7.30.2008

Reabilitação

Este saiu na edição de julho da Revista E, do SESC. Eu não sabia em que mês iria sair, só me dei conta de que estava impresso quando recebi o e-mail de uma leitora dizendo que sofria do mesmo mal que meu personagem.

REABILITAÇÃO

Bom dia a todos. Meu nome é Marcelo, tenho 32 anos, estou na Associação há dois anos. Após muita luta e coragem, tenho o orgulho de dizer que faz cinco semanas e dois dias que não leio uma única linha de literatura. No começo foi muito difícil, a compulsão falava mais forte, mas com o apoio de todos aqui presentes, estou conseguindo me recuperar desse vício nefasto. A guerra ainda não foi vencida, sei que a possibilidade de uma recaída está sempre nos ameaçando, mas o exemplo de vocês tem me ajudado a seguir o bom caminho e retomar uma vida digna em sociedade. Sou imensamente grato por isso.

Cada um aqui tem uma história pra contar, e cada história pessoal na verdade se abre em mil outras histórias, porque assim é o vício da ficção. Acho que no meu caso, tudo começou com cerca de seis anos de idade. Foi a professora da escolinha que me introduziu a esse universo – lembro-me bem dela, Dona Gilda – me presenteando com um livrinho ilustrado, bonito, sobre as aventuras de João no Pé-de-Feijão. Eu era uma simples criança que nada sabia sobre os perigos dessa vida. Não poderia adivinhar que um gesto tão simpático daquela velhinha de voz macia me levaria para uma trajetória de perdição que com muito custo tento agora deixar para trás. O livro colorido parecia tão inocente, e eu fiquei tão entusiasmado com o João, que não pude oferecer resistência alguma. Fui totalmente tragado pela magia dos feijões que crescem de um dia para o outro sem qualquer explicação, pelo castelo mágico repleto de maravilhas, e, como João, também eu quis derrotar gigantes e dedilhar a harpa de ouro. No começo parece tão bom, não parece? A gente se sente ótimo. Agora, o que mais me deixa revoltado... (ai, me desculpem pelas lágrimas, vou tentar ser mais forte)... o que até hoje eu não consigo entender é como que meus pais não me advertiram. Eu simplesmente não consigo perdoá-los por isso. O caso é que naquele mesmo dia, quando eles chegaram em casa depois do trabalho, eu comentei eufórico que pela primeira vez tinha lido um conto inteirinho, do começo até o fim. E que o João era incrível.

Eu tenho um filhinho pequeno, de dois anos de idade. De uma coisa eu tenho certeza: se um dia meu filho ler um livro desse tipo e me disser que “João é um cara incrível”, eu vou responder que é esse o problema. “Incrível”. Meus pais perderam a oportunidade de me colocar nos eixos, e deixaram que o faz-de-conta ganhasse espaço na minha vida. Posso dizer até mesmo que... (suspiro)... eles ficaram contentes com esse meu “aprendizado”. Disseram que eu tava crescendo. Não é um absurdo? Ali estava eu, pobre criança que se deixou arrebatar pelas ilusões, por uma historinha que nunca existiu, uma mentira descabida, e eles tiveram a pachorra de dizer que eu estava aprendendo, e que eles estavam muito orgulhosos de mim. Será que eles não sabiam que é assim que tudo começa?

A coisa foi crescendo, em pouco tempo eu perderia o controle. Não demorei muito para ler todos os contos de fada da biblioteca da escolinha, e como se isso não bastasse, logo em seguida descobri Monteiro Lobato. E, é claro, eu vibrava com as caçadas de Pedrinho, achava Emília um personagem encantador, e tinha vontade de ir com Narizinho ao Reino das Águas Claras... Dona Benta, então, me era tão querida quanto minha própria avó. São recordações que parecem doces, e eu já vejo no rosto de vocês aqui, meus parceiros nessa luta, um ar de nostalgia – mas nós precisamos ser fortes. Naquela época, não tínhamos a menor noção do perigo que corríamos, mas hoje já temos consciência. Tudo estaria bem melhor agora se fôssemos como as crianças normais, que passam horas na frente da televisão, ou mesmo jogando videogames.

Com menos de dez anos eu já estava desencaminhado, e nem sequer suspeitava. Eu devorava pilhas e pilhas de livros de aventura, das viagens de Gulliver às expedições para Marte, sem falar na paixão que eu tinha pelo suspense do Marcos Rey. Quando, alguns anos depois, a escola nos obrigou a ler Machado de Assis, todos meus colegas torceram o nariz, acharam muito difícil ou chato, mas infelizmente não pude sentir o mesmo desprezo. Para mim, que já era um viciado, aquilo foi simplesmente uma dose mais forte de algo que já havia tomado conta do meu sangue. Não havia mais volta: a acidez daquele bruxo transformou meu olhar, e eu já não podia mais ver as máscaras sociais em sua tranqüilizante superfície. Era tarde demais! Dali em diante, passei a ter um impulso irresistível para desconfiar das aparências, para desvendar a hipocrisia das relações pessoais, e para desvendar o que há por trás dos discursos oficiais. Nem mesmo o médico Fortunato, cuja profissão consiste em ajudar as pessoas, foi poupado por aquele homem tão brilhante e tão ardiloso. Hoje me pergunto, como é que pode uma escola ensinar algo assim? Eles deveriam primar pela comunhão entre as pessoas, pela civilidade, e em vez disso nos oferecem um curso completo de sarcasmo que nos pega desprevenidos. A coisa só iria piorar. Li Crime e castigo vibrando com Raskólnikov, um pérfido assassino; li Bukowski com enorme respeito por um bêbado, só porque ele descreve a miséria com um certo charme; li Lolita e achei magistral uma narrativa indecente sobre um pedófilo. E ainda fiz amigos que me incentivavam a ler cada vez mais! Um pior que o outro, é claro. Estavam todos certos de que a glória da literatura é não ter os limites que nos impomos na realidade, e eu, ingenuamente, concordei com eles.

