10.15.2010

Diagnósticos diferenciais para uma arte em crise

Alguns reclamaram por eu estar me despedindo de L'Enfant Le Terrible. Se servir como prêmio de consolação, reuni meus melhores textos sobre arte em uma espécie de livroblog, Diagnósticos diferenciais para uma arte em crise. Para quem quiser conhecer o tratamento de última geração, a casa está aberta. Mais ou menos a metade do livroblog é inédita, outra metade circulou por aqui e por outros canais. Todos os textos foram revisados, ganharam imagens e links para outros endereços para facilitar a vida de vocês. Aliás, achei que lidos em conjunto eles fazem muito mais sentido do que quando ficavam dispersos. Os dois blogs ficam melhores assim - mesmo este aqui, fica mais ligeiro depois da partilha de textos.

Em L'enfant Le Terrible, ainda quero postar uma Nota final. Assim que eu tiver tempo.
Não se sintam abandonados, ok? Pode não ser aqui, mas vocês ainda vão receber notícias de mim de outros lugares, online e offline.

Abraços

10.03.2010

Qual revolução?

Antes de encerrar o blog, vou tentar deixar um pouco mais clara minha visão política a quem possa interessar. A melhor maneira de transmitir o conflito em que fico a cada eleição é lembrando que nasci em 14 de julho. Ou seja, mesmo dia da Queda da Bastilha e do nascimento de Buenaventura Durruti. O momento decisivo da Revolução Francesa, que espalhou o espírito democrático para todo o planeta, inclusive em nossas terras; e aniversário do maior guerrilheiro anarquista, figura heroica daquela que talvez tenha sido a luta mais libertária de que temos notícia, a Revolução Espanhola. A coletivização de terras em Aragão e a ocupação de órgãos estratégicos na Catalunha durou pouco demais para que soubéssemos o quanto uma sociedade seria capaz de se manter fielmente anarquista. A democracia, por outro lado, tem sido praticada há tempo demais para que não sintamos que é intrinsicamente falha.

As pessoas costumam associar anarquismo com desordem, mas quem poderá dizer que é harmonioso o processo democrático em nosso país? Não ficou definido sequer o que haverá com os votos assinalados para os candidatos ficha suja, decisão que foi jogada para depois da convocação às urnas. Claro que nenhuma decepção pode ser mais engraçada do que a de quem fizer questão em votar em um político sob litígio e não puder ter confirmado seu desejo inabalável de ser enganado. A Lei da Ficha Limpa é, de longe, o fato político mais importante destas eleições, muito mais do que a figura que vier a assumir o poder, seja ela quem for. O Projeto Ficha Limpa nos oferece um mínimo de esperança, nem tanto por coibir candidatos criminosos, mais por ter sido uma iniciativa popular. Alguém consegue imaginar um projeto como esse sendo proposto pelos deputados e senadores, restringindo sua própria festa? 

Os políticos no Planalto supostamente representam aqueles que neles votaram, no entanto jamais contrariarão seus próprios interesses. Não há como esperar algo muito diferente, pois representam em primeiro lugar aqueles que patrocinam suas campanhas e estes obviamente vão querer algum retorno. A elite econômica sempre será atendida antes do povo, mesmo por governantes que tenham vindo das classes populares. Para chegar ao poder, Lula moderou seu discurso, fez alianças com a direita, foi conivente com a corrupção no congresso, manteve relações das mais ambíguas com Daniel Dantas, entre outros fatos lamentáveis. Mas como poderia ter sido diferente? O famoso comentário de Lula não deixa de ser um desabafo: no Brasil até mesmo Jesus teria que fazer acordos com Judas. E completa: "entre o que você quer e o que você pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico". Não dá para criticar Lula sem criticar o sistema, estamos falando de realpolitik.

Justamente por ter visto a velocidade com que o PT foi se deformando conforme saia da oposição para a situação, não consigo me entusiasmar muito por nenhum projeto partidário. Mesmo os que se mantiveram mais à esquerda, não poderão crescer tanto quanto o PT sem fazer concessões semelhantes. Não gosto de generalizações, não acho que todos os políticos sejam iguais, mas mesmo que alguns se salvem individualmente, não dá para ignorar que a tendência natural do sistema é se manter injusto, manipulador e covarde. Algumas melhorias os políticos mais progressistas podem propiciar, até o Plínio admitiu isso - mas é pouco, velhos hábitos tendem a se cristalizar.

Por outro lado, uma experiência como a da Ficha Limpa, impulsionada pela internet, aponta para possibilidades de uma democracia mais direta. Quanto mais as pessoas se politizarem, quanto mais sentirem que seu papel nas decisões vai muito além da escolha dos candidatos, menor nossa dependência do governo para mudar o país. Sou um tanto cético quanto a derrubada do Estado à força, mas vejo em certas iniciativas populares algo que muito agrada meu lado Buenaventura Durruti. Não é a extinção do Poder Central, não é o fim da exploração dos ricos sobre os pobres, mas maneiras de colocar o establishment sob tensão. Com uma melhor distribuição do poder, pode vir uma melhor distribuição de todos os recursos.

Em Totem e tabu, Freud conta de uma tribo na África onde o rei era espancado por seus súditos antes de assumir a coroa. Ele não deixava de ser amado por seu povo, mas na mesma proporção que era odiado. Pode parecer uma prática primitiva, mas me parece conter sabedoria. Tenho pensado em amadurecimento político como uma conciliação dos dois 14 de julho. O espírito revolucionário da Queda da Bastilha não pode se apagar com a democracia instaurada, pois para que haja verdadeira democracia, com oportunidades para todos, é vital que o povo saiba "anarquizar" sempre que contrariado. Não basta votar no seu candidato favorito, por melhor que você conheça sua trajetória, ou mesmo por melhores que sejam as intenções dele. O jogo do poder é podre demais para ficar tranquilo com isso, para achar que o voto indireto garanta os interesses do eleitor. Para o bem da democracia, é preciso saber confrontá-la.

8.31.2010

Mais leve

Eu estava dando uma olhada na pasta de rascunhos para ver o que ainda quero publicar antes de encerrar o blog. No meio dessa faxina, reencontrei este texto do ano passado. Deve ter parado no meio dos rascunhos sem querer, é um post de que gostei muito. Era de agosto de 2009, quase exatamente um ano atrás.

Não é só porque minha mãe se recuperou completamente da cirurgia. Não é só porque meu pai, que estava sob suspeita de câncer, recebeu um diagnóstico bem mais suave. Não é porque finalmente lancei o livro em que eu trabalhei por dez anos. Não é apenas o Brasil saindo da crise, ou mesmo a arte querendo sair da crise. O melhor é aquilo de que estou lembrando, e de que eu nunca deveria ter me esquecido.

Sobre a leveza. Ela, que parecia me escapar pelos dedos. Reencontro-a como a uma amiga íntima de quem conheço as histórias mais inusitadas. Eu quase me esquecia onde ela faz a morada. Não é no coração dos ignorantes ou entre os sedentos de poder. Tampouco um privilégio das crianças. Com quem aprendi sobre a leveza? Inesperadamente, com artistas e pensadores os mais subversivos. O sorriso falso não convence, não como os que ensinam malabarismo com o mundo às costas. Os inquietos podem parecer densos, tocando nas feridas, rompendo o que é estável, invertendo perspectivas – mas o fazem porque são ágeis o bastante, porque encontram força.

Nietzsche, por exemplo, o filósofo das marteladas, não é ele também o mais sutil? As marteladas, um bom tradutor já apontou, são perscrutações no corpo, pequenos toques para compreender reflexos. Seus livros estão além do bem e do mal, mas para ele o pensamento é “algo leve, divino, e intimamente aparentado à dança e à exuberância.” O mais corrosivo dos pensadores definiu a si mesmo como um bufão. Nossa época é cética demais para captar tais nuances, mas é aí que está a mais doce sabedoria.

Ou então, Clarice Lispector. Ela que vai da delicadeza ao soco no estômago, ela que se humaniza e se desumaniza nas mais inquietas metamorfoses... “Estremece em mim o mundo”, ela diz, mas “não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo”. Só na coragem de atravessar as piores tormentas é que se amplia o espírito o bastante para longas viagens.

Então podem retrucar: “leveza, nesse mundo sórdido? E as pessoas morrendo, e as guerras, e a injustiça?” Aí mesmo que é preciso não se deixar abater. O oncologista que trata doentes terminais, um guerrilheiro que combate o fascismo, o promotor que desafia a banda mais podre do poder... ou o fazem para aliviar o mundo do excesso de peso, ou seus gestos são inúteis. Seriedade não é manter os lábios constritos. Mesmo Kafka, tão obscuro, lia seus contos às gargalhadas com os amigos. É preciso rir com Kafka, já dizia Deleuze.

Arte e pensamento valem quando propiciam sobrevoos. Viajando de balão ganhamos a paisagem do alto, mas para isso é preciso dominar a gravidade. É preciso esforço de construção: o preparo do envelope, a tensão das cordas, o equilíbrio das formas, e – porque somos leves mas não levianos – o manejo do fogo.

