12.20.2007

Clarice não é mulherzinha

Um texto que escrevi para minha mãe, Clarice Lispector, que sempre foi muito mais uma bruxa do que uma dondoca, ao contrário do que alguns pensam.
Saiu no Cronópios. Confira.

12.16.2007

PAC, man!



O trocadilho pode ser infame, mas motivo para comemorar não me falta! Fiquei sabendo há pouco que abocanhei o PAC! Não é o PAC do Lula, é o Programa de Ação Cultural do Estado de Sampaulo.
São 15 mil reais vindos da Secretaria de Cultura - ou seja, do seu bolso - para eu terminar meu próximo livro, "Puro enquanto".
Fique tranquilo, pretendo fazer bom uso dessa verba, não vou gastar tudo com droga. É um livro que merece existir, mas se não fosse esse prêmio, não sei dizer se eu conseguiria levar adiante. Só a impressão vai me sair uns 12 mil reais! Tenho um ano de muito trabalho pela frente e quero dar o sangue.
Na verdade essa vitória me deixou muito feliz, mas também nervoso como nunca. Nos últimos OITO anos eu me ferrei demais, e é tanto tempo se dando mal na vida que ainda não me acostumei a ganhar. Também fico com um certo receio da inveja alheia. Hoje penso que uma dose de inveja é das coisas mais naturais que podem existir, mas os piores momentos da minha vida foram por conta disso - destruição gratuita, e até então eu nem tinha nada tão precioso para mostrar... Não quero perder amigos por bobagens. Acho que minha única saída é persistir, mirar cada vez mais alto, até nos acostumarmos todos - tanto eu quanto os eventuais invejosos - que eu tenho uma produção que merece algum destaque. O que eu crio não é para mim - assim que eu publico, já não me pertence mais, sempre fiz para os outros.
Problemas e frescuras a parte, foi muito esforço para não ser recompensado. Passei dez anos anotando meus sonhos pela manhã, muitas vezes levantando no meio da noite para escrever; desenvolvi uma linguagem que traduz o caos de uma mente que sonha; criei imagens, levando em conta que os sonhos não podem ser completamente verbalizados; e costurei tudo em uma história com começo meio e fim - mas não necessariamente nessa ordem, como dizia Fellini. A parte do texto está quase pronta, o que me falta são algumas pinturas que dialoguem com o fluxo narrativo.
Não é um livrinho qualquer, é a linguagem querendo testar seus próprios limites. Até o fim de 2008 vocês vão poder conferir.

12.11.2007

Ainda sobre o delinqüente Ari Almeida

Logo depois de publicar meu artigo sobre essa figura imprevisível, nosso maior terrorista poético, me surpreendi com uma entrada em seu blog que a princípio daria a entender que ele passou por uma alteração brusca em sua maneira de pensar, Dinheiro como Deus: Uma mudança na percepção do dinheiro enquanto valor.
Nos comentários, as reações variaram ente "Alguma coisa mudou nesse blog" e "O Ari endoidou". Um tanto doido ele sempre foi, afinal apanhar sistematicamente de seguranças ao desafiar shopping centers, igrejas e outros redutos do consumismo e da moral não é um comportamento dos mais comuns. No entanto, todas as ações descritas em seu Manual Prático de delinqüencia juvenil, por mais inusitadas e polêmicas que sejam, transmitem uma análise sobre o poder bem mais lúcida do que a que o stablishment tenta nos vender. Há pelo menos dois anos eu acompanho o blog de Ari Almeida, e, por mais porra-louca que ele seja, me convenceu de ser alguém que sonha com um mundo mais livre. Trata-se de um neo-anarquista, leitor de Hakim Bey, Foucault e Deleuze, capaz de escancarar as contradições do sistema capitalista em ações criativas, que, a meu ver, se parecem um pouco com o que vem ocorrendo na atual "arte engajada", porém com uma contundência muito maior. No mínimo me parecem mais sinceras, como vocês podem conferir na resenha que escrevi para o Casulo, disponível logo abaixo.
Confesso que me senti um tanto culpado no dia do lançamento do Casulo. Não por defender alguém tão radical, mas, pelo contrário, por no mesmo dia ter me apresentado em um espaço patrocinado por um banco, o Itaú Cultural. Se nosso Delinqüente está nesse exato momento confundindo todos que o tomam como um herói do combate ao sistema, eu, apesar de não ter um currículo como o dele, fui tão contraditório quanto. Ao mesmo tempo que eu elogiava um terrorista poético que exorcisava bancos, "lugares do mal" como ele diz, minha arte estava à disposição do Itaú, o que de certa forma agrega valor à instituição. No mundinho das artes prospera uma militância ferrenha, um povo tão obsecado pelo ideal de uma arte imune ao mercantilismo que já não consegue olhar para obra nenhuma, apenas para os veículos em que ela aparece. Eu já escrevi muitas vezes que essa ala mais crítica, que conseguiu estabelecer o pensamento dominante em artes plásticas, nunca foi coerente, apenas faz barulho mas não age de acordo com o que prega. De qualquer modo, mais parecia uma brincadeira do destino que, no dia primeiro deste mês, eu estivesse ao mesmo tempo lançando um texto quase inofensivo em um banco e outro texto, combativo, que criticava não só os bancos como todos os perpetuadores da lógica selvagem do capitalismo.
Vou tentar dar conta aqui dessas contradições, tanto as minhas quanto as do Ari. No texto mais recente de seu blog, pela primeira vez ele fez algo como um elogio sem pudores ao dinheiro. Uma coisa surpreendente, vinda de alguém que colocou meninos de rua em um shopping, atacou a fábrica da Renault, e dispara afirmações como "a generosidade não tem vez no mercado global". Por outro lado, jamais notamos em Ari uma posição comprometida com qualquer militância tradicional. Pelo contrário, ele deixou claro muitas vezes que não se orientava por uma Revolução, mas pelos levantes, pelos breves momentos de liberdade - o que Hakim Bey chamaria de TAZ (Zona Autônoma Temporária) e Deleuze de linhas de fuga. Uma coisa que me atraiu nesses discursos foi constatar que seus inimigos são os mesmos que os meus: o pensamento único, a realidade consensual. Pensar que o inimigo seria simplesmente "o capitalismo" apenas nos faria patinar na lama, já que não se trata de algo tão monolítico quanto se pode imaginar. Além disso, por mais que simpatizemos com ideais igualitários, não acreditamos que as pessoas já tenham uma mentalidade à altura de uma sociedade anarquista. Talvez jamais venham a ter, e ainda assim considero o terrorismo poético uma arma das mais interessantes nessa luta. Não é a luta de quem pretende uma tomada de poder, mas de quem anseia pela expansão do senso crítico. E o terrorismo poético não é a única arma, mas uma das mais sedutoras, porque pega as pessoas desprevenidas, convida-as para a reflexão usando métodos heterodoxos, diante dos quais ninguém tem um escudo pronto.
Uso aqui o "nós" porque as posições coincidem em muitos pontos, não porque somos um movimento. Contudo, o que nos interessa é a liberdade, um ideal muito mais verdadeiro que a "bondade", coisa que a rigor sequer existe - para quem tem dúvidas, que leia um pouco de Nietzsche, e entenda por a + b que a bondade é uma ficção. A propagação de qualquer ideologia baseada em imperativos categóricos só pode mobilizar através de uma nova forma de domínio, o que não deixa de ser bastante limitador. Nossa ética, por sua vez, tem uma presença imanente: é a constatação de que a liberdade individual entra em choque com a mentalidade do capitalismo avançado, por mais individualista que seja esse sistema. A competição exarcebada, a decorrente violência, os desejos inculcados artificialmente pela publicidade... não vamos entrar em detalhes em um texto curto, mas o caso é que tudo isso tende a diminuir a potência do indivíduo e a qualidade de sua vida, mesmo que na aparência seja o contrário. Porém, a contradição está dos dois lados, tanto à esquerda quanto à direita. Afinal, que liberdade seria essa em que, para questionar os abusos do poder, uma vontade autêntica (de gastar um pouco de dinheiro) tivesse que ser duramente reprimida? Não se pode ser dogmático, não se pode insistir que o consumo traga somente a infelicidade, nenhum ideal vai muito longe apoiado em sofismas. Por esse motivo não condeno Ari quando diz que não devemos rejeitar o dinheiro, apenas ter uma relação mais saudável com ele. Em uma de suas tiradas, ele disse algo com que só posso concordar: "Não estou falando de não comer, estou falando de mastigar antes de engolir. Estou falando de sentir o gosto da parada a tempo de cuspir fora se for uma merda. Ou pior: veneno. Enfim, senso crítico."
Ari está aposentado como terrorista poético. Aquela fase de sua vida ao menos rendeu seu Manual Prático da delinqüencia Juvenil, que me anima por se tratar de um convite à reflexão acessível a qualquer adolescente esperto. É preciso algo mais cativante do que panfletos para conquistar quem poderia muito bem se encerrar no egoísmo, e nesse ponto o Ari é prato cheio para os jovens. A linguagem dele é a linguagem das ruas, sua ironia questiona e diverte ao mesmo tempo e suas aventuras são demonstrações práticas de que o melhor da vida não está nas promessas do status quo. Não é um livro que ensina como derrubar o sistema, mas ensina a não abaixar a cabeça.
Ainda assim, para mim está bastante claro que a delinqüencia só pode mesmo ser juvenil, não é aconselhável para quem começa a ter rugas na cara. Tanto é verdade que o novo herói de Ari é George Soros, um dos maiores especuladores de todos os tempos. Mas é bom lembrar que Soros não é simplesmente um "porco capitalista". Também é um homem excêntrico, que alimenta associações de esquerda das mais atuantes e a defesa de programas polêmicos, tais como a legalização do aborto. Eu nunca duvidei que pode haver coerência entre subversão e acumulação de capital, não só pelo exemplo do Soros, que realmente incomoda os conservadores, como pelo exemplo de Asger Jorn, um pouco mais caro para mim. Asger Jorn foi um pintor expresssionista do grupo COBRA, que pintou seguindo seu desejo, sem se render aos preceitos sufocantes da arte engajada. Ele pintou telas que eram prazerosas tanto para ele quanto para o público, abusou das brechas do sistema, ganhou dinheiro, deve ter gasto com algumas regalias porque ninguém é de ferro, mas uma generosa parte dessa renda foi para Guy Debord e os situacionistas. Com isso, a atuação dele rendeu muito mais frutos na expansão do senso crítico do que os lamentos exangües da atual arte engajada, que nada tem de livre, nem de prazerosa, nem de contundente. Também por isso não me interessa a anti-arte, já que toda grande obra, mesmo quando formalista e apolítica, contribui para uma mentalidade mais elástica. Um bom artista sabe despertar no espectador a sensação de que a vida pode ser intensa, que pode ir um pouco além do materialismo. Eis porque vejo mais coerência em defender tanto o terrorismo poético quanto a arte erudita, cada uma em seu campo de atuação, do que diluir uma coisa na outra e chegar a uma "arte engajada" que pouco mais consegue do que assumir uma séria crise de identidade.


