7.19.2008

Márcia Denser, querida maldita


Alguns artistas estão à frente de seu tempo, mas no caso de Márcia Denser foi um pouco diferente. Estreou em 1976, época de contestação, época de experimentação e de “desbunde”. Com vinte e poucos anos já possuía uma prosa cortante e precisa, com a qual não passou desapercebida. Sem pudor ou hesitação, arrastava o leitor para recônditos onde prazer e queda se confundiam, afirmando-se como uma das escritoras mais perversas da literatura brasileira. Dona de uma narrativa ao mesmo tempo sofisticada e sem frescuras, pôde dialogar com seu próprio tempo, quando em meio à vontade de ruptura havia lugar até mesmo para a sordidez. É estranho pensar que ela tenha passado um bom tempo num semi-esquecimento, após tantos elogios que lhe renderam Paulo Francis, Rubem Fonseca e tantos outros que fizeram sua fortuna crítica. Em boa parte a responsável foi ela mesma, que passou anos sem publicar, sem dar à luz filhos novos. Mas apenas em parte essa explicação é convincente. Ao pensar em nossa época, a impressão é a de que a liberdade que Márcia incitava, a musa dark dos anos 70 e 80, sofreu um recuo generalizado. Alguma coisa se perdeu de trinta anos para cá, os estômagos estão mais fracos.
Uma falta de ousadia, talvez. Não cortes de cabelos, gírias ou piercings na língua. Mas uma sinceridade maior, quase suicida. Inocência, ainda que pelo avesso. Hoje até mesmo cantoras de axé vestem calças de couro, a rebeldia faz parte dos cálculos, inclusive os escândalos, mas não se encontra quem suporte estar acima da opinião mundana. No caso de Denser, porém, temos uma escritora que não entrega o que seu leitor pede, preferindo cometer delitos inafiançáveis contra o mundo e contra si. Creio que somente Mirisola, para o bem e para o mal, vem realizando uma façanha semelhante. À parte a diferença de gênero, os temas de ambos são praticamente os mesmos: sexo cafajeste, cinismo constante, solidão, frustrações na busca por amor, comportamento niilista, e uma crítica feroz que termina em desprezo por todos, a começar por aqueles que levam para a cama. Diante de uma empreitada dessas, não é surpresa que Márcia jamais tenha recebido um prêmio, ou que até hoje Mirisola apanhe da crítica a cada livro, por mais que os dois exibam um primor técnico que tranquilamente os colocaria entre aqueles que melhor dominam a língua portuguesa.
Márcia recorre com freqüência a longos períodos, muitas vezes ocupando um parágrafo inteiro, onde a profusão de sensações nos apresenta um universo pessoal que somente a inteligência e a poesia salvam do colapso. Ela extrai do ritmo uma expressividade que poucas vezes se vê na literatura, sabendo controlar a velocidade e variar as tensões. Há escritores que conhecem muito bem a forma, outros que exploram o conteúdo com vigor, e mesmo os que sabem lidar com as duas coisas; mas é raro quem conheça tão bem a relação íntima, orgânica, entre uma e outra. Seu ambiente natural é o conto, onde realiza a arquitetura de maneira tão cuidadosa que citar trechos isolados não faria jus ao edifício. Quem acaso nunca leu Diana caçadora, sua obra-prima, que procure um exemplar e confira. É uma injustiça que este livro não seja considerado tão obrigatório quanto, por exemplo, Obscena Senhora D da Hilda Hilst.
Tal como em Henry Miller, é seu próprio corpo que emerge das páginas, fazendo das palavras um jogo contínuo de sedução. Ao aproximar o carnal e o sublime, ela nos oferece uma escrita que é toda potência e audácia. Como revelou recentemente, houve um momento em que ela se confundiu com a personagem, Diana Marini, o que talvez nos ajude a entender como seus contos nos parecem tão vivos. Há quem se choque com tudo o que ela viveu: os porres, os desaforos, as drogas e o repertório eclético que abarca latin lovers, poetas picaretas, mecânicos, burocratas, escritores de renome, motoqueiros, jovens tietes, entre outros. Ela foi fiel aos seus desejos, não se limitando a um nicho específico, superando seus próprios preconceitos. Quantas pessoas conhecemos, hoje, que se permitem tamanha entrega, seja na vida ou na arte?