8.04.2010

Não subestimar o rock

Quando se fala de Beatles, é fácil. Todos se sentem à vontade para dizer que eles entraram para a História, que realizaram uma revolução dentro e fora da música. Seja pelo impacto que exerceram sobre jovens contestadores em todo o planeta, seja pela sofisticação dos arranjos de A day in the life ou I am the walrus, poucos duvidam que eles serão lembrados por gerações ainda por vir. No entanto, curiosamente, o grupo de Liverpool não conseguiu estender o mesmo reconhecimento para outras bandas de rock que estiveram à sua altura. O jazz ou a bossa nova, por exemplo, são gêneros com status bem mais confortável, recebendo elogios de maestros notáveis e entrando facilmente nas estantes dos intelectuais. Para os guardiões do bom gosto, Beatles é totalmente aceitável, porém Beach Boys, 13th Elevator Floor, The Who, Jefferson Airplane, Rolling Stones, Elvis Presley ou Chuck Berry já lhes soam como um som mais adolescente, menos sério. E nem se dispõem a notar que as canções de Lennon e McCartney são impensáveis sem o intenso diálogo com todos esses.
Talvez seja um mérito dos roqueiros. Eles não se importavam com o que os acadêmicos ou os bons cidadãos iriam pensar, e grande parte de sua energia vem de sua independência. Mas muito se engana quem crê que a História do rock pertence ao mero entretenimento. Os conservatórios se apegam demais à etimologia da palavra, ao menos quando julgam que a verdadeira música é apenas a que os velhos homens de peruca compunham. Da boca para fora, era essa a opinião expressa de Frank Zappa, mas por algum motivo, ele pegou a guitarra, ligou na tomada e preferiu inovar do que diluir o que já pertence a outra época. Jon Lord, tecladista do Deep Purple, também tem formação erudita e se mostrou bem à vontade em Concerto For Group and Orchestra. O renomado Philip Glass criou composições inspiradas em David Bowie e Brian Eno. Miles Davis bebeu do rock para chegar a um de seus melhores trabalhos, Bitches Brew. John Cale trocou a sonolência de La Monte Young pelo Velvet Underground, com Lou Reed.

E, no entanto, ainda aquela desconfiança, a sensação de que um pianista de fraque sempre nos levará mais longe do que um cabeludo tentando revirar cordas de aço do avesso. Para colocar um pouco de preconceito neste artigo – ou melhor, para não ceder demais ao relativismo – na minha opinião, a música pop mais rebolante dificilmente consegue. Pode-se selecionar as loiras mais provocantes, abusar da iluminação, da maquiagem e dos efeitos especiais, juntar dezenas de bailarinos para acompanhar, e pouco importa, o resultado sonoro será banal, previsível, reduzido a fórmulas batidas, e portanto a bilionésima execução do pianista de fraque continuará tendo algo mais a dizer.

Posso estar sendo preconceituoso, mas não sou o único por essas paragens. Beatles como a única banda de rock que merece ser lembrada? Só chegaram à unanimidade porque se passaram por bons moços. Nem mesmo as experiências com ácido – Lucy in the Sky with Diamonds – ou a língua cada vez mais ferina de John apagaram totalmente a primeira impressão do grupo, quatro rapazes de sorrisos inocentes que pediam tão gentilmente para hold your hand. Para muita gente, não cai a ficha de que eles também cantavam Live and let die, ou que Yesterday era a véspera de the dream is over. A fase inocente dos Beatles, a meu ver, só fica interessante quando vista em retrospectiva – entender que Lennon, mesmo divulgando All you need is love, sempre foi de uma inquietude excepcional. Não foi por falta de tentativa que ele não conseguiu destruir sua imagem inicial, à qual os saudosistas se apegaram.

                                        The Who em Monterrey

Já Rolling Stones e The Who tiveram logo cedo uma imagem rebelde, rompendo decisivamente com a geração de seus pais e com os valores vigentes da sociedade. Depois deles, simplesmente não havia motivos convincentes para se retroceder à candura piegas de Love me do. Especialmente nos anos 70, talvez tenha havido algum exagero nas quebras de hoteis, nas brigas com a plateia, nas cusparadas, nas auto-mutilações e em sacrifícios animais no palco... mas a urgência por um novo ritmo de vida e a profanação dos valores estabelecidos não foi precisamente o que as vanguardas do início do século XX haviam considerado revolucionário? Os maiores intelectuais de Paris um dia celebraram Arthur Cravan, um espírito livre que transitava entre as artes e os ringues de boxe, com uma postura não menos impactante que a dos roqueiros. “Eu não desejo ser civilizado” era seu mote, e ressoava entre os artistas mais decisivos de sua época.

Claro que, ainda na linha erudita, tivemos rebeldes, como Schoenberg, Edgard Varèse, Harry Partch, John Cage, Pierre Boulez, Stockhausen, entre outros. Não são os mais apreciados nas salas de concerto, onde ainda imperam sons mais “puros”, os de Mozart, Bach, Beethoven e companhia. Nem quero dizer que não tenha algo de assustador na Quinta Sinfonia, mas é um terror sublime, ou seja, domesticado. Há uma brilhante representação de nossos medos, ainda assim, permanece dentro das margens de segurança. Se eu fosse marxista, empregaria agora a palavra “burguês”. Em vez de moralizar o discurso, vou traçar uma breve comparação com o modernismo nas artes visuais e na literatura. Minha questão é: se Baudelaire, Rimbaud, Artaud, Van Gogh, Picasso, os futuristas, os dadaístas, etc, hoje são admirados por sua ousadia, tanto na forma como no conteúdo, por que na música parece haver uma resistência tão grande a assimilar rupturas? Por mais que Beethoven tenha sido genial, não há uma certa covardia ao aceitar apenas os sons mais puros?

O que o modernismo buscou fazer é aproximar a arte do campo da vida. Quando Baudelaire flana pela cidade em busca de pequenos temas urbanos, mesmo que para isso tenha que andar por ruas sujas e mal iluminadas, ele começa a tirar a arte do limbo para torná-la mais palpável, mais próxima de nós. Walt Whitman faz poemas agitados sobre máquinas e homens comuns, Rimbaud apresenta-se como jovem indomável, Dostoievsky aborda mentes criminosas. Os temas sublimes são deixados de lado ou se misturam com o trivial e o maldito. Ao mesmo tempo, as palavras vão ganhando autonomia, ficam menos descritivas para que cada sílaba ganhe peso.

Os impressionistas, e logo depois Van Gogh, empastam a tela com grossas camadas de tinta para que o sublime desça à Terra, para que a beleza seja mais tangível. Os artistas vão renunciando à perspectiva, o que foi muito mais do que experimentar algo diferente. Abandonam o ponto de fuga para que o horizonte da arte não nos escape num universo distante, para que não nos esqueçamos completamente do chão em que pisamos. A tinta cria ilusão mas também passa a ser vista como matéria bruta. A fatura se revela, o processo de criação se desnuda. O que eles querem é negar a postura virginal da arte, unir corpo e espírito, e assim colocar a obra de frente para a vida – não acima.

Nesse quesito, na proximidade entre a arte e a vida, o rock foi longe. Traduziu em sons a era da eletricidade, a velocidade da metrópole, e até mesmo a poluição sonora, os motores, os telefones tocando, explosões, usinas, gritos, o caos da civilização em seu ritmo quase destrutivo. As máquinas apocalípticas de Tinguely são rock and roll. Assim como Tapiés, Cy Twombly, talvez Francis Bacon. Pode-se voltar um pouco mais no tempo e buscar raízes nas colagens cubistas, na fúria futurista, na arte de detritos do Merz, nos momentos viscerais do surrealismo, e por aí vai.

A rebeldia sem causa de fato não interessa, apenas daria argumentos a quem considera o rock ingênuo, adolescente; no entanto há muitas bandas que demonstram saber muito bem o que estão fazendo. Com todo respeito aos amantes do jazz e da música erudita, supor que basta seguir a tradição para fazer mais do que Pink Floyd, Radiohead, Sonic Youth ou, da safra mais recente, Battles, chega a ser provinciano. E mesmo algumas bandas que mal saiam dos três acordes, como The Clash e Nirvana, demonstraram uma inventividade e uma contundência exemplares. Philip Glass transmite sua mensagem com simplicidade, apostando na repetição, e com a mesma economia, essas bandas transmitiam musicalmente o sentimento sincero de muitos, sem domesticá-lo ou plastificá-lo.

Longe de mim defender que o rock seja formalmente mais elaborado do que a música erudita. Alguns guitarristas encaram uma competição no quesito virtuosismo, e talvez vençam na velocidade, mas isso é bem pouco interessante, é a técnica pela técnica. O ponto não é esse, como também nunca foi a habilidade técnica das telas de Miró. Uma sinfonia composta para dezenas de instrumentos certamente requer um domínio admirável, mas, assim como um pintor que imitasse Rafael, hoje em dia, diria muito pouco sobre as questões mais atuais, e assim como um poeta que escrevesse como Dante estaria apenas gozando solitário na torre de marfim, os compositores eruditos também devem se perguntar o que fazer para não estar fora de seu tempo. Alex Ross, na conclusão de O resto é ruído – escutando o século XX sugere aos compositores atuais combinarem sua bagagem com um ouvido mais atento às expressões avançadas da música popular, citando com muita naturalidade Sonic Youth, Radiohead e Velvet Underground. Ao menos em suas melhores manifestações, me parece que o rock abarca de modo exemplar certas questões contemporâneas. O rock se lança sem proteções ao que está além da música, diz sim ao mundo e o deixa entrar.

Barulho?

Um dos monstos mais inquestionáveis do cinema, Jean-Luc Godard, logo percebeu a ligação entre o rock e a mentalidade de uma geração inquieta e ativa. Em 1967, acompanhou as gravações de Simpathy for the devil, dos Rolling Stones, em um de seus filmes mais ousados, One plus one. Os cineastas foram dos primeiros a entender o rock como vanguarda artística. Memorável também é a participação de Nick Cave na obra-prima de Wim Wenders, Asas do desejo. Não se trata apenas de trilha sonora para criar atmosfera, mas de uma verdadeira legitimação. E tanto melhor que essa legitimação tenha vindo de grandes criadores do que da academia.

                                          Rolling Stones em One plus One 

Historicamente, é difícil negar a importância do rock como movimento. É evidente que há muitos roqueiros alienados, como não poderia deixar de haver, levando em conta sua espontaneidade, sua recepção maciça, e até mesmo a quantidade de bandas que se disseminam. Nem por isso, ouso dizer, deixou de pontuar aspectos filosoficamente avançados. Desde que a cultura cristã se estabeleceu, em poucos momentos houve tanta clareza para tanta gente que a moral estabelecida é o inimigo mais constante. A crença em uma moral imposta foi desdenhada pelos roqueiros com a mesma decisão que por leitores atentos de Nietzsche. Temos aqui uma das principais bandeiras dos artistas modernistas. No caso da música, se pensarmos em Schoenberg e outros atonais, não havia o plano de se levar suas propostas a um grande público, a pesquisa se dirigia quase exclusivamente para especialistas. Contudo, os manifestos de artistas plásticos e escritores costumavam prever uma disseminação de seus valores para toda a sociedade. O fato de o rock ter obtido sucesso, portanto, não depõe contra, não o reduz a mera mercadoria, se soubermos considerar que levou adiante alguns objetivos de um pensamento de vanguarda.