Obs: uma ou outra pessoa chegou a pensar que eu sou o Ari Almeida ou que ele é uma ficção minha. É melhor esclarecer que não moramos na mesma cidade e tampouco nos conhecemos pessoalmente. Aliás, somente por dedução posso afirmar que ele não é fictício. São poucas as pistas que ele deixou quanto à veracidade de suas ações, mas algumas delas são suficientes para supor que, por mais fantásticas que pareçam, ele pôs em prática as ousadias relatadas em seu livro.

12.03.2007

Para o maior terrorista poético do Brasil

Saiu um artigo meu no jornal de literatura O Casulo, sobre o terrorista poético Ari Almeida.




Ari Almeida, você é mais importante do que imagina. Se você soubesse o quanto as conversas dos artistas plásticos e dos poetas chegam sempre no mesmo impasse... Uma palavra freqüente é “crise”, pois é isso que está tomando conta de todas as expressões artísticas. A coisa é séria, os artistas estão todos perdidos, parecem mais cobras mordendo o próprio rabo. Existe, entre os poetas e artistas de hoje, uma tentativa de fundir arte e vida, de dissolver a arte no cotidiano, de fazer com que o dia-a-dia se torne mais poético. A intenção é empolgante: se o próprio correr dos dias fosse tão rico e intenso quanto um poema épico ou quanto a pintura mais bonita, já não precisaríamos nem de museus nem de coletâneas de autores. Mas a verdade é que essa tentativa fracassou, o artista continua fazendo o papel de uma instituição, de uma autoridade que decide o que é arte e o que não é. Ou seja, se precisamos do “Artista” como uma espécie de juiz, a arte continua separada da vida.
Eis que de repente, Ari, você entra na discussão. Você mesmo, jamais um artista, antes um guerrilheiro da contracultura. Nem sequer assina com o nome verdadeiro (caramba, quem é Ari Almeida?). Não pede licença para invadir a casa dos outros e espalhar suas idéias onde quer que esteja. Entende como ninguém o quanto a verdadeira história é a história do desejo. Percebe que num mundo apático como o nosso, a consciência só é despertada diante de verdadeiros crimes. E portanto oferece o terrorismo poético como alternativa, em lugar da crueldade do terrorismo real. Palavras e imagens não bastam para mudar o mundo, daí nasce teu amor pela ação. Se alguém quiser mesmo fundir vida e arte no mesmo gesto, é preciso deixar de lado toda a história da arte. Você não precisa do status de artista para ser arteiro: de outra maneira, só teria histórias frustradas para nos contar.
E o que não te falta é repertório, como você descreve no Manual Prático de Delinqüência Juvenil. Com os Delinqüentes, você ousou como um verdadeiro Lampião, com a diferença que trocou a carabina pelo estilingue. Se nós, poetas angustiados, declamamos poesia nos saraus, vocês os atiraram para dentro das casas, quebrando as vidraças e a apatia. Os muros também não foram poupados, fazendo as vezes de tela para pinturas e frases que são como disparos. Nem mesmo a sagrada televisão, a maior rival da cultura, ficou ilesa: Delinqüentes não precisam respeitar nem mesmo Rede Globo, invadem a programação e dão sua própria versão (na verdade, a subversão) do Jornal Nacional. Nas mãos de vocês, o que era um cínico out-door se torna uma queima de fogos, o que era enfeite de natal vira protesto contra o consumismo, e um técnico de geladeira merece tanto carinho quanto um grande artista ou um popstar.
Não pude deixar de notar que você tem suas mil contradições, que tento entender como efeito colateral de uma liberdade radical. Como você mesmo disse: “Hoje quem não está confuso ou está mal informado ou está sendo desonesto consigo mesmo”. Devo admitir que não é fácil te defender em público, não se fala de alguém tão polêmico impunemente. Claro que eu vejo uma grande beleza quando você conta que invadia casas para, em vez de roubar, presentear o morador com mensagens disruptivas ou com surpresas maravilhosas. É uma generosidade ampla, com a qual não estamos acostumados. Eu me pego sonhando com o que foi que sentiu a criança que ganhou um coelhinho vivo na páscoa, na calada da noite; ou a velha viúva que se deparou com uma horta inesperada em seu quintal; ou mesmo as madames que podem, talvez, “não terem entendido nada”, mas tiveram uma chance de questionar seu próprio marasmo. Não podemos esquecer, no entanto, que nem tudo que vocês fizeram pode ser imitado. São Paulo é mais perigosa que Curitiba: a polícia é mais intolerante e os traficantes estão por toda parte. Invadir casas por aqui não é recomendável. Além disso, algumas de suas subversões não me parecem boas saídas: uma catapulta de merda contra os carros novinhos da fábrica da Renault pode simbolizar uma vingança contra os ricos, mas quem limpa a sujeira depois é um homem do povo, vítima do sistema.
De qualquer maneira, em um mundo tão caótico como o nosso, acho importante ver o que tem a dizer quem busca converter todo o caos em algo positivo. Comoveu-me muito um comentário em seu blog de um professor, chamado Renato, que levou suas narrativas para a sala de aula e confessou que aprendeu contigo algo sobre união. Pode parecer desnorteador pensar que aprendemos algo tão sublime com alguém tão porra-louca, mas o perigo maior não está no seu livro nem no blog. Está na realidade em decadência, e você mesmo demonstra isso em sua prosa beatnik.
É difícil prever o que acontecerá com cada pessoa que ler o Manual, mas não duvido que ele possa até mesmo salvar vidas. É um livro que dá alternativas aos jovens mais inquietos: aqueles que se sentem sem rumo, que cedo ou tarde acabariam se perdendo, que se marginalizariam sem volta, que se desesperam por não entender porque não se adaptam. Nós precisamos desses inquietos, conscientes e em liberdade. São eles que nos dão a esperança de que algo possa mudar. Não sei se todos te compreenderão, Ari, mesmo porque você é um poço sem fundo de contradições. Ainda assim, não escondo a admiração pelo terrorista que, se nunca invadiu minha casa com seus disparos, invadiu minha mente com os relatos, e com isso mudou minha vida.


