8.23.2008

Do lado de lá do mundo

Os desafios e contradições da China em transição me fazem lembrar de uma das minhas canções favoritas, China Girl. Parece ter mais a mão de David Bowie que a de Iggy Pop (eles compuseram juntos), mas prefiro a versão do segundo. A canção faz sentido pela sua violência, a começar pela sem-cerimônia com que as guitarras corrompem as tradicionais melodias chinesas. Milênios de cultura de um império soberano são deformados pela invasão pop, e os gritos de Iggy revelam a intensidade de um dilema. Por maior que seja a paixão, (I’m a mess without you), o americano sente que vai arruinar sua amada, ao lhe dar televisão, olhos azuis e um homem que quer dominar o mundo. Ele chega a confessar o lado fascista de seu desejo, as visões de suásticas na mente, no entanto a guitarra prossegue, demolindo os fraseados mais delicados de uma tradição que não lhe pertence. A música é de 1990, início da abertura econômica da China para o ocidente.

Confesso que não é fácil, mas venho tentando entender o que se passa com os 1,3 bilhões de habitantes deste país. Se, por um lado, as projeções de crescimento econômico parecem infalíveis, na política e na cultura o solo é dos mais instáveis. Para começar, o choque de gerações é muito forte. Os velhos ainda reproduzem a moral maoísta, os jovens cada vez mais adquirem valores ocidentais. A mudança de costumes, acelerada pela internet, é bem mais abrupta que nossa revolução sexual dos anos 50 e 60. Hoje os jovens vão para as baladas e fazem sexo casual, ainda que não precisem mais do que abraçar alguém na rua para serem mal vistos por quem viveu outros tempos. Durante a chamada revolução cultural de Mao, não eram permitidas demonstrações de afeto em público, como beijos ou caminhar de mãos dadas. A paixão era considerada um sentimento “burguês" e “contra-revolucionário”, por nos afastar dos interesses coletivos. Mao certamente concordaria com as visões de suásticas da canção, muito mais do que os roqueiros que a compuseram. O moralismo do Partido era tomado a peito pela população, capaz de apedrejar os casais que ostentassem seu romance. Parece folclore mccarthista, mas tamanha era a repressão que muitas pessoas morriam virgens mesmo quando casadas, devido à total ignorância no assunto. Ainda hoje é um problema sério para os sexólogos chineses, por mais que o governo invista em conscientização. A expressão “criado com a avó”, que usamos para descrever alguém assexuado, na China pode significar um adulto que não sabe sequer quais são as partes do corpo envolvidas em um ato sexual.



Não está longe o dia em que a China ultrapassará os EUA e se consolidará como a principal potência econômica mundial. Só não acredito que tão cedo ela possa ocupar o mesmo espaço no imaginário popular, nos empurrando cultura de massa com o mesmo fôlego que a indústria cultural norte-americana. Por enquanto, acontece o oposto: os jovens chineses que têm algum poder aquisitivo se comportam como os brasileiros, preferindo a cultura enlatada dos gringos do que suas raízes ou qualquer coisa mais autêntica. Isto, é claro, para os que podem se regalar com cultura, para os que vivem o lado bom do crescimento chinês. Alguns se tornam milionários rapidamente, outros viverão até o fim uma miséria de terceiro mundo. Supostamente, estão todos contribuindo igualmente para um país "comunista”, mas é pouco provável que essa ideologia tenha a mesma aceitação hoje do que no tempo dos avós. Ficou para trás o tempo em que o maoísmo podia ser recebido como dádiva pela esquerda no mundo todo. Os jovens chineses parecem ver na revolução cultural o mesmo retrocesso que nós vemos hoje; e, em comparação, a abertura para o ocidente parece mesmo com um avanço. Pena que não seja um progresso tão entusiasmante: como a China girl, deixam-se arrebatar pelos americanos.

O preço desta aproximação entre capitalismo avançado e resquícios de ideologia autoritária pode ser mais alto que o de uma Guerra Fria. Em pleno ano olímpico, a China massacra os tibeteanos, e por mais que o ocidente se oponha, não pode fazer nada. A China canta Why don't you just shut your mouth up, tanto para a imprensa local quanto para os demais países, provando que ninguém contraria quem detém um sexto dos consumidores do mundo. Dinheiro jamais se importou com ideologia, do contrário o McDonald’s não poderia ser o restaurante oficial dos Jogos de Pequim. O Partido Comunista também está mais preocupado com dinheiro do que com Marx, já que não se incomoda em firmar parceria com empresas do país que propagou o fordismo. Se o discurso oficial é comunista, na prática temos uma exploração do trabalhador que não se via desde o século XIX. Em um documentário transmitido no GNT, vi cenas de uma fábrica de jeans onde as operárias enfrentam rotinas de até 16 horas seguidas, sem hora extra, ameaçadas de demissão à menor reclamação, sem direitos trabalhistas, ganhando um salário insignificante. As filmagens tiveram que se fazer em segredo, pois qualquer documento que mostre o lado sórdido do país é reprimido com prisões – o que, de fato, aconteceu com alguns integrantes da equipe. E é sob esta pressão que a China vem obtendo um crescimento anual de quase 10%.