O rock hoje vende e atinge milhões, e isso implica, necessariamente, no perigo de reduzir-se a um produto – perigo ao qual alguns artistas sucumbem mais do que outros. Por outro lado, propaga-se uma mentalidade que está alguns passos a frente da mentalidade mediana. O amor é cantado sem os enfeites das novelinhas de tevê, mantém-se um senso de coletividade (seja na hippie Woodstock ou na punk Camdem Town, assim como na colaboração entre os integrantes de cada banda). E, talvez o mais notável, como raras vezes antes, a expressão artistíca penetra em todas as áreas da vida.

O que os roqueiros dizem, essencialmente, é “Eu estou aqui; a vida é agora”. Por isso são barulhentos. O gênero traz os perigos de um espírito guerreiro, não há dúvida, mas, se tivermos algum respeito a Dionísio, é preferível acatar tais riscos do que se contentar com a passividade que hoje impera. Em vez ignorar o rock, cuidar para que não seja desvirtuado, mantê-lo na linha de resistência. Lembrar da posição dos roqueiros durante a Guerra do Vietnã, de solidariedade para com o sofrimento de uma guerra inútil, e renegar as exceções fascistas que mancham esse legado. Em outras palavras, escolher as batalhas, não renunciar ao combate.

Não é por tocar no rádio que o resultado é necessariamente uma hipnose alienante que faça esquecer a realidade. Se The Who e Jimi Hendrix quebravam seus instrumentos sem maiores cerimônias, é porque havia continuidade entre o som que faziam e o que acontece além da música. Um som que, flertando com seu próprio colapso, se abre para todos os ruídos do mundo ao redor. Não é tão diferente de ver a tinta na tela como ilusão e como matéria bruta, pois pela matéria abre-se a percepção para o que vem de fora. No início do show, a canção já flui à beira da agonia, já se prevêm os estalos, chiados e a microfonia da destruição – porém de maneira afirmativa, sem autocomiseração. Os roqueiros, de modo geral, resvalam na morte da música. Não por menosprezo à melodia, mas por sentirem que tudo é mais intenso quando não se tem medo da morte. É aí que o rock mostra, com uma clareza rara, a sutil diferença entre niilismo fraco e espírito guerreiro, flertando com a morte da arte, mas sem sucumbir a ela. Distinção fundamental, mas às vezes difícil de apreender, e que nem sempre os artistas de outras áreas percebem muito bem.

Para os roqueiros, vida e arte estão tensionadas, muito próximas uma do outra. O vestuário, o vocabulário, certos trejeitos, a atitude e a visão de mundo recebem sua influência, a ponto de quase qualquer aspecto da vida se tornar inimaginável sem a música. Não é preciso gostar de jaquetas de couro, tatuagens ou boemia para reconhecer um acontecimento: os roqueiros souberam tirar a arte do limbo, souberam fazê-la interferir no campo da vida. Tal como propõem as vanguardas. Troca-se o imperativo moral, enganoso, por uma afirmação estética e ética, aberta. Isto não implica que os roqueiros sejam mais crueis que os outros homens, mas tendem a evitar dissimulações. Nos anos 60, com a contracultura, e novamente em Seattle, em 1999, vimos surgir uma militância criativa e libertária, que não se confinava às ideologias. Tais movimentos devem muito ao rock - nos anos 60 tivemos Woodstock, e nos anos 90, Seattle foi a grande capital do grunge. Na revolta de um roqueiro, entende-se o ódio ao sistema como ódio, mas não presta obediência a noções absolutas de como se contrapor; a vontade de mudança é de fato desejo e não abnegação; dispensa-se a moldura de qualquer ideologia sufocante. Nada disso ocorreu por acaso ou modismo, mas acompanhado de questões formais. No caso do rock, de uma sonoridade muitas vezes próxima do ruído bruto, que resvala no antiartístico.

Assim como negar a perspectiva e os temas sublimes não foram gestos gratuitos, o "barulho" no rock também não é. A música, abstrata por excelência, torna-se mais concreta, aproxima-se da realidade. Muitas bandas, ao tocar ao vivo, exploram as microfonias e os retornos dos amplificadores, porém mesmo nos riffs mais assobiáveis, a guitarra é distorcida, contaminando a pureza da arte. Isso faz com que até nos momentos mais deleitosos, mais harmoniosos, permaneça alguma “sujeira”, alguma lembrança do mundo palpável. É comparável à presença forte e corrosiva da matéria de Pollock, cuja técnica, aliás, exigia tanto do corpo quanto da mente. No rock, o peso com que os instrumentos soam é quase tátil, e a performance nos palcos tem necessariamente uma presença corporal importante. A vida é invadida pelo som, tanto quanto invade os palcos. Quando a realidade exige luta, portanto, é enfrentada com a convicção de que a vida deve ser redentora como a arte. Não uma vida apenas 'correta', 'organizada', 'sob controle', mas intensa, variada e aventureira.

Os roqueiros, assim como os artistas modernistas, flertam com a morte da arte, mas o aspecto antiartistíco jamais é total. Se fosse total, não haveria permuta, não se poderia passar das promessas da arte para a realização na vida. Quebram os instrumentos mas logo voltam a afirmar sua potência. Há uma dança infinita da arte com a vida, ambas enlaçadas em uma paixão visceral. Vida e arte não chegam a se fundir, não desaparecem uma na outra – mas se tocam constantemente. Por isso o impacto, por isso a reverberação.

7.15.2010

Trintando

Enfim, ontem cheguei aos trinta. Com um certo espanto: sobrevivi. Minha vida está bem melhor aos trinta do que aos vinte, sem a menor dúvida.

Quando ligou para me dar os parabéns, meu pai disse que nasci às 7:14 da noite. Eu não sabia, acho que ele nunca tinha me dito. 7:14 do 14/07. Não entendo nada de numerologia, mas gostei dos números se espelhando.

7.08.2010

Ah! Eh! Uh!

Ah! Botas. Esqueçam o salto alto. As feministas dos anos 60 deveriam ter se livrado do salto alto, não do amigável sutiã - que afinal as mulheres não deixaram de por, e os homens adoram o momento de tirar. Livrem-se do sapatinho de salto alto, mesmo que digam que é elegante. Algo que complica os movimentos e torna o passo mais contido é de uma época em que os homens não queriam que as mulheres fossem muito longe. Hoje elas não precisam andar como quem pisa em ovos. Ou a ideia é justamente que seja nos ovos deles, demarcando o fetiche? Prefiro as botas, que podem ser femininas mas mostrar personalidade, mostrar disposição para passadas mais largas. Desde coturnos pesados a aconchegantes calçados de inverno, com o cano alto torneando as pernas e um pouco de metal na fivela. Então, sim, para quem fizer questão, a bota pode terminar dando um salto, mas com a firmeza assegurada.

Eh! Unhas compridas. Toda mulher deveria deixar as unhas compridas e resistentes. Mais que isso: saber usá-las nas costas de seu amante, não tão forte a ponto de sangrar, mas com pressão o bastante para causar arrepios. Nada como a sinestesia de dez pequenos pontos patinando na pele, lascivos e destemidos. Uma mulher que domine esta técnica não precisa sentir a tal da inveja do pênis. Ela possui tanto quanto é possuída.

Uh! A mulher pode, ou melhor, deve, ser tão participativa quanto o homem no jogo da sedução. Que seja sempre uma arte poética escrita a dois, com uma sintaxe de dois sujeitos, nenhum reduzido a objeto.

6.06.2010

Omito

Na manhã mais fria do ano
quando menos esperava voltar a me fascinar por ti
em uma louca epifania, descobri

o encaixe
a sintaxe
o adágio mais sábio
que me permite
te re-conhecer
e uma vez mais me arriscar

Quas’escapando da boca
o louvor (o ardor) que me ocorreu
que você nunca ouviu
Nem nunca ouvirá

Todas as palavras são traduções
Todas as palavras são traições
Então: adivinharás melhor
no brilho de meu olhar
Intenso como nunca, ao te desvendar

A língua vibrando em silêncio
Para não vibrar sozinha

O desejo que sinto
A chama que clama
Será mais rútila
Será mais límpida
Se eu mentir sincero

Por isso omito

5.24.2010

Divagando: sexo, sedução e envolvimento

* Se, apenas por um instante, eu tivesse acesso à mente divina, e pudesse escolher um único conhecimento, seria o do impossível da mulher. Simplesmente o mais labiríntico dos mistérios.

* O maior erro que um homem pode cometer é tentar ler sua amante em linha reta. Estamos falando da mais sinuosa das criaturas.

* Duas pessoas não se movem juntas, a menos que rodopiem em passos de dança.

* A mulher vem adotando posições que antigamente eram do homem. A cultura, o pensamento e a política só têm a ganhar com isso. Por outro lado, homens e mulheres parecem cada vez mais perdidos.

* Para não ficar para atrás, o homem vem se feminilizando. É uma reação desesperada ou estratégia certeira? Mudança real ou aparente?

 * Será que há um eterno feminino, acima de todas as variações históricas? Pode surgir uma überfrau, uma super-mulher?
 
* Apesar das mudanças, em sua maioria o brasileiro continua machista. Inclusive grande parte das mulheres, e inclusive muita gente dotada de senso crítico.

* Por considerar que o homem é quem mete, muita brasileira acha que seu poder está em valorizar a maneira como se sub-mete. A ação é toda dele, ele é o sujeito do verbo, e ela se deixa posicionar como objeto. 

* Lacan dizia que a mulher não existe. E as lacanianas, o que dizem?

* Poucas coisas me parecem mais raras do que relações onde os dois se posicionem como sujeitos.
 
