depois Van Gogh, empastam a tela com grossas camadas de tinta para que o sublime desça à Terra, para que a beleza seja mais tangível. Os artistas vão renunciando à perspectiva, o que foi muito mais do que experimentar algo diferente. Abandonam o ponto de fuga para que o horizonte da arte não nos escape num universo distante, para que não nos esqueçamos completamente do chão em que pisamos. A tinta cria ilusão mas também passa a ser vista como matéria bruta. A fatura se revela, o processo de criação se desnuda. O que eles querem é negar a postura virginal da arte, unir corpo e espírito, e assim colocar a obra de frente para a vida – não acima.

Nesse quesito, na proximidade entre a arte e a vida, o rock foi longe. Traduziu em sons a era da eletricidade, a velocidade da metrópole, e até mesmo a poluição sonora, os motores, os telefones tocando, explosões, usinas, gritos, o caos da civilização em seu ritmo quase destrutivo. As máquinas apocalípticas de Tinguely são rock and roll. Assim como Tapiés, Cy Twombly, talvez Francis Bacon. Pode-se voltar um pouco mais no tempo e buscar raízes nas colagens cubistas, na fúria futurista, na arte de detritos do Merz, nos momentos viscerais do surrealismo, e por aí vai.

A rebeldia sem causa de fato não interessa, apenas daria argumentos a quem considera o rock ingênuo, adolescente; no entanto há muitas bandas que demonstram saber muito bem o que estão fazendo. Com todo respeito aos amantes do jazz e da música erudita, supor que basta seguir a tradição para fazer mais do que Pink Floyd, Radiohead, Sonic Youth ou, da safra mais recente, Battles, chega a ser provinciano. E mesmo algumas bandas que mal saiam dos três acordes, como The Clash e Nirvana, demonstraram uma inventividade e uma contundência exemplares. Philip Glass transmite sua mensagem com simplicidade, apostando na repetição, e com a mesma economia, essas bandas transmitiam musicalmente o sentimento sincero de muitos, sem domesticá-lo ou plastificá-lo.

Longe de mim defender que o rock seja formalmente mais elaborado do que a música erudita. Alguns guitarristas encaram uma competição no quesito virtuosismo, e talvez vençam na velocidade, mas isso é bem pouco interessante, é a técnica pela técnica. O ponto não é esse, como também nunca foi a habilidade técnica das telas de Miró. Uma sinfonia composta para dezenas de instrumentos certamente requer um domínio admirável, mas, assim como um pintor que imitasse Rafael, hoje em dia, diria muito pouco sobre as questões mais atuais, e assim como um poeta que escrevesse como Dante estaria apenas gozando solitário na torre de marfim, os compositores eruditos também devem se perguntar o que fazer para não estar fora de seu tempo. Alex Ross, na conclusão de O resto é ruído – escutando o século XX sugere aos compositores atuais combinarem sua bagagem com um ouvido mais atento às expressões avançadas da música popular, citando com muita naturalidade Sonic Youth, Radiohead e Velvet Underground. Ao menos em suas melhores manifestações, me parece que o rock abarca de modo exemplar certas questões contemporâneas. O rock se lança sem proteções ao que está além da música, diz sim ao mundo e o deixa entrar.

Barulho?

Um dos monstos mais inquestionáveis do cinema, Jean-Luc Godard, logo percebeu a ligação entre o rock e a mentalidade de uma geração inquieta e ativa. Em 1967, acompanhou as gravações de Simpathy for the devil, dos Rolling Stones, em um de seus filmes mais ousados, One plus one. Os cineastas foram dos primeiros a entender o rock como vanguarda artística. Memorável também é a participação de Nick Cave na obra-prima de Wim Wenders, Asas do desejo. Não se trata apenas de trilha sonora para criar atmosfera, mas de uma verdadeira legitimação. E tanto melhor que essa legitimação tenha vindo de grandes criadores do que da academia.