Clique aqui para baixar gratuitamente o Manual Prático de Delinquência Juvenil. E aqui para a Parte 2.


http://www.4shared.com/file/8009537/d68d3a41/MANUAL_PR_TICO_revisao_final_.html

11.30.2007

Menino que faz os sonhos

Para quem perdeu minha apresentação de hoje à tarde, vou deixar aqui o conto na íntegra. Ao vivo foi muito melhor, é claro, mas acho que o texto funciona com ou sem uma interpretação em voz alta.

Menino que faz os sonhos

- Ai, que mininu bunitu, coisa fofa da titia!
Rafaelzinho mal sabia que se chamava Rafael. Ainda estava aprendendo a pronunciar os primeiros sons, e como quase sempre chamavam-no de “Mininu”, ainda
estava longe o dia em que diria: “Meu nome é Rafael dos Anjos”.
- Bilubilubilubilubilú! Lindinho!
Na verdade, é Rafael das Dores, mas com um rostinho tão angelical, os cabelos loiros charmosamente encaracolados e a pele tão branca, preferiria um nome que melhor lhe aparentasse, e não o dos parentes.
- Vem agora com a mamãe, meu anjo, vem.
Rafaelzinho ainda não sabia que a mãe era operária de uma fábrica de cotonetes. Não tinha a menor idéia de o que é isso. Não tinha a menor idéia de quanto suor valia cada papinha que devorava. Aliás, não sabia que a mãe soluçava de aflição, e nem que seu nome é Maria, e nem que estava devendo três meses de aluguel.
- Mininu gotôso! Ói que perninha gotósa de apertar!
Tão bonito esse Rafaelzinho que o sucesso com as meninas será fácil. Mesmo as riquinhas mais embonecadas vão cair na sua lábia, nos bailes da cidade. E ele um rapaz meigo. Não muito romântico nem monogâmico, mas conhecedor das delicadezas que as meninas gostam.
- Uma graça, não é? Lindão!
O Mininu tinha um passatempo favorito, que era brincar de carrinho. Acelerava pelos ladrilhos frios da sala, buzinava para os três vira-latas magros, e de quando em quando derrapava em alguma almofada velha, poeirenta, esquecida no chão.
- Cumprimenta com a mão assim. Estica mais, assim. Isso aí, filhão!
O pai procurando emprego há anos, tentando o melhor que pode sem encontrar nada. Rafael vai demorar para aprender a ler, então não sabe o que é jornal e muito menos o que é Classificados. Dizem que seu pai é um desclassificado, mas isso ninguém da família entende muito bem o que significa.
- Você é um príncipe, filhinho. Um principezinho encantado.
E quando levasse para casa as filhas bonitas da gente rica, veria no braço delas os pêlos arrepiados. Não por tesão, mesmo que ele caprichasse nas carícias. Seriam as paredes descascadas, as cortinas desbotadas, o sofá gasto e remendado. Nenhuma delas se sentiria à vontade ali, por mais que confessassem uma quase magia em seu beijo. Ele fingiria não ver problema algum. Elas diriam que ele se parece com um galã de novela e estaria tudo bem.
- Tutitutituti. Tutitutitutitutitu!
Rafaelzinho ainda não sabia o quanto o trabalho esgotava sua mãe. Ela chegava quase desfalecendo de cansaço, era enorme seu esforço para disfarçar. O bebê era a esperança da casa, e todos combinaram que ele seria o primeiro da família a entender perfeitamente o que é essa tal de dignidade.
- Ae, garotão! Mininu esperto, assim que eu gosto!
O pai jamais contaria quanta humilhação já passou com os antigos patrões. Até cuspe na cara ele tomou, quando reclamou de seus direitos. “O que foi, seu Zé Ruela? É baixar a cabeça e fazer o que eu mando. Tá me olhando torto porquê? Tu é feio demais, porra. Mete o rabo debaixo das pernas e pega tuas coisas. Tá despedido.”
O sol está forte. O vento que sopra ao meio-dia é muito bem-vindo, refrescante. Uma sopa de ervilhas está para sair do fogo e o aroma desperta a fome nos moradores.
- Amo demais esse gurizinho. Ele é a nossa maior bênção, não é? Nós somos felizes, não somos?
- Somos, sim.
E Rafaelzinho corre pela sala, descalço, descobrindo brinquedos e inventando pequenos truques. Atrás de uma cortina ou do lado de lá da parede cabe um universo inteiro. Absolutamente tudo o que a brincadeira pode conceber é possível e real. Tesouros indescritíveis, imensos, doidos. Seres fantásticos maiores que uma casa, maiores que o quarteirão. Mesmo assim cabem em sua minúscula mão de mágico, na mão dele, menino que faz os sonhos.

11.12.2007

Re: Pau latino

Caro Ivan,

Guardei aquele guardanapo em meu bolso. Quando cheguei no hotel, tirei
do
bolso e estava escrito uma coisa bizzara, assim: Não escrevo nada, não
sou
porra nenhuma, ó alma. Era só isso, parece uma piada mesmo.
Um abraço,

Antônio.

11.05.2007

Pau latino

Semana passada aconteceu o Festival Tordesilhas, que foi muito bacana. Não anunciei aqui porque existem blogs mais recomendados para quem quiser acompanhar a agenda literária, como o da Ana Rusche e o do Marcelino, bons amigos meus que você encontra na lista de links deste blog.

O evento foi ótimo, conheci um monte de hispânicos e ibéricos, e pude confirmar o quanto me sinto bem entre escritores. De modo geral, são pessoas que abrem nossos horizontes, não só quando escrevem, mas também partilhando um pouco de suas vidas, e até mesmo falando besteiras em um bar (um dos meus esportes favoritos!). O senso comum ainda acha que escritor é sempre sisudo, reservado, e que por ser intelectual não se diverte nem perde a pose. Ah! Pura ingenuidade!
No sábado, eu e o Caetano de Pádua, que tem sido meu parceiro de baladas mais presente, começamos um poema coletivo e o pusemos na roda. O título era esse: "Pau latino", trocadilho muito singelo que surgiu quando eu falei qualquer coisa sobre agir "paulatinamente".
O primeiro verso era "Não vou escrever porra nenhuma", escrito em um guardanapo. Em seguida passei para Mario Bojorquez, do México, que somou um verso e passou pro Victor Sosa, que também contribuiu e até onde sei esse brainstorm chegou até Antonio Moura. Depois disso, não sei o que aconteceu com o poema, talvez tenha se perdido... Especula-se que alguém pegou o "Pau latino" e limpou a boca com ele, transformando o que era um lirismo dos mais sofisticados em pornografia explícita.
Enfim, essa postagem é um apelo: se alguém guardou o guardanapo dessa nossa criação coletiva, por favor, me mande um e-mail com a transcrição! O endereço está no blog, bata olhar para o lado. Morro de curiosidade para saber qual a extensão total do "Pau latino". Espero que leiam esse post com a devida seriedade...

Besteiras a parte, fiquei comovido ao notar o quanto a poesia é capaz de aproximar pessoas das mais diversas origens. E torço para que no ano que vem aconteça uma nova edição.