*Em um casal, geralmente, um dos dois tende a se conformar com o papel de mais fraco e o outro a se aproveitar disso. Nem sempre o homem é o forte do casal - seu papel pode ser o de um castrado para o gozo fálico da histérica. E tampouco a histérica chega a ser um sujeito pleno, pois mal encontra força que não seja roubada do outro; ou seja, é reativa. Para que os dois existam na relação, o equilíbrio de forças é delicadíssimo.

* É uma pena que muitos homens se apavorem quando são a caça, e não o caçador. Infelizmente, inúmeras mulheres evitam tomar a iniciativa sempre que gostariam, para não intimidar.

* Uma mulher que aborda não se rebaixa facilmente a mero objeto, ela começa muito ativa. Nem que seja por uma noite, podem ser duas pessoas assumindo plenamente seus desejos, sem pudores.

* Mirem-se no exemplo das mulheres roqueiras. A expectativa romântica, no sentido novela das oito, costuma ser bem menor do que a da maioria. Isso é saudável. Não é preciso ser mulherzinha para ser feminina; pode-se falar e agir com a mesma potência que os homens. E lidam melhor com os homens ao não esperarem por um príncipe encantado. Nada mais devastador para qualquer coisa real do que um ideal inalcançável.

* Enquanto o amor não vem, o sexo pode ser só sexo. Aliás, apenas os pudicos acham que ir para a cama com uma pessoa não pode ser o início de uma conexão forte e honesta. Pode ser uma oportunidade para conhecer alguém em sua intimidade, não só física. A nudez de duas pessoas na cama após uma noite de prazeres - só depois desse tipo de proximidade é que há como saber realmente se vale a pena investir em uma relação duradoura. 

* Tanto homens quanto mulheres se boicotam muito. Para ser justo, não é só a mulher que tem discursos sinuosos, medos e inseguranças de toda sorte. É sempre mais fácil obter prazeres moderados do que se entregar a uma pessoa que realmente valorizamos. Quando sentimos que temos muito a perder, nos apavoramos. O problema é, em grande parte, falta de amor-próprio. A maior armadilha é depender demais do outro para se sentir bem.

* Quanto mais temos uma reserva de auto-estima, mais podemos nos entregar a pessoas que nos toquem intensamente. Porque temos gordura para queimar, podemos nos arriscar sem o medo de que, caso percamos o parceiro, não nos sobre nada. Então, sim, nos aventuramos. Se não nos sentimos especiais, como sustentar o olhar de alguém que consideramos especial?

* A vida é uma só, mas as histórias podem ser muitas. É altamente recomendável experimentar-se tanto quanto puder. A melhor maneira de conhecer a si mesmo é nessa espécie de dialética com os parceiros.

PS:
* Já vivi uma situação em que do primeiro olhar ao beijo não foram nem quinze segundos - e foi um momento bem marcante. E situações em que o vamos nos conhecer melhor não me soou como um fazer-se-de-difícil, apenas como o convite para um degelo mais lento. Não se trata da velocidade, mas de sinceridade e integridade.

5.09.2010

Não é piada...

Minha mãe tem uma casa que pia! Não é piada, nem prosa fiada. Algum passarinho fez um ninho na tubulação do Suggar, que ninguém usava há anos. Não dá para ver os filhotes, mas quem vai à cozinha preparar um café, pode ouvir os pios. Várias gerações já compartilharam esse teto. Quando ficam grandes, da janela vemos os exercícios de seus primeiros voo solo.

4.29.2010

Crise dos 30

Este blog, com este nome, não vai sobreviver à minha crise dos 30. Que completo no dia 14 de julho. Data revolucionária, dia da Queda da Bastilha, o que sempre me deu um certo orgulho e um ímpeto por mudanças repentinas. Especialmente dos vinte até hoje, mal consegui atravessar dois meses sem enfrentar questionamentos bruscos de alguma ordem, fosse política, estética, afetiva, psicológica ou metafísica. É exaustivo, afinal dificilmente alguém consegue me acompanhar em tantas guinadas. Este blog mesmo... mal sei como tem sua média de 12 visitas por dia. Também nem desconfio como mantenho algumas amizades por 15 anos, se não sou a mesma pessoa por mais do que alguns instantes. Claro, eu só sobrevivo por ter esses parceiros de longa data,  mas sinto que só uma companhia me tem sido realmente constante: o espírito questionador, que em muitas situações mais me atrapalha do que ajuda.

No entanto, se você traça linhas aleatórias por muito tempo, algumas começam a incidir com maior visibilidade do que outras. O desenho vai se tornando mais visível, certos caminhos se sobressaem. Após muitas reviravoltas, por exemplo, é com alívio que chego a um momento profissional satisfatório. Estou adorando fazer traduções para a Discovery Channel, acho que descobri um nicho onde sou competente profissionalmente. Meu inglês ainda não é impecável, mas tem alguma coisa nessa rotina multitask que vai ao encontro da minha personalidade: o trabalho com a língua; a atenção à imagem; bocas abrindo e fechando onde encaixar a dublagem; o aprendizado a cada documentário; e o próprio ritmo frenético de passar de uma janela para a outra me são viciantes. Além das traduções, tenho lecionado inglês, o que para mim é um desafio bem maior, mas também recompensador. Acima de tudo, essas aulas têm me deixado mais aberto a pessoas bem diferentes de mim. Com isso, venho flexibilizando meu ponto mais intransigente, mais "jacobino": eu costumava pensar que só tinha a aprender com quem mostrasse algo de espírito-livre. Posso estar ficando velho, mas levei três décadas para entender que a vida não é uma superação atrás da outra. É que meus pais não me ensinaram a ser gente, apenas a ser filósofo ou artista. E por melhor que você seja nessas áreas, é pouco; eu estava deixando de captar muitas frequências e agora eu quero captá-las.

A maldição de ser artista, ao menos um com a imodesta intenção de criar algo relevante, é que quanto menos concessões fizer, mais longe chegará. Não no sentido comercial, claro, isso tem sido inversamente proporcional, mas quanto à contundência. Concessão não é apenas o que você cede para o mercado, pode ser como você se adapta a qualquer nicho estabelecido. Muitos conseguem repoduzir, por exemplo, exatamente o que a Folha de São Paulo ou a USP esperam de um artista, moldando-se àquele formato, independentemente de concordarem ou não. Nem essa facilidade eu me permito, apesar de que, se eu quisesse, saberia como fazê-lo.

Não acho que tenho uma natureza intrinsicamente beligerante, só não consigo ficar quieto quando enxergo erros hediondos que poucos percebem.  Foi com Nietzsche que aprendi o quanto a moral é inimiga da vida, mas quantos têm, mais do que inteligência, estômago para realmente absorver suas lições, 130 anos depois? Harold Rosenberg viu com muita clareza a farsa de grande parte da arte contemporânea, mas essa farsa não é percebida por quase ninguém com lucidez o bastante para contestá-la. O comunismo é uma ideia que chegou a me atrair, mas é impossível observar o homem em suas minúcias e julgá-lo capaz de sair da teoria à prática - mas quantos se dispõem a ver o homem com imparcialidade, sem véus confortadores? E, por fim, o amor, que não está em moda entre intelectuais, mas é sempre um filão para grande público. O pior é que eu acredito no amor, mas não como o vendem. A cada experiência que atravesso, repito a pergunta com maior decepção: cadê a coragem das pessoas para se abrirem ao outro sem se apoiar em um monte de mentiras?


4.12.2010

Pichadores convidados para a Bienal

Engraçado ver a notícia anunciada justo na Mônica Bergamo, pois não se trata de arte, mas de colunismo social mesmo. Alpinismo, holofote, vernisage, drinkzinho. Eu cantei a bola dois anos atrás: os pichadores se encaixam tão bem na atual mentalidade de arte contemporânea que poderiam ser cooptados numa boa. Não há uma distância muito grande entre os ataques de Rafael Augustaitis e a antiarte das últimas cinco décadas. O que ocorre é uma espécie de ultimato: ou se desiste de muito do que foi pensado nas universidades a respeito da antiarte, ou se endossa qualquer ataque à arte como vanguarda. O movimento inercial tem sido o da subtração, mais que da criação, e Rafael se valeu dessa brecha desde que começou.

Se ao menos esses caras pichassem mais as casas dos políticos ou propagassem mensagens como Maio de 68, eu poderia considerá-los, se não grandes artistas, ao menos terroristas poéticos. Eu já fiz isso - eu, cujo background de infância, comparado com o deles, é o de um filhinho de papai - por que não esses maloqueiros tão destemidos? Está provado que eles, assim como boa parte dos artistas "engajados" atuais, querem mais é aparecer, em detrimento de quem faz arte de verdade.

Contra a corrente sou eu. Por mim, as instituições podem considerá-los revolucionários - eu estou cada vez mais orgulhoso de seguir meu caminho sem tanta ansiedade pelo sucesso. E nem tenho um discurso anti-sucesso, como supostamente eles têm. Mas, do mesmo jeito que eu sabia dois anos atrás que eles poderiam escalar e ser cooptados, eu sabia também que meu caminho podia me deixar um tanto à margem. Ok, meus livros estão no mercado, tenho artigos na DASArtes, aceitei bolsa, mas corro meus riscos, e não me vendo sem um mínimo de coerência. E, isso eu tenho sentido na pele, especialmente estes dias: é muito, mas muito mais fácil engolir um Pixabomb do que um Ivan Hegenberg - por uma questão de densidade.


Nobody loves me

Nobody loves me
It's true

Só depois de ouvir meio distraído muitas vezes, reparei no terceiro verso da canção:
Not like you do

Ela canta esse verso um pouco mais para dentro, mais abafado, do que o início do refrão. A voz de Beth Gibbons é melancólica, o trip hop da banda é introspectivo, o nome da música é Sour Times - "tempos amargos". Este "not like you do" me deixa com uma ponta de dúvida. Ninguém me ama "como você" ou "não (é verdade) que você me ame"? Ela fala em disfarces, clama por sinceridade, e aponta que as "circunstâncias vão decidir".

A canção do Portishead tem ido e voltado na minha cabeça diante da consideração de que ninguém me ama. Acho que nunca antes, em quase trinta anos de vida, despertei tanta admiração - mas amor? Há muito tempo que ninguém me permite uma única chance para o amor. As mulheres têm se relacionado comigo com todas as precauções imagináveis, abandonando-me ao menor sinal de que um sentimento mais forte possa surgir.