                                          Rolling Stones em One plus One 

Historicamente, é difícil negar a importância do rock como movimento. É evidente que há muitos roqueiros alienados, como não poderia deixar de haver, levando em conta sua espontaneidade, sua recepção maciça, e até mesmo a quantidade de bandas que se disseminam. Nem por isso, ouso dizer, deixou de pontuar aspectos filosoficamente avançados. Desde que a cultura cristã se estabeleceu, em poucos momentos houve tanta clareza para tanta gente que a moral estabelecida é o inimigo mais constante. A crença em uma moral imposta foi desdenhada pelos roqueiros com a mesma decisão que por leitores atentos de Nietzsche. Temos aqui uma das principais bandeiras dos artistas modernistas. No caso da música, se pensarmos em Schoenberg e outros atonais, não havia o plano de se levar suas propostas a um grande público, a pesquisa se dirigia quase exclusivamente para especialistas. Contudo, os manifestos de artistas plásticos e escritores costumavam prever uma disseminação de seus valores para toda a sociedade. O fato de o rock ter obtido sucesso, portanto, não depõe contra, não o reduz a mera mercadoria, se soubermos considerar que levou adiante alguns objetivos de um pensamento de vanguarda.

O rock hoje vende e atinge milhões, e isso implica, necessariamente, no perigo de reduzir-se a um produto – perigo ao qual alguns artistas sucumbem mais do que outros. Por outro lado, propaga-se uma mentalidade que está alguns passos a frente da mentalidade mediana. O amor é cantado sem os enfeites das novelinhas de tevê, mantém-se um senso de coletividade (seja na hippie Woodstock ou na punk Camdem Town, assim como na colaboração entre os integrantes de cada banda). E, talvez o mais notável, como raras vezes antes, a expressão artistíca penetra em todas as áreas da vida.

O que os roqueiros dizem, essencialmente, é “Eu estou aqui; a vida é agora”. Por isso são barulhentos. O gênero traz os perigos de um espírito guerreiro, não há dúvida, mas, se tivermos algum respeito a Dionísio, é preferível acatar tais riscos do que se contentar com a passividade que hoje impera. Em vez ignorar o rock, cuidar para que não seja desvirtuado, mantê-lo na linha de resistência. Lembrar da posição dos roqueiros durante a Guerra do Vietnã, de solidariedade para com o sofrimento de uma guerra inútil, e renegar as exceções fascistas que mancham esse legado. Em outras palavras, escolher as batalhas, não renunciar ao combate.

Não é por tocar no rádio que o resultado é necessariamente uma hipnose alienante que faça esquecer a realidade. Se The Who e Jimi Hendrix quebravam seus instrumentos sem maiores cerimônias, é porque havia continuidade entre o som que faziam e o que acontece além da música. Um som que, flertando com seu próprio colapso, se abre para todos os ruídos do mundo ao redor. Não é tão diferente de ver a tinta na tela como ilusão e como matéria bruta, pois pela matéria abre-se a percepção para o que vem de fora. No início do show, a canção já flui à beira da agonia, já se prevêm os estalos, chiados e a microfonia da destruição – porém de maneira afirmativa, sem autocomiseração. Os roqueiros, de modo geral, resvalam na morte da música. Não por menosprezo à melodia, mas por sentirem que tudo é mais intenso quando não se tem medo da morte. É aí que o rock mostra, com uma clareza rara, a sutil diferença entre niilismo fraco e espírito guerreiro, flertando com a morte da arte, mas sem sucumbir a ela. Distinção fundamental, mas às vezes difícil de apreender, e que nem sempre os artistas de outras áreas percebem muito bem.

Para os roqueiros, vida e arte estão tensionadas, muito próximas uma do outra. O vestuário, o vocabulário, certos trejeitos, a atitude e a visão de mundo recebem sua influência, a ponto de quase qualquer aspecto da vida se tornar inimaginável sem a música. Não é preciso gostar de jaquetas de couro, tatuagens ou boemia para reconhecer um acontecimento: os roqueiros souberam tirar a arte do limbo, souberam fazê-la interferir no campo da vida. Tal como propõem as vanguardas. Troca-se o imperativo moral, enganoso, por uma afirmação estética e ética, aberta. Isto não implica que os roqueiros sejam mais crueis que os outros homens, mas tendem a evitar dissimulações. Nos anos 60, com a contracultura, e novamente em Seattle, em 1999, vimos surgir uma militância criativa e libertária, que não se confinava às ideologias. Tais movimentos devem muito ao rock - nos anos 60 tivemos Woodstock, e nos anos 90, Seattle foi a grande capital do grunge. Na revolta de um roqueiro, entende-se o ódio ao sistema como ódio, mas não presta obediência a noções absolutas de como se contrapor; a vontade de mudança é de fato desejo e não abnegação; dispensa-se a moldura de qualquer ideologia sufocante. Nada disso ocorreu por acaso ou modismo, mas acompanhado de questões formais. No caso do rock, de uma sonoridade muitas vezes próxima do ruído bruto, que resvala no antiartístico.