Hasta luego, amigos! Até logo!

10.22.2007

Contra a mediocridade

Acho que nunca nesse país tivemos tantos elementos que nos ajudassem a formar uma opinião menos simplista em relação a nós mesmos. Seria ótimo que cada um percebesse que vive em um momento delicado de nossa história, e que somente com um pensamento mais complexo dá para ter alguma noção do que se passa. Mas, infelizmente, as opiniões que repercutem são as mais maniqueístas, as mais banais, mesquinhas, limitadas. A realidade está toda escancarada, já não existem mais segredos, e se as pessoas insistem na torpeza é porque fazem questão de não entender.
Poderíamos ao menos sair de uma visão dualística, aprender a contar no mínimo até três ou quatro. Mas acho que eu espero demais dos seres humanos. Parece difícil mesmo sair do número dois, continuamos com histórias velhíssimas que me provocam bocejos só de lembrar. Ninguém quer raciocinar, o que vale são os esqueminhas prontos: o bem contra o mal; os pobres de um lado e os ricos de outro; a esquerda e a direita; os acertos e os erros. Ninguém consegue ver que há gradações, ninguém admite que possa haver contradições ou ambigüidades? Começando pelo governo Lula. Eu não votei nele, mas mesmo que tivesse votado estaria bem decepcionado com muitas de suas atitudes. Não estou falando apenas de mensalão, mas também de uma política econômica conservadora, de alianças com psicopatas como o Bush e Renan Calheiros, e tantas outras decisões de cunho duvidoso. Para ser breve, não é possível dizer que esse é um bom governo. Por outro lado, tem me incomodado muito uma necessidade geral das pessoas de estabelecer juízos totalizantes. Como se fosse impossível a mesma pessoa cometer um acerto ou outro uma vez que tenha errado.
Vamos com calma. O Fome Zero é populista? É. Mas tem um impacto social que não pode ser de todo desprezado. E quanto ao PAC? Ninguém quer ao menos esperar para ver se vai dar certo ou não? Mal começou e vamos todos torcer para o projeto afundar? Desculpem o cinismo, mas por quê? Temos dificuldade de juntar a imagem de um laranja com dólares na cueca com um governo que investe em infra-estrutura - é esse o ponto? Eu estou torcendo para que o PAC seja bem sucedido, não só porque minha vontade de ver melhorias está um pouco acima de paixões partidárias, mas também – aliás, principalmente – porque eu adoraria ver as pessoas tendo que se virar para dar conta de um desafio mental desses. Para quem faz questão de se ater ao maniqueísmo deve ser complicado mesmo. Mas por acaso seria fácil para quem se sente “de esquerda” admitir que um político tão suspeito quanto o Kassab, aqui em São Paulo, foi capaz de uma atitude extremamente humanista? Difícil de engolir, mas foi: a Lei Cidade Limpa, que restringiu o uso de out-doors e fachadas, melhorou toda nossa relação espacial com a cidade. Aliás, Marta Suplicy havia prometido algo semelhante, e, muito pelo contrário, fez do Lago Ibirapuera um enorme golpe publicitário do grupo Pão de Açúcar.
É cada vez mais difícil sustentar que o mundo se divida em esquerda e direita. Ao ver o Cansei, ao ler sobre o assalto de Luciano Huck ou sobre as muitas vítimas de seqüestro do país, cada vez mais me convenço de que aquilo que chamamos de elite não é simplesmente um bando de filhos da puta. São, em grande parte, pessoas sem muita ética e sem consciência social, quanto a isso os exemplos transbordam. Mas é preciso reconhecer que “maldade” não dá conta de qualificar tudo o que se passa em suas cabeças ou o que lhes guia as decisões. É preciso levar em conta que em sua maioria são pessoas tacanhas, que vivem afobadas, de sorrisos artificais, que não têm sequer a liberdade de caminhar na rua tranqüilamente – ou seja, são medíocres, antes até do que sádicos (ou masoquistas). São “de direita” por limitação espiritual, mas não porque isso lhes seja tão proveitoso quanto parece. O problema não é apenas político, também é cultural e psicológico – não quero com isso absolvê-los, apenas ampliar as possibilidades de intervenção. Acusar alguém de "infeliz" pode ser bem mais aviltante do que acusá-lo de cruel (existe um certo orgulho em relação à crueldade, é uma qualidade viril). Os agentes da cultura e os da contracultura poderiam recorrer mais a recursos como esse, que, se não forem o suficiente para retirar algumas consciências do sono, na pior das hipóteses dá um certo ânimo a quem se sente inferiorizado diante dos poderosos mais infames. E não há por que duvidar que um ou outro filho de rico "vire a casaca" e passe a agir com muito mais coerência que nesse Cansei inócuo. Algo que merece ser explorado é o fato de estarmos próximos de uma situação-limite, onde finalmente se pode perceber que sugar os pobres ao máximo não é tão vantajoso - mesmo quem está no topo corre grandes riscos de cair.
Também a esquerda ortodoxa não percebe que a distinção simplista entre dois pólos antagônicos deixa de fora muitos aspectos que deveriam ser considerados. Muita gente, ao notar as falhas desse governo – que nada mais é do que o frustrante retrato da realpolitik – tem retornado à utopia marxista com maior afinco. É inegável que o marxismo seja um ótimo diagnóstico para os principais problemas do capitalismo, ao analisar uma lógica que não podemos deixar de compreender como devastadora em sua essência. Mas a maior lacuna desse aparato teórico é a crença de que os conflitos derivam todos do sistema, quando na verdade respondem, infelizmente, a algo muito mais intrínseco ao ser humano. As pessoas são falíveis, competitivas e corruptíveis; também são facilmente enganadas. O que começa com um Lênin pode muito bem continuar em Stalin, e não há garantia alguma de que um ditador do proletariado nos representaria com maior honestidade que o torneiro mecânico eleito pelo povo. Só seria possível chegar a outro sistema político-econômico mais promissor se um grande contingente de trabalhadores e intelectuais tivesse uma mentalidade bem mais elástica, capaz de analisar o conjunto sem se deixar levar pela superfície. Não sei quantas gerações serão necessárias para tanto, e eis porque considero a “mediocridade” meu maior inimigo, e não um conceito geralmente tão mal utilizado quanto o "capitalismo".
Cálculos finais. Se você só sabe contar até dois, provavelmente verá Lula com fanatismo: ou como um salvador da pátria ou como um pária que assume a cadeira ilegitimamente. Se você conta até três ou quatro percebe que há prós e contras, e talvez até admita que esse governo, por mais decepcionante que seja, ainda é menos pior que os anteriores. Agora, se você consegue chegar a equações complexas, entende que não se poderia esperar muito mais de um governante na atual conjuntura, pois é todo o ambiente ao redor que clama por mediocridade. Enquanto não ampliarmos a consciência em todos seus estratos, não haverá como atingir transformações mais
profundas.


Post Scriptum

Qualquer dia, se meu estômago permitir, quero falar sobre as mediocridades culturais e afetivas que assolam nossa época. Mas antes, prefiro escrever sobre qualquer coisa mais animadora. É maravilhoso dar-se conta de que é aí que entra a arte: uma recusa a se deixar diminuir pelas circunstâncias. Falam tanto em anti-arte, ou então elogiam qualquer obra de arte engajada de quinta categoria... com isso ignoram que se nossa atenção ficar inteira presa à realidade, já estamos derrotados. A poesia é uma potência rebelde, não se encaixa em programas políticos, porque não precisa de sensatez.