Se eu for otimista, posso entender o segredo sussurrante do "not like you do" como um "ninguém me ama como você". Mas não mudaria a atmosfera da música - continuaria melancólica, com vidas enterradas e memórias de ontem.

Já não consigo mais dizer se o problema é meu ou delas. Estou pensando em amor, mas, assim como Beth Gibbons, desconfio de todos seus maneirismos mais codificados. Cavalheirismo, juras precipitadas, dez telefonemas por dia - na minha opinião, convenções sociais e neurose são um pouco diferentes de amor. A maioria das pessoas prefere assim mesmo, acho até que se sentem mais confortáveis com o mero simulacro do que com uma conexão verdadeira. Principalmente quem não se conhece muito bem, não permite uma relação onde os dois tentem se aproximar um do outro. Nada contra flores, mas qualquer mulher experiente deveria saber que os pseudo-cavalheiros as usam como disfarce. Mais ou menos assim: "Fique olhando para essas flores, mas não olhe por trás dos meus olhos, ok?". A ironia é que o acordo é aceito com um certo alívio; se a mulher apenas superficialmente quer conhecer seu homem, mas morre de medo do que pode encontrar no fundo, prefere o vermelho das flores do que o de seu coração pulsante.

Elogios à roupa, perguntas sobre como foi seu dia, presentinhos, bilhetinhos, um milhão de telefonemas - claro que em muitos casos isso pode conter um carinho sincero, mas em inúmeros outros, se reduz a apenas técnica, manutenção, procedimentos burocráticos que os homens, ao longo de gerações, aprenderam ser necessários para que a parceria funcione, independemente do que estejam sentindo. Ou apenas neurose, onde não se enxerga o outro, apenas se controla os papéis em cena. Não estou propondo o fechamento de todas as floriculturas - ora, eu já dei flores de presente - apenas que o foco esteja no que não é decorativo. Na minha opinião, o amor é a exceção da exceção. A cada dez casais que pensam que se amam, talvez apenas um se relacione com alguma verdade. A maioria das pessoas simplesmente não tem estômago para aceitar o parceiro tal como ele é, pelo motivo óbvio de que não aceitam a si mesmas tal como são.

A simples encenação de um namoro ou de um casamento pode parecer sublime, mas eu prefiro não confundir a personagem com a atriz. O momento de sedução sempre é um teatro, inevitavelmente, e eu até subo no palco e recito algumas falas decoradas. Mas quando ameaço tirar a maquiagem para que alguma coisa real tome lugar, geralmente é o início do fim. Elas nem mesmo esperam para ver se meu rosto ao natural lhes agrada ou não - é o próprio gesto de tirar a máscara que as assusta. Talvez porque se sentiriam impelidas a limpar o rosto delas também. Ao menos, esta é a minha versão do que tem me acontecido com uma irritante recorrência.

Mas quem sou eu para falar de amor? Afinal, nobody loves me
It's true

3.03.2010

Jein no Arena Poesia

Jein é meu mais novo poema, que vocês conferem no Arena Poesia. O site é administrado por Pedro 
Andrade Jr, um cara muito simpático e com boas ideias. Quem quiser colaborar com o site, entre em contato com ele: pandrade66@hotmail.com A cada edição do Arena Poesia, há um tema novo. Jein, no caso, é uma palavra alemã que combina o sim e o não (ja e nein) para sugerir ambiguidade e imprecisão.

Vale a pena contar, rapidamente, como conheci o figura. No final do ano passado, estávamos eu e meu irmão na fila da Funhouse, e puxamos conversa com um grupo de amigos para matar o tempo. Nos divertimos comentando a transformação da casa ao lado da boate: antes era uma casa de fetiches (bondage, sadomasoquismo), agora é uma escola infantil. Nossa imaginação doentia logo visualizou crianças pedindo palmatória e professores brandindo o chicote. O uniforme, claro, era composto de peças de couro, e quem não batia no colega ficava de castigo.

Entre uma piada idiota e outra, descobri que o Pedro trabalha com cinema e escreve poesia. Trocamos e-mails e algumas dicas. Ele leu meu roteiro para longa-metragem e deu os melhores palpites que Poesia Dissonante já recebeu. E ainda me deu de presente o tema para um poema que não é dos meus piores. Rock, cinema, humor infame, poesia... Uma pena que não sou gay, eu ia me apaixonar por ele fácil fácil.

2.24.2010

Guilherme de Almeida Prado

Em pleno sábado de carnaval, lá estava eu com este grande cineasta, na Lanchonete da Cidade, para trocarmos impressões sobre nossos trabalhos. Um dia antes de eu farrear encarnando um travesti, na Dorotéia de Boiçucanga, nada mais justo que encontrar ao vivo, depois de algumas conversas ao telefone, um diretor que não hesita em confudir gêneros. Gêneros sexuais, no que lembra Almodóvar, mas especialmente cinema com pintura, filme noir com pós-modernismo e diferentes referências musicais.

Ele começou a carreira na boca do lixo, como assistente de pornochanchadas. Aliás, este é o assunto de seu proximo projeto, em uma comédia sobre os bastidores desse universo. Com A Dama do Cine Shangai, de 1987, ganha o prêmio do Festival Gramado. Seu filme mais redondo é A Hora Mágica, onde explora com muita competência a transição da era do rádio para a era da televisão. Contudo, meu preferido dele é Onde Andará Dulce Veiga, que vocês podem baixar gratuitamente aqui. O filme não "vazou", foi o próprio Guilherme que liberou para a rede. Apesar de não ter sido bem compreendido pela crítica, é um filme que precisa ser visto. Guilherme interferiu diretamente no negativo, combinando padrões de cores arrebatadores com as cenas filmadas. Até mesmo pétalas de flores e asas de borboleta foram coladas na película. A Dulce Veiga do título é uma diva da música dos anos 60 há muito esquecida, interpretada por Maitê Proença. O jornalista Caio tenta resgatar seu passado quando é incumbido de cobrir a banda de sua filha, uma roqueira lésbica (Carolina Dickemann, em uma atuação ousada).

As duas divas, mãe e filha, uma apresentando versões suaves, outra, estridentes, da mesma canção, confundem os sentimentos de Caio. O peso que a música ganha, de uma geração para a outra, sinaliza o quanto o mundo ficou mais elétrico e tenso. Quanto ao nome do personagem principal, não é Caio à toa - trata-se de uma adaptação de romance homônimo de Caio Fernando de Abreu.

Basta uma espiada nas cenas do trailer para concluir que a crítica especializada - no Brasil, careta a ponto de se chocar com Cleópatra de Bressane - bem que tentou anular o filme, mas este sobreviverá. Não dá para negar que estamos diante de uma obra das mais experimentais e singulares que já se produziu em nossas terras.

2.03.2010

A-moral

Quando pequeno, como toda minha turma da escola, era só a professora pedir um desenho pra fazer o mesmo esquema: traçar um risco meio torto no que deveria ser o centro da página, e de um lado desenhar o heroi, do outro o vilão. Nossos garranchos ainda assinalavam qual era o "bem" e qual era o "mau". Influência de He-man, Thundercats, Jaspion, Caverna do Dragão e Homem-Aranha, que nos livravam de tantos perigos, abençoados e justos que eram. Mas meu pai, incorrígivel, não me perdoava. Eu não tinha nem sete anos, ele já queria me ensinar que em lugar algum, fora da TV, existe 'bem' ou 'mau'. Com essa idade é um tanto difícil entender, mas a lição perdurava como um desafio na minha cabeça. Uns três anos depois, pra piorar, ele tentou me explicar Complexo de Édipo. Foi mais ou menos assim: Filhinho, tá na hora de você saber que, no fundo, você quer matar o papai. Mas tudo bem, é só no inconsciente. Freud deixa. E antes que eu me recuperasse do susto, arrematava: E essa mulher aí do lado, sabe, a mamãe? Você tem vontade de meter o pinto nela. Mas eu não fico bravo, todo mundo é assim. Depois dessa, não tem mais volta, sua visão de mundo se distancia do senso comum, querendo ou não.

Meu pai era um chato, isso é fato, e aí é que dava mesmo vontade de matá-lo, tal como Freud queria. O contra-senso é que ao matá-lo - simbolicamente, claro - eu lhe dava razão. O conflito de gerações ficou concentrado no gosto musical - meu pai detestando rock, inclusive Doors cantando The End. Quanto à visão de mundo, essa que o Dr. Mauro ensinava já era subversiva o bastante, seria difícil encontrar pontos de partida mais rebeldes. À parte o incesto e as discussões em família, resolvi pensar no que ele tanto queria me ensinar. E, com o tempo, fui entendendo que nada prejudica tanto a vida quanto a noção de 'bondade'. Aliás, qualquer criança deveria saber disso. Que as penitências, o medo do inferno, as inquisições, as convenções, as jihads, os gulags, os preconceitos, as perseguições - só são possíveis quando todo um povo crê firmemente estar do lado "certo". Quem acredita no 'bem' - digamos, o "bom filho", o "bom pai", o "bom marido" - é sempre o mesmo personagem, obedecendo ao ambiente que o circunda. Se está no auge da Inquisição, vibra ao ver queimar na fogueira quem não acredita em pecado; se está na China de Mao, apedreja casais jovens que quebram o decoro ao dar as mãos em público; se está no Brasil de Médici, acha que os dissidentes são maléficos terroristas; se cresceu numa família nazista, tem plena convicção de que os judeus é que são desumanos e traiçoeiros. Em todos os momentos históricos em que houve apoio maciço à imbecilidade, sempre encontramos um ponto em comum: a crença fanática de que estavam certos, e os inimigos, errados.

