7.04.2006

Fones de ouvido

Passeavam de mãos dadas, na praia. Ele queria muito mostrar a ela este lindo encontro de areia e mar, a léguas de qualquer cinza urbano, que era seu refúgio desde criança. Caminhavam devagar, os rostos próximos. De quando em quando paravam, trocavam beijos macios. A natureza estava esplêndida, com a luz do sol, forte, irradiando vida ao verde das folhas, o colorido das flores mais que nunca colorido, pássaros cortando o céu em vôo aberto. O walkman ligado, colado na orelha.

- Me empresta um fone, vai? Deixa eu ouvir o que você tá ouvindo.

Como de costume, ela preferiu a brincadeira. Disse um "Não" teimoso, inflando as bochechas. Moleca.

No rosto dela, naquele irretocável rosto de leite dela, suavidade e ternura. De uma perfeição tão delicada e harmonia tão justa que confundiam - seu jeito travesso, as pirraças que fazia. Era anjo afeito a diabruras.

Às vezes ele se pegava nuns instantes em que receava tocá-la ou beijá-la, como que temendo desmanchar, ela uma estátua de nuvem. Seis meses que namoravam, e ele ainda se surpreendia tomado por pequenos delírios, o angelical de sua beleza atingindo um tom quase sublime. Não sabia explicar se com determinada luz ou sombra, se de eventual expressão mais graciosa, se era ele que se emocionava - aconteceu mais de uma vez, durando o tempo de um lapso. Depois passava, ele se vingava da hesitação com beijos duas vezes mais lascivos.

Contornavam o mar abraçados, pele com pele e desejos.

Contagiava-o sua animação, toda risonha, carismática, admirada com tudo. Colhendo conchinhas na areia, afagando um cão que passava, conversando em voz doce. Seu maior talento talvez fosse uma habilidade especial para extrair de qualquer coisa uma leveza, com que sorrir, querendo nos fazer bem.

- A areia tá fofinha, não tá? Eu gosto quando ela faz cosquinha, faz "suiche suiche" debaixo dos pés... - e eram trejeitos, olhares, ternuras, somente seus.

A manhã de domingo. Amanheceu com sol, ele telefonou convidando para irem à praia. No entanto teve uma sensação estranha, uma intuição aguda e vaga. Ele tateava não sei o quê, algum disfarce por trás daquela voz aparentemente receptiva. Talvez uma indecisão, chegou a pensar que uma recusa, chegou a ter certeza disso. Ela disse sim, aceitou. Parecia alegre e disposta, sua entonação o indicava. Mesmo assim não se convencia, ainda havia alguma nuança, pouco perceptível, suspeitável. Poderia ser imaginação, era bem possível, mas como saber? Não era de sua personalidade esse tipo de insegurança, não agora com vinte e sete anos.

Ou será que ela, guardando algum mistério, mergulhava um pouco mais fundo em seus sentimentos do que as demais garotas até então? Se a insegurança estava nele ou nela era difícil dizer; sua sensibilidade estava confusa.

Por causa dos negros e envolventes olhos dela, sua pele branca, seu perfume único... Seus gestos, seus lábios, sua voz... Os dias corriam breves, a cada manhã uma maior saudade de alcançá-la.

Seus olhos não eram olhos. Eram imensos segredos brilhantes, profundos abismos incrustados na face. Algo se escondia por trás desse par sedutor, algo inatingível, longe. Ele a penetrava no sexo, mas será sempre barrado diante desses olhos negros. Imensos.

Ele a penetrava no sexo, preenchia, completava. Mas o que será que se passava na cabeça dela nos momentos? Em cada momento de sua vida - prazer, alegria, dor, fastio - da vida vivida juntos. Compartilhada, porém menos compartilhada que assistida, dois espectadores alheios. Porque não era o orgasmo que os tornava um só; nada é capaz de quebrar o invólucro dos corpos.

Prazer, alegria, dor, fastio.

Namoravam há algum tempo, a intimidade aumentava. Ele se satisfazia, sempre. E ela? Quando ia despi-la, notava uma certa timidez, uma hesitação, alguns segundos apenas. Mas suficientes para o fazerem ansioso. Não exatamente a cautela da primeira vez, que com frequência lembrava. Os dois envergonhados, ele também, acanhados nos dedos, os lábios tímidos, a expectativa resignada... Superaram logo, com a segurança de que o namoro iria além. No ato sexual ela se dedicava, era com carinho que o recebia à porta das sensações.

Mas é que... como dizer? Para ele não bastava ver o sorriso no rosto dela, e estarem suas mãos unidas. Era pouco, seu desejo ardia por mais. Queria sentir exatamente do mesmo modo que ela sentia. O sentimento exato, não o de duas pessoas próximas que se identificam - um ser só. Uma consciência só. Vez em quando ele diz que gostaria de experimentar o orgasmo do ponto de vista dela, invertido. Não um orgasmo feminino; o orgasmo dela.