9.25.2007

"Santiago" e a impossibilidade de sermos sinceros

O título acima foi o primeiro que me ocorreu. E a frase anterior já foi usada em um conto meu. No entanto, dessa vez não pretendo escrever uma ficção, e sim discorrer sobre um documentário. O problema, porém, começa no próprio “Santiago”, que assume a crise: não está bem certo quanto a ser um registro da realidade ou ficção. O mesmo posso dizer do presente artigo, que fica no meio do caminho entre a análise e a invenção. Por isso o título repleto de aliterações: sinuoso, sibilante. É proposital o efeito, porém se este é sincero ou apelativo, é algo difícil de se responder.
O último filme de João Moreira Salles se insere nas discussões contemporâneas com exímia competência, contudo sem submissão. É filme complexo, que opera em várias camadas, ao mesmo tempo revelador e traiçoeiro. Trata-se de um documentário sobre um documentário. Em 1992, João filmou algumas cenas de Santiago, o mordomo de seu tempo de infância, na mansão de uma das famílias mais influentes do país. Os poucos takes registrados logo foram abandonados, e 13 anos depois, movido por um sentimento nostálgico de retorno ao lar, eis que João recupera esse que foi o único filme inconcluso de sua vida. Reorganiza as sobras, fazendo delas uma reflexão sobre o que constituiria uma obra.



O tema não é apenas a obra de arte enquanto tal. Isso está presente o tempo inteiro, sem dúvida alguma, na medida que o diretor descortina os processos e deixa à mostra todo o artificialismo, todos os truques que empregou junto a Santiago, duplamente empregado, subserviente às muitas manobras de João em busca do máximo efeito estético. Aos 45 anos, João Moreira Salles revê todo esse material com profunda desconfiança, evidenciando o quanto havia de manipulação na feitura do documentário, entre comandos de “repete” e “corta” e mise-em-scènes demasiadamente calculadas para algo que supostamente seria o registro de uma realidade.
O filme ainda vai além dessa constatação, já bastante corrente, de que a mediação corrompe o objeto retratado. Tem a coragem de mostrar que jamais somos sinceros. Não apenas como artistas, ou documentaristas, ou como críticos ou mesmo quando auto-críticos. Tudo isso é exposto sob seu caráter de mera construção. Até mesmo a voz que narra em primeira pessoa, que tantas vezes lamenta o quanto o filme de 1992 violentava a espontaneidade, constitui uma nova farsa: a voz do narrador não é a do diretor, apesar de falar em seu nome, mas a de seu irmão Fernando. Temos aí uma impossibilidade de nos apropriarmos de nós mesmos, de falarmos sem mediações, e menos ainda de alcançarmos uma verdade neutra. Por sua vez o mordomo, Santiago, é alguém que teatraliza sua vida do início ao fim, fazendo da estética uma morada tão reificante quanto a mansão dos Salles. O uniforme fazia dele um obediente mordomo, e a arte, entranhada nele em cada gesto, compreendida com uma reverência austera,
hierática, fazia dele mais um personagem do que uma pessoa.




O personagem Santiago, tão intrigante quanto o de qualquer conto de Borges, dedicou toda uma vida à inventariação de praticamente todas as famílias aristocráticas da humanidade. Seu maior orgulho era a pilha de 30 mil páginas reunindo nomes e referências de mais de seis mil anos de representantes da elite de todo o planeta. Deixava claro que a imaginação o transportava para todos esses salões, onde poder e cultura resplandeciam ainda mais que na mansão onde ele foi um empregado culto, atencioso. Aliás, o próprio João, ao final do filme, admite que não soube se aproximar do objeto de seu filme, de Santiago, e menciona a hierarquia entre patrão e empregado com uma espécie de mea culpa, mas poderíamos acrescentar que o excesso de fantasia também fazia com que Santiago se tornasse difícil de se aproximar. Era um homem inapreensível, porque, de certa maneira, era fictício. Foi um personagem de carne e osso, que passou da vida para a morte, do esquecimento temporário para a eternidade cunhada pela arte, porém sempre distante da realidade.
O que mais me anima no filme, no entanto, é perceber que a auto-crítica pode ser desafiadora, mas não necessariamente erosiva. A pertinência da estética passa por todos os questionamentos cabíveis, e nem por isso é condenada. É inegável que em “Santiago” a obra revela cruamente seus aspectos ilusórios, brechtianamente, e, ainda mais interessante, o próprio artista se desconstrói, mostra um lado seu que nada tem de exemplar – ao confessar as manipulações que efetuou como diretor e o abuso de sua posição hierárquica de antigo patrão, coisas das quais não se orgulha porém não esconde. A arte contemporânea tende a negar a aura do objeto artístico, contudo é muito comum que essa aura se transporte para o próprio artista, transformando-o automaticamente num oásis ético e também numa espécie de Midas (especialmente nas artes plásticas, onde a sentença “Arte é tudo aquilo que o artista chama de arte” se tornou salvo-conduto para pilantragens de toda sorte). No filme de João Moreira Salles, apesar de todas as ressalvas feitas, nada indica que a beleza seja impossível. A própria opção pela voz do irmão como narrador do filme proporciona ambigüidade, mas também responde a um critério estético: o diretor disse em entrevista que achava sua própria voz “feia” e preferia a de Fernando Salles, que de fato é bem mais aveludada, encorpada, desliza melhor e nos faz uma boa companhia ao longo dos 80 minutos. Também é citada uma cena de “A roda da fortuna”, filme de Fred Astaire que era o favorito de Santiago. João comenta o que acha da cena em que o casal principal se concilia através da dança: “Bonita”. E é o que lhe basta, não é o fato de algo ser belo que o torna pernicioso. Mesmo porque não é a beleza que nos impede de chegarmos à verdade, ao contrário do que alguns pensam. Não chegaremos jamais. É admirável a dialética do filme: desmantela-se e se reconstrói, é auto-crítico sem contudo anular o que está sendo criticado.



Um adendo que talvez seja pertinente: nós podemos desconstruir completamente a vida, considerar o quanto estamos presos a inúmeras contingências, e apesar disso continuar afirmando-a. Se alguma liberdade é possível, só pode começar justamente aí, numa consciência que não precisa de atestado de óbito para se vivissecar. O filme de João se situa na fronteira entre arte e vida, mas não me parece negar nem uma nem outra: há um intenso diálogo entre as duas instâncias. Mesmo assim persiste uma margem, são dois países que se distinguem pelo emprego de suas leis. O documentário de 1992 era imperfeito porque espetacularizava a vida, que deveria valer por si mesma, espontânea. Já a cena de Fred Astaire vale pela beleza porque é ilusão consentida, é truque porém jamais se propôs a não sê-lo.
Quanto a este artigo, que não pretende rivalizar com o filme, muito mais complexo, fiz o que pude para torná-lo agradável. Gastei algumas horas escolhendo as palavras, pensando em sua sonoridade e nas associações que elas despertam, a fim de construir um conjunto harmonioso. Não me ocupei apenas do conteúdo, busquei também os meus efeitos. Não chego a dizer que realizei aqui uma obra de arte, contudo provavelmente contei alguma mentira, mesmo que não tenha percebido, o que de certa forma aproximaria esse texto ao de uma ficção. Aliás, devo confessar que não estou muito certo de que o título acima foi o primeiro que me ocorreu. Sinceramente creio que sim, mas minha memória é um tanto enevoada, difusa, nunca registra muito bem a realidade...