Quando digo que prefiro uma ética extra-moral, não defendo o foda-se generalizado. Só está além do bem quando se ultrapassa também o mal. Do contrário, permanece aquela linha torta serrando ao meio, ainda estamos diminuídos, e ainda é nosso oposto dizendo quem somos, pelo avesso. A bondade jamais foi encontrada, nem pelos neurologistas, nem pelos psicanalistas, nem pelos amantes, nem pelos poetas. Por mais que mobilize as pessoas, não é nada mais que uma abstração. A empatia pelo outro, no entanto, esta se pode encontrar. Até mesmo em cães e ratos que testemunham maus tratos em outros de sua espécie, percebe-se respostas emocionais imediatas. Todo nosso processo de aprendizagem se apoia na imitação dos próximos. Cognitivamente, perceber ao outro ou a si mesmo requer atividade cerebral semelhante. Até mesmo torcer pelo Homem-Aranha só é possível porque nos identificamos com os demais. Isso não significa que nos identificamos com o Homem-Aranha porque ele representa nosso lado bom. Mais correto é que gostemos de vê-lo esmurrando inimigos.

Eu já nem lembro se foi antes ou depois da crítica de meu pai aos meus desenhos: às vezes eu via oBatman na armadilha e torcia mesmo era pelo Coringa. Torcia por Luc Skywalker, mas de repente a vontade era a de que Darth Vader o derrotasse. Eu não era uma criança nem boa nem má: em alguns momentos, tinha certeza de que ao crescer seria ecologista; em outros, era tão impaciente que esmurrava paredes e só respondia atravessado. E onde já se viu uma criança boazinha, sensata, um anjinho? Só se for muito tolhida, muito amedrontada; não é natural.

Quanto àquele traço que separa o heroi e o vilão de maneira incólume, melhor mesmo apagá-lo cedo, não deixá-lo engrossar. Depois, fica mais doloroso desaprender. Conheço adultos muito inteligentes que, para meu desgosto, ficam ultrajados quando digo apenas o que eu sabia desde a infância. Por exemplo, que quando traçamos contornos para o bem, o que queremos, na verdade, é evitar com toda a força certas empatias. Não queremos entender que o nazista é um ser humano, que pertence à nossa espécie, portanto não é totalmente diferente de nós - e achamos que resolvemos tudo ao tomá-lo por "mau". A armadilha é que este é exatamente o mesmo mecanismo que o nazista usou para definir o judeu. Não é que devamos perdoar genocidas, mas não precisamos gastar nossa energia a fim de convertê-los em algo não-humano. Basta derrubar os conceitos de bem e de mal para que o pensamento genocida não mais se sustente. Para uma criança, um nazista pode ser apenas um homem que não sabe brincar; para um adulto, é o homem que mente para si mesmo, um recalcado, que não confia na liberdade. Uma vez desaparecidas as convicções maniqueístas, interessa apenas o que amplia horizonte, rejeita-se tudo o que torna o mundo mais estreito. Não é preciso moral para valorizar a diferença, a variação, a dignidade de cada um ser como é. Ao dispensar a moral, somos obrigados a nos reiventar constantemente, temos de ser criativos a todo instante - e ninguém cria nada sozinho, somente em diálogo com os demais.

Muito mais natural do que a fiança da moral é o ímpeto para ir além do ego. Não se joga futebol sozinho, não se namora sozinho, não se conta uma piada para si mesmo com a mesma graça com que se conta para os amigos. Nossos desejos sempre se remetem a outras pessoas, o que é motivo para se confiar em uma ética a menos coerciva possível. Quanto menor a moral, menor o sentimento de vingança, menor a surdez nos diálogos e mais improváveis as reviravoltas fanáticas. Não que tudo seja belo, que ninguém se machuque no futebol, que o amor não tenha seus espinhos ou que todas as piadas tenham graça. Ainda assim, é com a inocência de uma criança que faço questão de ser amoral.

1.14.2010

Além dos bens e de Marx


Seja homem e siga a ti mesmo!
Não a mim, não a mim!
                        Friedrich Nietzsche   



            A leitura de Marx não pode fazer mal a quem tenha força para não se submeter acriticamente a mestre algum. Quem souber contrapor teoria à realidade, atualizar o velho, aceitar as lições da História, e tirar conclusões próprias em vez de aceitá-las prontas, muito se beneficiará de um estudo seminal sobre o capitalismo. O problema está em aceitar, junto com o que Marx tem de profícuo, uma série de premissas que já não nos servem e precisam ser questionadas. Estamos falando de um pensador que condenou a religião como ópio do povo, portanto nada mais justo que tenhamos o mesmo desapego quanto a dogmas ao refletir sobre suas ideias. Para começar, podemos perguntar se hoje Marx ainda seria comunista em sua versão totalizante. Até mesmo Einstein teve que recuar em alguns pontos de sua teoria – na constante cosmológica, em especial - e talvez Marx também recuasse diante de evidências que em seu tempo não pôde prever. Mesmo em sua época, ao menos para os jornalistas burgueses, ele dizia que a luta dos operários poderia variar de acordo com cada situação; que, por exemplo, na Inglaterra, a Revolução poderia dar lugar à negociação. Há grandes estudiosos de sua obra que se esquecem desses detalhes. Se desde aquele tempo Karl Marx podia ser mais flexível do que muitos de seus atuais seguidores, hoje há ainda menos motivos para se ouvir apenas a vertente mais intransigente da teoria. Caso a tentativa seja a de pensar em socialismo científico, a experiência deve definir o escopo. 

Aos modelos científicos não interessam as angústias humanas, considerações moralistas, menos ainda ambições políticas de ocasião. Levando isso em conta, devemos pensar até que ponto o socialismo de Marx ainda pode ser considerado científico – apesar de aspirar à aceitação universal de seus pressupostos. Como, de maneira geral, os cientistas não propõem fuzilamento aos que rejeitam as teorias de Darwin, que os marxistas encontrem fundamentos tão ou mais sólidos para assegurar que sua própria teoria de evolução não implique em sofrimento equivocado. Claro que nem mesmo a seleção natural está acima de qualquer dúvida, é apenas aquela, que, até o momento, se demonstra a mais confiável – a ciência é sempre a ciência de certo momento histórico, passível de ser superada. Uma teoria política, ainda mais uma que reivindica status de ciência, deve também provar ser a mais confiável em seu momento histórico. Se a cobaia é o homem, e se países inteiros podem servir como laboratório, cobrar por evidências não é pedir muito. A não ser que ainda estejamos no terreno da fé, não podemos nos permitir indulgências.

           Não há como discordar que alguns conceitos de Marx continuam sendo fundamentais para a compreensão de nossa época. A mais-valia, o fetichismo da mercadoria e a alienação, por exemplo, nos permitem criticar o capitalismo com ferramentas teóricas das mais incisivas. No entanto, ainda são muitos os que pensam que a vocação do marxismo vai muito além da análise, que se trata de uma preparação para a sociedade por vir, ou mesmo que a revolução será inevitável e redentora. Claro que é muito maior o número de pessoas que entende como obsoleto este modelo revolucionário, porém em muitos nichos intelectuais, a utopia resiste à Queda do Muro de Berlim, resiste a todas as decepções do socialismo real, e mesmo às respostas que grandes filósofos deram ao problema. A revolução comunista se faria em nome da emancipação humana, mas só parece empolgar a quem se recusa a enxergar o ser humano como ele é. Isto porque o ser humano, incluindo aí muitos de seus espécimes mais inteligentes, tende a procurar por líderes, por figuras tomadas como infalíveis que forneçam direções, e com tamanha paixão veem esses líderes que se cegam em relação a suas falhas. O homem é, ao mesmo tempo, muito mais limitado e muito mais fascinante do que Marx propunha. Mais limitado, pois não é capaz de assumir compromissos totalizantes sem em algum momento se deixar levar por desvios. E é mais fascinante, exatamente pelo mesmo motivo. A emancipação tal como Marx sonhava – com todos os trabalhadores em uníssono em nome do bem comum – jamais acontecerá, porque o homem não é capaz de se engajar de forma total. Por outro lado, é isso o que nos permite ver a liberdade possível: a recusa a se subsumir em um sistema. Inclusive o atual.

            Marx tem algo a nos ensinar, desde que o vejamos como um homem, não um mito, portanto passível de errar. Se hoje ele deixaria de ser comunista é especulação, mas não se pode negar que algumas de suas previsões mais assertivas falharam. Ele estava convencido que a revolução começaria nas civilizações mais industrializadas, e o que se verificou foi o oposto: Rússia, China, Cuba, os países da cortina de ferro, do leste asiático e dos revolucionários da África, todos eram essencialmente rurais. Outra previsão que foi para o buraco é a de que a classe média iria minguar, acirrando uma dicotomia entre detentores de capital e operariado. Os números mostram que em muitos países, inclusive o nosso, a classe média pode se expandir junto aos avanços do capitalismo. Aliás, o fato de termos alguma mobilidade social é o que mais frustra os comunistas de hoje, pois é um dos fatores a dissuadir os mais pobres a se unirem em prol da revolução. Não sendo nossa sociedade de todo estanque, muitos dos que estão na pobreza preferem sonhar com uma escalada rumo a um status diferenciado em vez de garantir sua parte em uma distribuição igualitária. A origem social não determina o comportamento individual de maneira tão definida quanto seria necessário para a revolução que Marx imaginou. O mais miserável dos trabalhadores talvez não seja tão diferente do chefe que o explora, pode estar apenas aguardando sua oportunidade. É na cegueira para tais instintos, aliás, que reside o equívoco maior do comunismo. Não se trata apenas de dificuldades acarretadas pela transposição da teoria para a prática – há questões que no papel já se afiguram extremamente problemáticas e perigosas.