Ao McDonald’s não interessam nem a semi-escravidão dos trabalhadores nem o genocídio no Tibete – enquanto as pessoas se sentirem alegres consumindo China Menu, não há problema algum. Em todo o planeta, trabalha-se cada vez mais para ganhar menos, em grande parte por culpa do modelo chinês, que obriga todos seus competidores a nivelarem por baixo. É claro que a China está muito longe daquilo que os comunistas mais simpáticos sonharam – vamos admitir, existem comunistas bem-intencionados, assim como existem padres humanistas. Até mesmo Godard, na minha opinião o cineasta mais inteligente do século XX, caiu nessa, e rodou um filme um tanto idílico, impossivelmente otimista sobre sua chinesa. A revolução cultural era celebrada quando não era compreendida, quando a falta de informação permitia idealizações. Era o lado de lá do mundo, tão distante quanto o paraíso cristão. Ninguém por aqui o conhecia de perto, poderia imaginá-lo como quisesse, era bonito como escape da realidade. Hoje se pode discutir comunismo à vontade em um país como o nosso, que tem algumas liberdades democráticas. Na China, que se diz comunista, não há a menor possibilidade de discutir o que a esquerda tradicional sonha aqui – que o digam as centenas de sociólogos e antropólogos que iriam a um congresso em Pequim, cancelado para abafar qualquer conversa sobre o Tibete.



O capitalismo é insensível e o socialismo real uma desgraça elevada ao quadrado. Então o que fazemos? Agimos cinicamente e aplaudimos a cerimônia das Olimpíadas, depois vamos ao McDonald’s comemorar a união dos povos? Não sou padre, me recuso a pregar. Postura política jamais deveria ser a de um Cristo preso na cruz, deveria vir a cada um sem coação, só assim para dar liberdade de movimentação. No meu caso, venho boicotando produtos Made in China. Não muda muito, mas me sinto menos otário ao fazê-lo. O que se passa na China respinga em você, até mesmo na diminuição do seu salário – não é exagero, não há fatores isolados em uma economia mundializada.

Há alguns anos, evito também os produtos norte-americanos. Se no futebol ou no vôlei torcemos com tanta garra pelo Brasil contra os EUA, por que em política fazemos o contrário? Por que damos tanta moral a um país que nos explora copiosamente? O que os Estados Unidos vêem no Brasil é um reservatório de mão-de-obra barata e consumidores que abrem a perna fácil. Não estou nem mesmo sendo polêmico: não temos um governo como o chinês que nos impeça de falar de problemas evidentes. Ainda assim, reconheço ao menos uma coisa que os americanos criaram que quase compensa todos os filmes kistch, toda a fast-food insípida e os produtos superestimados que eles nos empurram. Eu não me sinto nem um pouco alienado ao dizer que considero o rock mais revolucionário do que qualquer tentativa de se implantar o comunismo. Mesmo quem não gosta do ritmo tem que admitir, a revolução sexual deve muito àqueles primeiros cabeludos. Por outro lado, confronto a teoria política mais doutrinária com maus exemplos como o da China. Que me desculpem todos meus amigos marxistas, mas não há nada que me leve a acreditar que o próximo ditador do proletariado, seja lá em que país surgir (no Brasil não vai ser, duvido muito), finalmente vai ser gentil com os trabalhadores e fazer tudo como manda a utopia. Para mim, isso é messiânico, é a crença em um lado de lá, tão fictício quanto o reino da Cocanha. É esquecer que onde há desejo há vontade de poder. Ou, como na canção de Bowie e Iggy Pop, esquecer que até mesmo um homem apaixonado pode arruinar aquilo que preza – e nem mesmo a consciência política pode impedi-lo. A meu ver, o rock dá conta da condição trágica do ser humano muito melhor do que o comunismo utópico. Basta notar que, por mais que que os roqueiros tenham seu lado maldito, falam de amor em todas suas nuances, ao passo que no comunismo, este se torna um de seus maiores obstáculos. É de desejo que eu quero falar, algo que não tem muito espaço no pensamento marxista.

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