9.11.2007

Bush e Bin


Mais um 11 de setembro, procurem não ficar com medo.
Bush de um lado, terroristas do outro, e no fundo eu só queria morar num mundo em que o mais importante fosse a imaginação. Infelizmente não é. A guerra física não é a mais interessante nem a mais gloriosa, mas como convencer a quem só tem talento para oprimir? E como ignorar tudo isso, se a cada tiro que ressoa os poemas mais belos parecem um tanto mais frágeis, insuficientes?
Não há moral na história, nunca houve, não esperem que comece a haver agora. O chato é que ninguém aprende nada. Em Nova York vão erguer um prédio ainda maior do que o das torres destruídas, apenas para que o ódio estimulado ganhe alguns andares. Da parte de Bin Laden, temos a "singela" declaração de que os Estados Unidos podem se ver livres do terrorismo caso se convertam ao islamismo. É verdade que os fanatismos se parecem muito entre si, mas não vejo as pessoas trocarem um pelo outro com tanta facilidade.
Ainda assim, dos dois, acho Bin Laden o mais inteligente. O que não é difícil, dado que esta humilhação a gente tem que engolir: o homem mais poderoso do mundo no momento, aquele que chefia a White House, tem o Q.I. do Forrest Gump. A competição ficou mesmo fácil para o árabe, mas acho que qualquer um que tenha assistido "Na trilha de Bin Laden", documentário transmitido essa semana na GNT, percebeu que aquele sujeito esquisito não entrou para a história à toa. Há décadas ele vem elaborando estratégias, discursos e alianças com uma habilidade surpreendente.
Não acredito muito na versão Michael Moore de que o árabe e o americano são parceiros de crime, de que tudo é um grande show, de que eles fazem a festa juntos para depois dividir os lucros. Acho que até poderia ser uma hipótese coerente - ou seja, Bush e sua equipe se importam tão pouco com o próprio país que são capazes de tudo, mesmo atrocidades inolvidáveis, já que gerar pânico é maneira garantida de movimentar deliciosos dólares bélicos. Seria no mínimo plausível, caso o Pentágono não tivesse sido atingido. Teorias conspiratórias fazem sucesso, e Bush, psicopata como é, até poderia achar divertido derrubar dois grandes prédios antes de construir um maior, mas não faz sentido algum incluir a sede da inteligência militar. Por mais que ele ligue muito pouco para a inteligência de modo geral, não o imagino dando um tiro no próprio pé.
Aliás, precisamos mesmo de teorias conspiratórias desse nível? Não vejo necessidade alguma de exageros para se constatar a amplitude da ardileza. Alguns atos terroristas são menos lucrativos do que outros e eventualmente abalam o mercado, mas nem por isso deixamos de notar que a globalização projeta sombra por toda parte. O objetivo principal tem sido alcançado em escala planetária, tanto no ocidente como no oriente, e tanto na jihad quanto no american way of life: implantou-se a idéia de que a vida não é moeda de grande valor. Alguns vivem tão-somente em favor do dinheiro, outros morrem contra os valores de uns. E os sobreviventes que se sintam bem-aventurados, já que essa lógica não tem prazo determinado para expirar.

8.25.2007

Correspondência

Para compensar um pouco minha rabugentice - a teimosia em não abrir pra comments - vou postar aqui um dos e-mails mais bacanas que já recebi de um leitor:

Li tuas divagações sobre arte e vida e gostei muito. escreve bem, muito bem. dá gosto te ler. no dia seguinte do lançamento comprei teu livro. li. devorei tuas palavras, teus sentimentos escancarados. li sem descanso, sem compromisso, sem limite. até o fim. me apaixonei por tua paixão, tua chama, tua solidão, tua descrença, tua crença ferrenha, tua revolta e tua multidão de sentires. teu livro é um grito de vida prenhe, um sol, "imensa gravidez celeste". e, como você teceu no teu livro; ao longo dos séculos, somos assim, humanos, demasiadamente humanos. mas será que você é como helmut, meio anjo de win wenders? meio anjo meio demônio, daqueles seres que mergulham nas profundezas da alma humana? tua "subjetividade é subjetiva demais"? ivan, parabéns. teu livro provoca sensações/reflexões. é palpável teu desejo, teu tesão, vida, morte, sofrimento, solidão e esperança. parece um gozo que leva ao saber-tudo, e conclui a beleza do não-saber. belo grande livro.

Ana Paula Gomes

8.11.2007

FAQ HEGENBERG

Perguntas mais freqüentes que me fazem a respeito dos livros, do blog, da carreira e outras curiosidades, respondidas aqui para saciar o voyeurismo do leitor.


- Ivan, por que você leva tanto tempo pra atualizar teu blog?

Adoro ouvir essa pergunta, sinal de que querem ler mais!

Mesmo que eu quisesse, não saberia manter um blog do tipo agenda cultural, não tenho competência pra isso. Por outro lado, acho que meus textos mais antigos se mantêm atuais, alguns já são quase lendários, e tem gente que vai lá atrás ver o que eu escrevi. Acho isso mais bacana do que escrever qualquer coisa apressadamente. Também acho que se eu jogasse muitos textos curtos, os antigos cairiam no limbo.

- Diz aí, como é que você pode parecer tão normal por fora e ser tão louco por dentro?

Um bom jeito de explicar é dizendo que eu sou filho de psicanalistas. Os psicanalistas também parecem equilibrados, mas por dentro estão no mais completo caos. Meus pais me enlouqueceram muito, em compensação me ensinaram a racionalizar minha própria loucura, e deu nisso que vocês estão vendo.

- Você é meio deprimido, cara?

Dos meus 19 aos 25 anos essa pergunta era bem freqüente. De uns anos pra cá nunca mais me falaram isso, talvez eu tenha conseguido superar alguma coisa. O que está me salvando é uma fé cada vez maior no meu trabalho, é perceber que posso despertar idéias e sentimentos fortes nas pessoas. Isso é muito recompensador, é o que me dá sentido na vida. Feitas todas as contas, meus piores conflitos foram proveitosos, me ensinaram muito no processo e serviram como alimentos poéticos. Em meus livros procuro transmitir a mesma vontade de superação que me impediu de cair, tento fazer com que o leitor chegue ao final do livro com uma coragem para a vida maior do que quando começou.

-Você é comunista? Você é reacionário? Você é anarquista? Ou você é só um porra-louca que não quer nada com nada?

Já fui julgado de tudo quanto é jeito possível, de reacionário a vanguardista. Não me apego a nenhuma ideologia, mas tem que ser muito alienado para gostar do mundo como está hoje. Se eu defendo alguma coisa é a liberdade, apesar de esse ser um conceito mais intrincado do que se pensa. Tentei colocar essa questão numa peça de teatro, “Problema capital”, que com sorte vai ser encenada e vai gerar uma discussão bem mais ampla do que posso fazer aqui.

- Você acredita em Deus? O que você quis dizer com aquele esquisitíssimo Supremo Esteta que aparece no “Será”?

Essa é uma pergunta que eu mesmo me faço o tempo todo, e na verdade não sei. Eu cresci ateu, e por muito tempo me dei bem com meu ateísmo, até gostava dele. Depois vieram esquisitices, e vivi algumas "sincronicidades” tão pontuais que acabei relativizando um pouco. Acho que nunca vou acreditar em um deus barbudo comandando as coisas lá de cima, mas não descarto a existência de alguma conexão íntima, algum fluxo entre as partes que vá muito além das leis de Newton.

Sobre o Supremo Esteta, tem a ver com uma frase do Nietzsche: Eu só acreditaria em um deus que soubesse dançar. No meu romance, o Esteticismo-maior é a religião dominante, cuja tese é a de que deus criou o universo somente para desfrutá-lo, tal como a uma obra de arte. Mas nem todos os personagens adotam essa religião, defendem que a fé não deveria ser institucionalizada, nem sequer nessa que seria a mais poética das religiões. Ou melhor, exatamente por ser poética, deveria prescindir de sacerdotes.