            O “bem”

            O maior equívoco do marxismo está em sua necessidade de confiar na bondade humana. A transição de nossa sociedade injusta para uma sociedade igualitária só se faria à força, com violência, o que a princípio se justificaria por contrapor-se à falta de compaixão dos atuais poderosos, puníveis por não se importarem em olhar para a humanidade de cima para baixo. Concordo que falta compaixão a quem está no topo, mas faltou ver o quanto é ingênuo apostar na bondade dos que liderariam a transição. O simples fato de alguém se dizer comunista ou vir de uma camada social mais baixa não é garantia de que seu comportamento em algum momento não poderá ser traiçoeiro. Pelo contrário, é isso o que vimos em todas as tentativas de implantação do comunismo. Bakunin, o maior rival de Marx em seu tempo, não precisou esperar pelos abusos de Stalin, de Mao ou de Fidel para acusar o maior ideológo da esquerda de ingenuidade. Bakunin, anarquista, pode não ter conseguido sistematizar seus próprios sonhos com tantos detalhes quanto Marx, porém foi muito melhor psicólogo do que ele. Ele soube premeditar o que ainda hoje os comunistas se recusam a entender como fatalidade incontornável: o proletário, ou seu representante, ao subir até o poder, já não se comportará mais como proletário. O poder transformará sua essência, mesmo que em um primeiro instante ele acredite sinceramente em sua vocação revolucionária. Nós vemos isso acontecer muito de perto em nossos partidos de esquerda, como o PT, que por mais bem-intecionado, e até mesmo radical que tenha sido no início, está muito longe de permanecer incorruptível. Não há nada no comunismo que nos faça crer que seria diferente. Ou melhor, a diferença estaria na disponibilidade de força total para se usar contra “inimigos do povo”, contra “corruptores” e contra “dissidentes” – que, é claro, são sempre os outros, sempre bodes expiatórios. Eliminados os adversários e “traidores”, no entanto, teríamos que confiar cegamente nas boas intenções desses novos ditadores – não haveria mais ninguém com poder para regular suas ações.

            A questão é quase esotérica, mas consinto que Trotsky parecia muito melhor do que foi Stalin. Um grande sinal de que Trotsky merecia alguma simpatia é sua boa disposição diante dos artistas. Breton frequentemente trocava cartas com ele, em seu refúgio no México, e concordavam em um ponto interessantíssimo: no comunismo de Trostsky, a arte seria anarquista. Não haveria controle estatal algum sobre a criatividade dos artistas, coisa que jamais ocorreu no socialismo real. Se isso fosse aplicado, a arte viveria uma liberdade sem precedentes. No capitalismo, não há como a arte ser totalmente livre, o mercado inevitavelmente impõe seus padrões, seu gosto, seus limites, mas Trotsky defendia um regime onde isso seria possível. Não quero dar a entender que o mais importante seja a política cultural, mas esse ponto me inclina a pensar que sua visão da emancipação humana tinha certa flexibilidade e sensibilidade. Se ele conseguiria colocar tal plano em prática já é levar muito longe o esoterismo, pois o principal a se ter em mente é que Stalin se impôs como sucessor de Lênin. É a pergunta que eu sempre faço aos meus amigos marxistas, e eles nunca me deram uma resposta convincente: uma vez montado um aparato ditatorial, o que garante que o melhor homem assumirá o comando? Mais provável é que aconteça sempre o contrário: que o mais ambicioso, o mais forte, o mais dissimulado ou o mais inescrupuloso saberá galgar degraus melhor do que o homem sensível. Sempre um Stalin em vez de um Trotsky, ou mesmo um Fidel em lugar de um Che. Marx queria dedicar sua obra máxima a Darwin, que ele muito admirava, mas este recusou. Não foi à toa: a evolução natural mostra que os mais fortes tendem a se converter em líderes, e os mais fortes, tanto no reino animal quanto no humano, não dispensam uma agressividade acima da média.

            Na tentativa de evitar este problema, a teoria marxista prescreve que seja temporária a existência de qualquer partido, que a ditadura do proletariado se dissolva assim que a igualdade esteja assegurada. Verificou-se, no socialismo real, uma procrastinação eterna desse momento em que o Estado deixaria de existir. Acreditar que os governantes, uma vez tendo sentido o gostinho do poder, aceitariam o momento de abandonar seus postos é o mesmo que esperar que nossos milionários saiam voluntariamente de suas mansões para morar em conjuntos habitacionais e distribuam tudo que têm de supérfluo.

De qualquer modo, não há como chegar a um momento em que o comunismo se torne natural o bastante para funcionar sem coerção. Se, uma vez estabelecida a igualdade, o Estado abandonasse sua função, em pouquíssimo tempo os homens voltariam a competir, voltariam a disputar cada pequeno degrau, restabelecendo uma situação cada vez mais semelhante à do capitalismo atual. Por amargo que seja, é preciso admitir que o capitalismo é mais espontâneo, é mais natural do que o comunismo. Se somos descendentes dos macacos, não podemos esperar um comportamento sem qualquer vestígio de brutalidade animal – devemos lidar com isso da melhor maneira possível, mas sem ilusões. Ao contrário do que Rousseau acreditava, não há um bom selvagem que a sociedade corromperia. Pelo contrário: a disputa por território, a exploração e a hierarquia não são exclusividade do capitalismo avançado.
           
            Podre poder

Toda relação humana é relação de poder. Seja com o Estado, com o trabalho ou na vida em família. Foucault entendia que até mesmo o amor só existe em uma dinâmica entre dominador e dominado, às vezes mais sutil, às vezes com maior tensão. Não é à toa, portanto, que a revolução cultural de Mao Tsé-Tung coibia demonstrações de afeto, livros e filmes românticos ou qualquer traço sensual nos trajes e cortes de cabelo femininos. A princípio, pode parecer que ele estava deturpando os ideais comunistas, no entanto o que exerceu foi mais uma interpretação literal demais do que uma traição. O que Mao notou é que, se o princípio da igualdade deve se sobrepor a qualquer desejo individual, até mesmo a paixão dos amantes seria, potencialmente, um sentimento adverso, na medida que os afastaria da coletividade. Quanto mais dessexualizado um homem e uma mulher, mais eles poderiam se comportar fraternalmente, sem a subjugação de um ao outro, tal como Foucault constatou. Lembramos também que Marx havia escrito, em seus textos mais panfletários, que os filhos deveriam se separar dos pais e ser entregues ao Estado assim que se concluissem os primeiros cuidados maternais. Parece-nos bruto, seco demais, e dificilmente um comunista moderno concordaria ipsis litteris, no entanto pensamentos como esse coadunam com a dieta restrita de afetos que uma sociedade comunista requereria.

No início, aliás, Mao tentou oferecer maior liberdade de expressão, lançando a Campanha de Cem Flores, com a intenção de que todas as vozes dissidentes fossem ouvidas – cem escolas de pensamento, inclusive contrárias ao comunismo, seriam ouvidas. Em 1956, assim ele dizia: “Como verdade científica, o marxismo não teme críticas. Se o fizesse e pudesse ser derrotado numa discussão, não teria validade.” A intenção de abrir espaço para críticas parecia boa, mas logo incorreu em uma onda de protestos tão caótica e contraproducente, que Mao voltou atrás e se viu obrigado a reprimir os desafetos.

 Onde, quando e quanto se deve reprimir pode ser variável, no entanto, o igualitarismo pleno é impraticável sem o sufocamento de um grande leque de desejos e opiniões individuais. Se o Partido se arroga o direito de expropriar pessoas influentes de suas propriedades, de ocupar fábricas e empresas, e de decidir quem se incumbirá de quais funções na sociedade, só é capaz de fazê-lo ao legitimar sua autoridade junto ao povo. No primeiro momento, a repressão é sine qua non, para impedir os antigos poderosos de se reestruturarem. Obtida a estabilidade política, o Estado ainda precisa impor constantemente sua autoridade, atuando com a capilaridade e onipresença que caracteriza uma ditadura. Caso relaxe em sua influência, os opositores se reorganizam e o processo revolucionário não se consuma, como Mao bem o percebeu. Não só as transformações objetivas devem ser asseguradas, como uma nova subjetividade deve ser criada. Este passo, que costuma incluir o culto à personalidade do dirigente, é de vital importância, para que as identificações burguesas sejam substituídas por novos valores e possa haver harmonia nessa sociedade.

Um problema é que os desejos burgueses, com todas as críticas que podemos lhes fazer, não são tão totalmente artificiais. Por mais que a publicidade use truques escusos para difundir desejos supérfluos, alguma vontade de consumir é autêntica. O dinheiro traz infelicidade para a sociedade, mas para o indivíduo pode ser prazeroso. Mesmo no imaginário dos mais pobres, há uma volúpia em torno do dinheiro que só se reprime a muito custo, usando força bruta contra os dissidentes, controlando-se a imprensa e a educação. Se a nossos olhos parece que o socialismo real cometeu exageros, não foi apenas pela idiossincrasia dos comandantes, mas porque a transposição da teoria para a realidade desperta resistências que só podem ser vencidas com mão de ferro. Tão difícil é esse controle que, para o Partido, o melhor é estabelecer laços simbólicos os mais entranhados possíveis. Com isso, uma grande energia é dispendida não com a instrução científica, mas com a propaganda mais emotiva e irracional. Não vejo em que medida isto seja menos pior do que a publicidade do capitalismo. O ditador, cultuado, assume as feições de grande pai, responsável pela vida de cada um, ensinando com severidade e atenção constante, influindo na maneira de pensar, de agir e de desejar de cada filho. Mesmo que não houvesse perseguições e fuzilamentos arbitrários, o comunismo já seria lamentável por infantilizar o povo, por afastar cada homem de sua potência, de sua capacidade de responder por si mesmo.

Duas acepções de economia

Marx fala em emancipação humana. Com o fim do trabalho exploratório, o homem readquiriria sua dignidade. O trabalho já não seria reificante, pois o produto de seu esforço retornaria ao trabalhador de forma justa, desfazendo sua posição de inferioridade em relação ao empregador. Até aqui, o pensamento é de fato libertário. Constenador é perceber tudo que ficou de fora. Pode ser profícuo considerar, tanto quanto a noção marxista de economia, a maneira como Freud emprega a mesma palavra. “Economia”, no vocabulário psicanalítico, não diz respeito às finanças, mas ao fluxo da libido, à maneira como o inconsciente lida com as pulsões. As duas acepções da palavra podem ser pensadas conjuntamente, embora se costume esquecer do quanto uma economia interfere na outra. 