Quando atingi a vida adulta, a literatura já se tornara uma compulsão. Ao menos tive o bom senso de não prestar Letras, mas, advogado recém-formado, eu cumpria meus deveres o mais rápido possível e reservava horas inteiras à fantasia, para assim escapar do mundo real com todos seus problemas. Continuei a encontrar com meus amigos leitores, mas mal sabíamos manter a conversa no clássico futebol, mulher e piadas sujas: todo encontro descambava para as nossas leituras, para nossos escritores prediletos, sem o menor pudor. Parecia uma doença! A literatura começou a transformar minha escala de valores a tal ponto que a mulher que eu idealizava era ninguém menos que Sherazad. Acreditei que a esposa perfeita seria ela, porque saberia me contar inebriantes histórias por mais de mil e uma noites. Mas creio que eu também teria sido o pobre K., do Castelo, e me deixado escorraçar de bom grado por Frieda; eu teria sido Proust e amado Odette sem arrependimento algum; eu teria sido Riobaldo e me apaixonado em segredo por Diadorim. Eu desejava uma vida impossível e absurda, desde que tivesse a mesma intensidade que eu encontrava nos meus romances prediletos. Pouco importava que o final fosse triste, pois o que me parecia decepcionante era o lugar comum, a falta de poesia.

É claro que pensando assim eu só poderia me tornar um desajustado. Nenhuma namorada me fazia feliz, porque eu sentia sempre que lhes faltava algo, uma aura especial sem a qual me pareciam desbotadas em comparação com as personagens preferidas. E aí está o erro, pois desbotadas só podem ser as criaturas que habitam a celulose, presas entre a capa e a contracapa. Eu bem que deveria me conformar com as maria-gasolinas que estão sempre a mão, e que se pode trocar constantemente sem pensar duas vezes, porque com elas jamais sentimos que se perdeu grande coisa. Eu deveria ser como todo homem saudável, mas não. Eu preferi ser romântico, e procurar alguém que me despertasse um amor maior que a morte, tal como o de Romeu e Julieta. Não poderia dar certo. Também no trabalho, eu fui muito aquém do que poderia, pois eu estava mais preocupado com matérias do intelecto e do espírito do que com as coisas palpáveis. Desperdicei minha juventude com essa bobagem. Eu teria força para trabalhar 14 horas por dia, se eu não achasse mais importante adquirir cultura do que dinheiro. Ponho toda a culpa nos livros que li, sendo que tudo começou com aquele maldito João e o pé de feijão que uma professora me ofereceu com insidiosa doçura, tal como se oferece droga disfarçada numa balinha de côco.

Desculpem-me, eu não queria me exaltar. Se apenas eu tivesse mais cedo encontrado alguém como vocês para me aconselhar, meus caros... Como por exemplo o Guigo, aqui presente, que compreendeu que toda poesia de que precisamos está na bula do Prozac. Ou como o Leonor, que desde que abandonou a literatura conseguiu se focar em objetivos mais altos, e em breve vai conseguir seu primeiro milhão. Ou como o Marcão, que todos conhecem bem, e que tem conquistado o triplo de mulheres desde que deixou para trás a sensibilidade refinada que bem sabemos o quanto costuma atrapalhar.

Infelizmente, eu não tive a sorte de ter amigos como vocês mais cedo, e me deixei levar por uma infinidade de sonhos inúteis. Tenho ainda um longo caminho pela frente. Hoje eu tenho mais cultura do que dinheiro, e não existe banco algum que faça a conversão. Sinto-me deslocado em todas as festas do pessoal do trabalho, porque meu assunto favorito sempre foi, por muitos anos, livros. Ainda não consigo me acostumar com os programas de tevê mais populares, mas sei que só quando eu tiver me habituado à sabedoria humilde das emissoras, poderei me sentir à vontade com as pessoas mais respeitáveis. Ao menos tenho parado de ouvir as reclamações da minha esposa, que antes ameaçava com o divórcio se eu não parasse com a mania de dar valor ao que não leva a lugar algum. Ela é uma pessoa normal e saudável, tanto quanto eu quero ser. Por isso que estou aqui. Sei que meu caso é grave, mas já faz cinco semanas e dois dias que eu não leio uma linha de literatura, e com a ajuda de vocês eu sei que posso me livrar desse mal. Obrigado a todos, era isso o que eu tinha para dizer.

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