7.28.2007

Fama e publicidade

Saiu recentemente na Folha de São Paulo, (24/07), uma reportagem que abordou a última polêmica em torno de nosso ministro (e tropicalista) Gilberto Gil. Não vem ao caso, no momento, avaliar seu governo, mesmo que o MinC esteja atualmente passando por uma greve complicada, mesmo notando que o órgão libera milhões de reais para espetáculos cuja bilheteria já estaria garantida a preços impopulares. Deixemos isso de lado por um instante - nem todos os problemas de um ministério podem ser atribuídos a uma única pessoa, não precisamos alimentar essa tradição nacional que adora personificar algo tão capilar como o poder. A questão é outra, mas não me soa menos lamentável, apesar de bem mais sutil. Algo que é de responsabilidade completa dele, Gilberto, enquanto político mas também como músico e como cidadão e que requer uma análise.
O fato concreto se refere a uma canção dele, “Na internet”, que foi cedida ao Itaú Bankline para um comercial de tevê. A letra original retrata com otimismo essa mídia relativamente nova, a internet, por sua capacidade de aproximar distâncias, por nos conectar com múltiplas situações diferentes, inclusive as mais inusitadas. Versos como Eu quero entrar na rede pra contactar/ Os lares do Nepal, os bares do Gabão reflete os aspectos mais positivos dessa revolução nas comunicações. No entanto, o ministro-e-poeta, duplamente um dos principais nomes da nossa cultura, vendeu uma ótima música para uma utilização bem mais vulgar do que a de sua proposta original. Ao associar sua canção ao Bankline, divulgou o que a internet oferece de mais lugar-comum: serviços, circulação de dinheiro. O problema não é apenas o fato de ele ser ministro, e com isso comprometer a imagem de um órgão que não deveria, a princípio, demonstrar preferências a determinado grupo privado. Preocupa-me igualmente o fato de ele ser um excelente músico, e nem por isso se importar com um utilitarismo tão mesquinho para uma criação sua, algo que merecia ser apreciado sem esse ruído, sem essa captura. Se nem o político, nem o músico, menos ainda o cidadão percebe essa concessão como problemática, estamos diante de uma completa erosão de valores.
A publicidade não é, no Brasil, encarada com a devida seriedade. Boa parte de nossos artistas supostamente mais críticos já alugaram sua própria imagem em troca de um cachê vultuoso: podemos incluir aí José Celso, Arnaldo Antunes, João Gordo, entre tantos outros. Não acredito que seja, necessariamente, “coisa de marxista” considerar a publicidade um dos pontos mais problemáticos de nosso tempo. No mínimo, deveríamos ver a publicidade como uma grande rival e até mesmo uma antagonista da arte, por atribuir à estética uma função utilitária, interesseira. A grande arte deve aspirar à superação do mero materialismo, e não fomentá-lo. Posto que estamos vivendo no capitalismo, seria ingênuo ignorar que toda obra de arte termina se convertendo em mercadoria, e é justo que um artista possa viver de seu trabalho... contudo, a arte só possibilitará alternativas diante do onipresente e medíocre Mesmo se os criadores forem mais generosos com suas criações. Deveria ser natural para qualquer amante da arte repudiar a mercantilização barata das emoções que a publicidade promove, o emprego desonesto da estética, esvaziada de qualquer sinceridade, e a submissão da imaginação a uma lógica tão pouco promissora em termos de espiritualidade.
É difícil, quase impossível, imaginar qualquer perspectiva de um mundo melhor se não contarmos com o investimento em uma sensibilidade e uma consciência mais desapegadas quanto aos interesses imediatistas. Se até mesmo formadores de opinião considerados libertários demonstram que o dinheiro vem antes que qualquer outro valor, como é que as demais pessoas poderão seguir desejos mais satisfatórios do que o consumismo mais banal? Não me esquecerei tão fácil, por exemplo, que Gilberto Gil, ao ser convidado por Lula para assumir a pasta, hesitou por alguns dias, alegando que “não poderia passar quatro anos recebendo apenas oito mil reais por mês”. Se ele dissesse que não poderia ficar tanto tempo longe dos palcos ou dos estúdios soaria mais palatável, no entanto, do modo que se colocou ficou bem claro quais são suas prioridades. Ficam bem visíveis alguns aspectos deploráveis de Gilberto Gil - um, entre tantos artistas, que poderíamos admirar muito mais se ele próprio entendesse a real importância daquilo com que trabalha.

7.02.2007

Como encontrar os livros?

"A Lâmina que Fere Chronos" e "Puro Enquanto" podem ser encomendados em qualquer livraria, mas se acharem que o prazo de entrega é muito grande, o site da Lojas Americanas está prometendo em menos tempo e ainda oferece desconto.


O "Rock Book" já está com um prazo de entrega curto nas livrarias, mas o preço pode variar. Quem estiver meio sem dinheiro pode achar uma boa checar no Buscapé.

Quanto ao "Será", saiu pelo Ragnarok, selo independente criado por mim e Nelson de Oliveira, então o mais fácil é pedir para mim mesmo, pelo correio, com a vantagem de que o exemplar já vem autografado. Peço para escreverem para ivan_hegen@yahoo.com.br confirmando o depósito e passando o endereço, que eu faço o possível para entregar rápido.

R$ 20,00
Santander
Ivan Alexander Hegenberg
Ag 0220 C/C 010107627-4
CPF 222.940.438-55


Itaú
Ag. 2926
C/C 19843-9
CPF 222.940.438-55

Se gostarem, recomendem para os amigos. Se não gostarem, para os inimigos

6.12.2007

Divagações sobre arte e vida a partir da ocupação da USP

Transferido para Diagnósticos diferenciais para uma arte em crise

Se é exatamente na fronteira do não-eu que se percebe o eu, por que não seria na fronteira da não-vida a descoberta da vida?

5.23.2007

Orelha do livro "Será"

O progresso científico é como um machado nas mãos de um psicopata. Palavras de Einstein.
O primeiro romance de Ivan Hegenberg nos apresenta nada mais nada menos do que o futuro desse progresso. Qual seria ele? O mais assombrado e o mais assombroso possível, coordenado por máquinas inteligentes, suportado por homens e mulheres violentos e inseguros, às vezes esperançosos e confiantes, quase sempre desesperados ou deprimidos. O único futuro possível para o presente no qual vivemos: a continuação caótica do não menos caótico momento atual.
Dezenas de personagens, posicionadas pelo autor em pontos estratégicos, vão revelando pouco a pouco a estranha estrutura social e emocional dessa civilização alucinada, dessa sociedade em certos momentos muito mais angustiante do que as mais célebres distopias da ficção científica: a de George Orwell, em 1984, a de Aldous Huxley, no Admirável mundo novo, e a de Ray Bradbury, em Fahrenheit 451. Mesmo pertencendo a outra linhagem literária, A metamorfose e O castelo, de Franz Kafka, também lançam sua sombra sobre esse futuro.
Todos os fatos aqui revelados se passam no século XXIII. O oxigênio agora é retirado dos oceanos, a realidade virtual aboliu a distância espacial e a temporal (as pessoas podem viajar artificialmente para qualquer lugar e para qualquer época), a propriedade privada também foi abolida, a escassez de água e a superpopulação são as piores ameaças ao equilíbrio do planeta, as pessoas de carne e osso convivem (nem sempre tranqüilamente) com as pessoas virtuais, nos laboratórios os limites do macrocosmo e os do microcosmo são rompidos, as culpas e as neuroses podem ser extirpadas cirurgicamente da mente humana e agora a telepatia é a forma de comunicação mais sutil (até os sentimentos podem ser compartilhados).
A nossa espécie vive o apogeu da tecnologia e do cientificismo. Mas, ironia das ironias, essa situação é o reflexo da forte crise moral e existencial que devagar vai corrompendo as instituições e os indivíduos. Nesse sentido, apesar das possibilidades inimagináveis (a telepatia, a viagem ao centro da célula, a materialidade virtual), a sociedade futura continua estacionada espiritualmente no início do século XX. O fracasso das utopias, a fragmentação da consciência, a indústria cultural, a ideologia de direita e a de esquerda: nada mudou. Diante dos mesmos conflitos vividos por nossos antepassados, conflitos que levaram à Primeira e à Segunda Guerra Mundial, à Guerra do Vietnã e à do Iraque, fica bem claro que o progresso industrial e tecnológico não foi acompanhado pelo fortalecimento da subjetividade humana nem pelo enfraquecimento dos impulsos mais primitivos. Continuamos primatas egoístas e insaciáveis, dominados pelas paixões.
O sexo sádico e autodestrutivo, o fanatismo religioso e o instinto de agressão e dominação continuam testando os limites do amor e da sanidade. A última esperança para esse futuro sombrio e irracional é provavelmente o que a espécie humana vem buscando desde o início dos tempos: o verdadeiro contato com o sagrado. A procura desse contato último irá reunir e separar muitas das dezenas de personagens do romance. Elas precisam provar do sentimento do sagrado. Mesmo que esse sentimento esteja muitas vezes oculto numa cápsula de veneno.


Nelson de Oliveira

5.11.2007

Bicho papão

Para que serve o papa?
Papa é para o povo?
Para o povo pobre?
Sei que o papa é pop
O papa é pop

Mas não é um porre?
Que papo é esse
De que não pode porra?
De que não pode o pau?
De que não pode pôr?