Assim como negar a perspectiva e os temas sublimes não foram gestos gratuitos, o "barulho" no rock também não é. A música, abstrata por excelência, torna-se mais concreta, aproxima-se da realidade. Muitas bandas, ao tocar ao vivo, exploram as microfonias e os retornos dos amplificadores, porém mesmo nos riffs mais assobiáveis, a guitarra é distorcida, contaminando a pureza da arte. Isso faz com que até nos momentos mais deleitosos, mais harmoniosos, permaneça alguma “sujeira”, alguma lembrança do mundo palpável. É comparável à presença forte e corrosiva da matéria de Pollock, cuja técnica, aliás, exigia tanto do corpo quanto da mente. No rock, o peso com que os instrumentos soam é quase tátil, e a performance nos palcos tem necessariamente uma presença corporal importante. A vida é invadida pelo som, tanto quanto invade os palcos. Quando a realidade exige luta, portanto, é enfrentada com a convicção de que a vida deve ser redentora como a arte. Não uma vida apenas 'correta', 'organizada', 'sob controle', mas intensa, variada e aventureira.

Os roqueiros, assim como os artistas modernistas, flertam com a morte da arte, mas o aspecto antiartistíco jamais é total. Se fosse total, não haveria permuta, não se poderia passar das promessas da arte para a realização na vida. Quebram os instrumentos mas logo voltam a afirmar sua potência. Há uma dança infinita da arte com a vida, ambas enlaçadas em uma paixão visceral. Vida e arte não chegam a se fundir, não desaparecem uma na outra – mas se tocam constantemente. Por isso o impacto, por isso a reverberação.

7.15.2010

Trintando

Enfim, ontem cheguei aos trinta. Com um certo espanto: sobrevivi. Minha vida está bem melhor aos trinta do que aos vinte, sem a menor dúvida.

Quando ligou para me dar os parabéns, meu pai disse que nasci às 7:14 da noite. Eu não sabia, acho que ele nunca tinha me dito. 7:14 do 14/07. Não entendo nada de numerologia, mas gostei dos números se espelhando.

7.08.2010

Ah! Eh! Uh!

Ah! Botas. Esqueçam o salto alto. As feministas dos anos 60 deveriam ter se livrado do salto alto, não do amigável sutiã - que afinal as mulheres não deixaram de por, e os homens adoram o momento de tirar. Livrem-se do sapatinho de salto alto, mesmo que digam que é elegante. Algo que complica os movimentos e torna o passo mais contido é de uma época em que os homens não queriam que as mulheres fossem muito longe. Hoje elas não precisam andar como quem pisa em ovos. Ou a ideia é justamente que seja nos ovos deles, demarcando o fetiche? Prefiro as botas, que podem ser femininas mas mostrar personalidade, mostrar disposição para passadas mais largas. Desde coturnos pesados a aconchegantes calçados de inverno, com o cano alto torneando as pernas e um pouco de metal na fivela. Então, sim, para quem fizer questão, a bota pode terminar dando um salto, mas com a firmeza assegurada.

Eh! Unhas compridas. Toda mulher deveria deixar as unhas compridas e resistentes. Mais que isso: saber usá-las nas costas de seu amante, não tão forte a ponto de sangrar, mas com pressão o bastante para causar arrepios. Nada como a sinestesia de dez pequenos pontos patinando na pele, lascivos e destemidos. Uma mulher que domine esta técnica não precisa sentir a tal da inveja do pênis. Ela possui tanto quanto é possuída.

Uh! A mulher pode, ou melhor, deve, ser tão participativa quanto o homem no jogo da sedução. Que seja sempre uma arte poética escrita a dois, com uma sintaxe de dois sujeitos, nenhum reduzido a objeto.

6.06.2010

Omito

Na manhã mais fria do ano
quando menos esperava voltar a me fascinar por ti
em uma louca epifania, descobri

o encaixe
a sintaxe
o adágio mais sábio
que me permite
te re-conhecer
e uma vez mais me arriscar

Quas’escapando da boca
o louvor (o ardor) que me ocorreu
que você nunca ouviu
Nem nunca ouvirá

Todas as palavras são traduções
Todas as palavras são traições
Então: adivinharás melhor
no brilho de meu olhar
Intenso como nunca, ao te desvendar

A língua vibrando em silêncio
Para não vibrar sozinha

O desejo que sinto
A chama que clama
Será mais rútila
Será mais límpida
Se eu mentir sincero

Por isso omito