- Que foi que cê tá me olhando desse jeito? - ela perguntou, entre risos. Fingiu um falso ar de preocupação, zombando docemente. Moveu então os lábios para dizer mais alguma coisa, dissimulou, preferiu cantar. Recolocou o fone e se deixou ouvindo música.

O braço dele a envolvia pela cintura, acolhedor. Olhando calado nos olhos, apreciando a delicadeza de seu rosto. Naquele instante desejou ser a um mesmo tempo a mão sua e a pele acariciada dela, e sentir ambos os toques simultâneos. Seria um consagrado êxtase.

“Esqueça” pensou, “é impossível”. Ah, se ao menos pudesse conhecer todas as miudezas do não-dito, dessas que se multiplicam incessáveis entre um casal... Se pudesse ler o que vai em sua cabeça. O que ela pensa a cada gesto seu, a dissonância entre o pensamento e a fala, que sensações ela tem quando se beijam, quando se tocam. Assim a teria muito mais do que se pode ter, eliminaria muito da distância inesgotável que os torna estranhos mesmo quando íntimos.

Seria paranóia? Mas nem mesmo o corpo se pode ter inteiro! Ao abraçar pela frente, por mais apertado que seja, deixa-se de abraçar pelas costas. E é por isso que pegava dela com tanto ímpeto, mais que um carinho uma vontade de envolvê-la inteira, englobá-la – e abraçava, trançava as pernas, apertava junto ao peito.

Pegou na sua mão, beijaram-se. Sentados de frente para o mar. O rumor trazendo e levando águas, enquanto seus dedos sulcavam buracos na areia. Alisava o solo, traçava marcas distraídas. Colhendo os grãos e deixando escorrerem.

Ele estava apaixonado? - quanto mais repetia a questão, mais a resposta lhe parecia sim. Apesar de não conseguir dizer em voz alta. Ele era um homem que gostava de dizer “eu te amo” - para as namoradas anteriores, sempre que houve sinceridade, sempre o disse. Gostava de dizer, não sentia vergonha em ser romântico - ao contrário, orgulho - com essas três palavras tornava-se um pouco menos mortal. Mas para ela, que despertava sentimentos tão novos, não ousava. Temeroso de ela não responder como esperava. Ou pior, respondesse, mas como saber se não estava mentindo?

O maldito walkman! Por que é que ela não desliga? Começava a irritá-lo. Deveriam estar conversando, rindo juntos, e ela se fazendo surda com esse maldito rádio na orelha! Pegou e atirou um punhado de areia para o lado. “Quem é você?” Talvez sejam essas as três palavras que ele nunca teria forças para pronunciar, entaladas à beira da boca. “Quem é você?” Mas não um interrogatório, ou análise. Não, ele queria a cumplicidade, uma união maior que nunca, um amor sem proporções. Mas ela teria de responder tudo, absolutamente tudo, desabar da memória desde a lembrança menos significativa à mais oculta e proibida. Cada sensação, pensamento e impressão contidos nela, e o mais que se vai carregando ao longo da vida. Para que pudesse ele nela vivê-la.

Do canto do olho, discreto, espreitou a brancura de seu rosto liso. E se ele dissesse agora, “Eu te amo”? Todas as letras, sem medo. Agora. Qual seria o exato timbre com que ressoariam na caixa craniana dela, as ondas sonoras traduzidas em sensação? Atadas a que impressões iriam ecoar essas calculadas palavras, sopradas de sua boca para o ouvido dela? De sua boca, para o ouvido dela.

Os fones de walkman, mais uma vez. Naquele instante o aparelho se tornava seu pior inimigo, fazia-se urgente combatê-lo. Os fones, símbolo desse isolamento, confirmando a fronteira entre as almas... Lá estava ela, cantarolando em voz baixa as notas da canção, balançando a cabeça sozinha. Transportada para aquela caixinha que trazia música só para ela, um ambiente só dela.

Ele investiu uma nova tentativa; optando pelo tom lúdico. Fingiu um ar severo, policial:

- Garota, acho que vou ter de confiscar seu aparelho. Posso ver sua habilitação para o porte?... Como eu suspeitava: está vencido.

Ela fez “Nããão” novamente, mostrou a língua. Ele insistiu, ela se divertia em negar todas as vezes, caprichosa.

Isso o aborreceu. Voltou à cena do telefone, ao pressentimento. Que mais ela escondia? Fechou a cara. Estava com sua namorada, a mulher que amava, e, no entanto, sentia-se só. Não porque a praia fosse deserta – era a praia de sua infância, povoada de recordações - não era o lugar, é que mal saberia dizer se a pessoa que o acompanhava estava mesmo ali.

Sua irritação se tornava visível, ela percebeu. Primeiro baixou os olhos, pensativa. Parou de cantar. Não queria magoá-lo, é que não esperava que ele ficasse assim triste. Só estava brincando. Estalou um beijo em sua nuca, soprou junto à orelha. E quando ele virou o rosto pôde ver que ela lhe oferecia o tão requisitado fone de ouvido.

Ele sorriu agradecido, realmente feliz. Muito feliz. Ela nunca saberá o quanto.

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