Se, no conto Tigresa, ela mostra o quanto se decepcionou com a juventude dos anos 80, uma geração depois da sua, gostaria muito de saber o que ela pensaria da minha. De modo geral, o que tenho encontrado nas baladas e botecos é gente ainda mais previsível, mais blasée, apática, e que está sempre incorrendo no velho problema da forma desconectada do conteúdo... Inadvertidamente, eis que me vejo correndo o enorme risco de me deixar embriagar por La Denser. Aconteceu ao longo do artigo, sem qualquer prevenção: percebo-me desprezando dois terços da humanidade e odiando o terço restante, tal como ela admitiu em seu encontro com Fernando Coelho/Lobo Antunes. Deve ser por isso que ela nunca ganhou um prêmio, já que definitivamente desperta nosso pior lado.
Não creio, porém, que a crueldade seja a força motriz de sua poética, nem de sua vida. Um conto que nos ajuda a compreendê-la melhor é O animal dos motéis. Os espelhos no teto nos apresentam um casal no motel que se satisfaz fisicamente, apesar de não terem uma comunicação que vá muito além disso. Diana tenta puxar conversa e alude a uma história de Hemingway, em que um toureiro precisa acertar sua espada no local exato do dorso do animal. O ponto é do tamanho de uma moeda de prata - um toureiro experiente não costuma errar, porém este falha consecutivamente . Logo vemos que se trata de uma parábola sobre o amor. Tanto no amor como na tourada, não seria diferente a precisão necessária para acertar esse ponto exato em que o bicho é subjugado pelo homem. Cito apenas um trecho: Como se fosse possível o amor, como se fosse muito fácil, muito simples. Possível. Fácil. Simples. Do tamanho de uma moeda de prata. Uma fresta úmida. O ponto exato. Amor. Segundo Diana, o toureiro passa muito perto da morte por várias vezes, mas sequer a "merecia". Amor e morte aqui são colocados em equivalência, e tendo Márcia seu lado mistíco, não é bobagem pensar numa ressonância de Kali, a um só tempo deusa-mãe e ceifadora.
Por mais que se trate de uma femme fatale, em todas as narrativas de Márcia notamos uma vontade de compreensão mútua, de carinho, de entrega a dois. Contudo, esse anseio acaba invariavelmente frustrado, e o conto se faz uma tentativa de lidar com a decepção. O maior problema é que talvez o amor seja parecido com a morte: é preciso abdicar de algo para existir em par. O pré-requisito seria um abandono de si – mas Márcia é essa raridade, uma escritora que não faz concessão alguma, que não quer mentiras, que nem mesmo para se proteger se afasta de sua verdade. Ela se deixa arranhar pelos chifres do touro, é pisoteada pelos cavalos, sangra, flerta com a morte, e apesar de tudo continua procurando o ponto exato. Não o encontra porque não merecia? O tamanho é o de uma moeda de prata, o que logo de cara exclui andar de mãos dadas e o sentimento longe, em outro país, outro tempo, como em tantos relacionamentos que só parecem amor para quem vê de fora. Márcia não quer uma sodoma de mentiras, tampouco se abster de enfiar a mão nas gangrenas alheias, senti-las como suas. Por mais frenética que seja a caçadora, encontrar o buraco negro, o corte no tempo ao atravessar a carne é projeto temerário. O mais próximo do abandono fatal que ela atingia era o orgasmo, por isso a caça constante, que nem sempre requer afinidade especial com o parceiro – e daí tanto desprezo após o ato. No entanto, na literatura, jamais dissociada da vida, ela consegue se prolongar, dar um passo a mais, e construir com as palavras um encontro com toda a plenitude que lhe foi negada. O absoluto não está na trama, na ação, menos ainda nas personagens – mas no próprio erotismo de sua linguagem.
Há pouco tempo foi lançado Toda Prosa II, que reúne alguns contos inéditos e textos selecionados. O livro dá continuidade a um movimento de resgate de sua obra, que se iniciou com a inclusão de dois contos seus nos Cem Melhores Contos do Século XX, por iniciativa de Ítalo Moriconi, e prosseguiu com o relançamento de Diana Caçadora e Tango Fantasma, além, é claro, do primeiro volume de Toda Prosa. O destaque da nova coletânea é O quinto elemento, onde a autora expõe como o uso de anfetaminas elidiu a distância entre Márcia Denser e seu alter ego. Foi sob esse êxtase que ela largou um emprego estável para viver em período integral o sonho literário. Infelizmente, o resultado foi um longo ostracismo, ao descobrir com amargura que "vida e literatura não se premedita". Outro ótimo momento do livro é Todos os amores, que também funde Márcia Denser e Diana Marini, a segunda mais intimidadora que a primeira, as duas sedentas por um espelho onde a deformidade se convertesse em perfeição. Este conto encerra o livro com tamanha dignidade que já não deixa dúvidas: se La Denser teve seus anos de obscuridade, não poderá mais ser esquecida facilmente.

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