Todas as correntes psicanalistas, por mais diversas que sejam, concordam que a agressividade é anterior ao surgimento da propriedade privada e faz parte da psique desde a primeira infância. O sofrimento psicológico é impossível de se erradicar – afinal nem sempre advém de situações concretas, muitas vezes sendo deflagrado por situações imaginárias. Para organizar sua economia psíquica, constantemente ameaçada de caos, cada indivíduo se vale de poderosas ilusões que nutre a respeito de si mesmo e do mundo. Trata-se de ilusões constituintes, necessárias, que podemos chamar de loucura cotidiana. Nem eu nem vocês estamos isentos dessa condição, que no entanto nos salva da loucura maior, patológica. Lembremos que o homem é um animal desgarrado da natureza, de que a sociedade se apoia em inúmeros artifícios, de que a consciência da morte nos oprime, e de que o pacto social, mesmo o mais justo, nos impinge um grande leque de dificuldades adaptativas. O marxismo não atribui o mesmo peso a tais considerações que a psicanálise. Caso confrontasse a economia material com a economia libidinal, teria que admitir que todos os comandantes do Partido estão sujeitos, como qualquer homem, à loucura cotidiana. A auto-ilusão pode ser encontrada, sem dúvida, nos governantes da democracia, porém ao menos não se lhes oferece poder totalitário. Na democracia, um presidente homofóbico pode ser eleito, mas tal sintoma terá que ser contido. Mesmo Berlusconi, um dos piores chefes de Estado da atual democracia, não pode dar plena vazão a seus preconceitos. Nas mãos de um ditador, a homofobia pode se externalizar em um decreto que condene o homossexualismo e toda a cultura gay, como de fato fez Fidel Castro em Cuba. Nem sequer vem ao caso falar em “crueldade”. Os ditadores comunistas que tivemos muito provavelmente sentiam-se fiéis ao legado de Marx – mesmo porque trata-se de uma ideologia estruturante, totalizante a ponto de organizar sua economia psíquica e acentuar convicções –, no entanto, nem mesmo a crença sincera na utopia garante que as neuroses ficarão de fora das decisões nacionais. Fidel Castro – ou mesmo Stalin – aparentemente sentiam-se bons cumpridores de seus deveres, por mais que sua rotina fosse sanguinária. 

O próprio Marx, se tivermos um mínimo de honestidade com a História, possuía uma auto-imagem incompatível com algumas de suas atitudes. Filho da burguesia, o revolucionário defensor dos trabalhadores vivia às custas de Engels, pedindo-lhe empréstimos que não se destinavam à mera sobrevivência, mas ao aprumo nas vestimentas e na decoração de sua casa. Ele considerava fundamental ter uma apresentação vistosa, muito acima dos trabalhadores que defendia, para suas reuniões políticas. Diplomaticamente, talvez seja defensável, mas o que pensar de sua decisão, confessada em carta a Engels, de que suas filhas deveriam se casar com homens bem-posicionados? Ele diz com todas as letras que não era conveniente que suas filhas se casassem com proletários. Também encontramos em sua correspondência certos traços racistas, ou no mínimo colonialistas, sem grandes simpatias pela África. Esforço-me para não ser tendencioso, não é preciso manipular os fatos para fazer um retrato humano de Marx que não é de todo agradável. Homem algum, por maior que seja, passa incólume pela vida, isento de uma mancha ou outra.

Isto posto, devemos ter a clareza de que nenhuma filosofia onde se separe o bem e o mal pode ser tábua de salvação. Quando se tem uma auto-imagem envolta pela aura do “bem”, permite-se muitas indulgências para consigo. Quando se pressupõe a existência do “mal” como um absoluto, obtém-se permissão para liquidá-lo sem maiores explicações. O problema é que não há, a priori, qualquer instrumento para aferir se o “mal” está realmente no inimigo, ou se pertence à dinâmica de auto-ilusão constituinte do comandante. Para se pensar o homem com alguma confiabilidade, é preciso ter coragem de pensá-lo além do bem e do mal. Em vez de apostar em um discernimento moral sobre-humano por parte do ditador, que nem mesmo Marx atingiu, é preferível uma filosofia que lide com a vida de maneira extra-moral – como o faz a psicanálise ou, antes dela, Nietzsche. Nietzsche assume os aspectos trágicos da vida, no entanto nos ensina a lidar com eles. O filósofo foi muito mais ético do que se costuma pensar. Ele é associado erroneamente ao nazismo, sendo que rompeu com Wagner devido ao anti-semitismo do compositor. Costuma-se também tachá-lo de niilista, quando na verdade trata-se do oposto. Se Nietzsche escancara os aspectos trágicos da vida é porque ao olhar para o abismo de frente pode-se aprender a atravessá-lo. É evidente que ele tem seu lado perturbador, pois abdica da tentativa de livrar o mundo do sofrimento. Que fique claro, no entanto, que assim faz porque qualquer tarefa totalizante só poderia ter como resultado novos enganos. Em vez de nos orientar ideologicamente, nos estimula a coragem para enfrentarmos as ilusões. A única grande ilusão que Nietzsche conserva é a arte, que, aliás, serve-lhe como exemplo de que o sofrimento pode render coisas belas e potentes. O filósofo viveu no fim do século XIX, época em que os ideais socialistas ganhavam força, e observando tais movimentos, considerou que um regime igualitário poderia, em tese, ser alcançado. A seu ver, contudo, tal regime só poderia se firmar através de uma série de ilusões, através de uma pressão constante e manipuladora, o que faria com que tivéssemos uma sociedade de “homens de rebanho”, sem voz própria. Se levarmos em conta o que se passou na arte da Rússia soviética, não deixa de ter sua razão. Com Trotsky e Breton afastados do governo, toda a vanguarda artística que havia no país, de Malevitch a Maiakóvski, enfrentou a prisão, o exílio ou o ocaso, ao passo que prosperou o realismo socialista, uma produção que pode ter sido boa propaganda, porém insípida como arte. A verdade é que a cultura se deteriorou em todos os regimes socialistas, recuperando-se apenas nos momentos de abertura.
 
Em um governo totalitário, seja de esquerda ou de direita, a tendência não é a de que a expressão livre prospere, mas a de que o programa político inclua o controle sobre a arte. Arte controlada só pode ser uma arte menor, e não se trata apenas de arte. Um pensamento crítico ao capitalismo sem dúvida é fundamental para que nos livremos da alienação, afinal nosso atual sistema divulga uma idéia muito limitada de liberdade, associada ao consumo voraz. Não vou me estender neste ponto, que já abordei em outros textos, mas a publicidade contamina nosso imaginário, desestimulando-nos a afirmar uma subjetividade mais autêntica, mais digna. No entanto, a emancipação planejada pelo comunismo pode ser ainda mais enganosa, e com menor espaço para dissidências do que temos na democracia. Lacan, por exemplo, paga seus tributos a Marx, mas entende que a alienação não acontece apenas nas relações de trabalho, de produção ou de consumo. Alienação, no vocabulário de Lacan, significa submissão ao Outro, onde os desejos pessoais ficam tolhidos. O fascínio que os ditadores populistas exercem sobre a população, que, como vimos, assume a mitologia de um grande pai, é extremamente alienante. Se não há uma distinção clara dos desejos do indivíduo em relação aos desse Outro, encarnado pelo ditador, não podemos sequer dizer que o sujeito esteja politicamente mobilizado. Sua subjetividade é coordenada por desejos alheios, vindos de cima para baixo. É um quadro de grande fragilidade e de infantilidade psíquica. Nas palavras de Nietzsche, é esse o homem de rebanho. Não é só a exploração material que deforma o homem; essa é, certamente, uma das coisas, no entanto Marx foi muito redutor. Também a hierarquia, a obediência a um líder e o trabalho não-criativo sufocam e atrofiam o homem. Marx teria suposto que a longo prazo tais problemas supostamente seriam resolvidos com o fim do Estado, porém, se este passo é impraticável, o estabelecimento de uma ditadura apenas os exacerba.
            
 A dificuldade maior, que até mesmo alguns dos grandes pensadores dos últimos tempos não souberam assimilar, é a compreensão de que não há como livrar o mundo de toda tragédia. É um erro ainda mais trágico, por parte dos sistemas totalitários, arrogar-se a pretensão de erradicar da humanidade suas inevitáveis angústias. A partir do momento que o homem se afasta da natureza, não há maneira de não se deformar. A alienação tem uma envergadura muito maior do que o marxismo considera. Não há, infelizmente, como renunciar a esta condição, embora se possa aprimorar ao longo da vida as maneiras de se responder pelo próprio desejo, em vez de se subordinar a diretrizes superiores. Tal noção de liberdade me parece mais generosa e mais ética do que a noção materialista. Uma filosofia trágica, tal como a de Nietzsche, não se confunde com uma visão pessimista, na medida que nos ensina a dizer Sim para a vida, apesar de seus conflitos. Não há uma “saída” finalista, mas uma busca por maior autonomia, ainda que incompleta, onde possamos escolher nossos próprios equívocos. Não se defende aqui o relativismo total, pois este sim seria niilista, mas uma resistência local, não-dogmática, e uma consciência que abarque também o inconsciente, o fugidio e o inexpugnável. A micropolítica, como defendem aqueles que melhor atualizaram Nietzsche, como Deleuze e Foucault, é preferível às políticas totalizantes, precisamente por considerar a economia libidinal tanto quanto a economia financeira.

Ao concentrar todos os fluxos em um único aspecto da vida em sociedade – o bem-estar material -, subordinando cultura, autonomia e liberdade individual a um sistema controlado, o ideal comunista desconsidera todos os outros devires, todas as demais batalhas e conquistas da humanidade. A compreensão de que o capitalismo é perverso denota um pensamento crítico, porém este termina assim que se obstina por soluções demasiado moralistas. Falha quem desconsidera a natureza humana no que esta tem de variado, de complexo, de sutil, e mesmo de incoercível. Um comunista ortodoxo talvez venha a tachar meus pensamento de conivente e conservador, quando se trata mais precisamente de uma desencantada, porém vigorosa lucidez. Prefiro-a do que a ilusão eloquente – o estrago é bem menor, e as possibilidades se abrem para o que podemos chamar com mais sabedoria de liberdade.