Papa é poderoso
Tudo o que ele prega
é medo do escuro
É pavor do impuro
É bicho-papão

4.21.2007

Uma cultura do crime?

Terceira semana de abril de 2007. Segunda-feira, o estudante sul-coreano mata 32 pessoas na Virginia. Na terça, guerra de tráfico no Rio de Janeiro com tiroteio a céu aberto. Quarta, um dos piores atentados no Iraque, matando centenas de pessoas. Sexta, um engenheiro invade a NASA, mata um refém e se suicida.
Será que é apenas coincidência? Tantas cenas dramáticas ocorridas em tão pouco tempo? Minha hipótese é de que, de alguma maneira, um acontecimento "estimulou" o outro. Não sou assassino para saber, meus maiores crimes são cometidos por personagens... mas desconfio que o primeiro a derramar sangue despertou alguma coisa nos outros. Um apelo instintivo que disparou o que há de mais primitivo na mente humana - porém, creio eu, sem deixar de se articular com o que chamamos de linguagem.
A partir da quarta-feira, diante do famoso pacote de vídeos e fotos de Cho Seung-hui, ficamos a par do quanto o atirador de Virginia entendeu seu crime como uma forma de comunicação. É preciso levar isso em conta: neste mundo em que a moeda corrente é a informação, passa a existir uma sub-cultura do assassinato. A maioria de nós só pode constatar isto de maneira vaga e indireta - é bem pouco provável que eu mate alguém, ou que os amigos com que me relaciono o façam - mas entre diferentes criminosos parece haver alguma sintonia, o compartilhamento de uma sensibilidade extremada.
Assistindo aos vídeos que Cho Seung-hui enviou à NBC, é evidente, por exemplo, o quanto ele se identificava com os dois atiradores de Columbine, Eric Harris e Dylan Klebold, que na mesma época do ano (20 de abril de 1999) mataram 12 pessoas em seu colégio. Aliás, 20 de abril é o aniversário de nascimento de Adolf Hitler, que teria feito 110 anos na ocasião, e aparentemente eles estavam "comemorando". Quando falamos em Hitler, imediatamente uma idéia de encarnação do mal nos vem à mente, e é quase como se falássemos de alguém que sequer foi um ser humano, estando mais próximo do filho de um demônio ou algo assim. Esse orgulho não nos ajuda em nada, é preciso admitir que pertencemos à mesma espécie animal que Adolf, Harris, Cho, todos os traficantes do Rio de Janeiro, todos os terroristas do Iraque, e por aí vai. Podemos considerá-los desequilibrados - e geralmente são - mas no fundo temos algo em comum com todos eles, gostemos ou não.
No caso dos massacres suicidas, não podemos nem ao menos dizer que se trata de uma disputa de poder. O principal intuito desses criminosos é se comunicar. Cho realizou um crime-desabafo, em parte por sentir que o ambiente onde vivia não o integrava. Em um mundo onde ninguém vale pelo que é, apenas pelo que produz e acumula, o cálculo foi esse: "Quanto mais mortes eu causar, mais vão me respeitar". A humanidade estaria perdida se todos seguissem este exemplo, mas convém ouvir o que se oculta por trás da mensagem. Não aquilo que ele diz nos vídeos, no entanto o que faz com que surja uma expressão tão radical como a de seu gesto.
Nem tudo tem solução, sociedade alguma conseguiria curar todos os males, evitar todos os crimes, sanar todas as aflições. Mas uma coisa deveria ser bastante óbvia: quanto mais a linguagem oficial for excludente, mais frequente, por parte dos ressentidos, será o uso da violência para se expressar. Não é apenas com os assassinos que há algo de errado. Era de bom-tom que chefes de Estado de diversos países declarassem suas condolências aos 32 norte-americanos mortos; na mesma semana, contudo, centenas de iraquianos foram dizimados e os cariocas viveram momentos de guerra civil. Em todo o planeta, aparentemente, ninguém demonstrou muita preocupação. Afinal, se o conflito é entre pobres-coitados, não há grandes motivos para se preocupar. Nas entrelinhas, parece ser este o discurso oficial.

4.16.2007

Alguns contemporâneos

Atendendo a pedidos, retomei o que eu tava discutindo em "Arte em crise", mas dessa vez citando alguns nomes.
Saiu também no Cronópios.




Em plena Avenida Paulista, a mostra “Itaú Contemporâneo” é uma boa oportunidade para se entender melhor que tipo de arte está se produzindo hoje. Também é um excelente ponto de partida para discutir algumas das questões mais intrincadas da arte contemporânea. A exposição abriu com polêmica ao colocar dezenas de pinturas na horizontal, próximas ao chão, coisa que revoltou os pintores. O correto teria sido consultá-los antes de adotar a disposição, mas é interessante o quanto a mostra consegue, seja por suas virtudes ou por seus defeitos, provocar questionamentos de todo tipo. Começando pelo nome. Entristece um pouco ver uma exposição desse porte batizada com o nome de um banco, como se o que conferisse forma e sentido ao conjunto fosse esse dado, o de a coleção pertencer ao Itaú. Levanto esse ponto porque se discute muito que a verdadeira arte deveria ser refratária às instituições, e antes mesmo de colocar os pés na entrada podemos refletir no quanto um evento dessa amplitude não seria possível sem um grande investidor, mas também o quanto isso é problemático. A arte contemporânea usualmente se opõe ao mercantilismo, porém jamais escapou ao paradoxo de depender financeiramente daqueles que combate. A meu ver esse é um dilema sério, mas, vivendo no capitalismo, não existe solução eficiente para isso. A única resposta que o artista pode dar é a criação de algo que seja mais forte do que o materialismo, que consiga ultrapassar o mercado. Há mais coisas na vida do que uma conta gorda no banco, seja Itaú ou qualquer outro, e todo grande artista consegue fazer com que nos lembremos disso, ao menos por alguns instantes. Não estou falando de trabalhos como os de Hans Haacke ou Broodthaers, que consistiam em panfletários ataques ao mercado – e desse modo apenas reforçavam a presença das instituições. Não precisa ser psicanalista para perceber que no fundo artistas como eles ostentam um fascínio reprimido pelo poder. Muito mais contundente é a arte que nos leva a considerar como há coisas mais estimulantes do que o simples acúmulo de capital. Sandra Cinto, presente na exposição da Av. Paulista, é um bom exemplo disso. Seus trabalhos de traços delicados nos colocam em contato com um universo que se estende ao cosmos, para muito além de nós-mesmos, ao mesmo tempo que nos aprofundam em um estranho abismo íntimo.
Na verdade, a exposição em cartaz não é tão tipicamente contemporânea quanto se denomina. Quase não há vídeo ou alta tecnologia, a arte conceitual está representada mas não dá o tom, sendo que o que vemos em maior quantidade são pinturas. Isso acontece porque a curadoria não teve nenhum critério mais rigoroso além da apresentação do acervo do banco. Apesar de tudo, Teixeira Coelho, o curador, conseguiu arranjar o espaço expositivo de modo a suscitar questões bem contemporâneas, o que faz com que a visita seja especialmente reveladora para quem não costuma acompanhar vernisages de perto. Até mesmo o fato que ganhou maior repercussão, as pinturas deitadas próximas ao chão, pode nos levar a reconsiderar alguns tabus. Desde os anos 60, a pintura vem sendo atacada por ser considerada “convencional” demais, esgotada, e por promover a arte como ilusão. Em contrapartida, a produção de arte mais tipicamente contemporânea se agarra ao real, ao concreto, buscando se inserir na própria tessitura da realidade. Quando isso é bem sucedido, obras maravilhosas podem acontecer. No andar de baixo, por exemplo, encontra-se um corrimão de aço concebido por Ana Tavares, que, no entanto, não é um corrimão qualquer. Tortuoso, provoca vertigem a quem o atravessa, obrigando a redimensionar o corpo em relação ao espaço. Contudo, uma obra como essa é capaz de conviver muito bem com as de Beatriz Milhazes, uma pintora que igualmente nos desnorteia, dessa vez com telas vibrantes, quase hipnóticas. O fato de uma trabalhar com a representação e a outra com a realidade externa não as diferencia tanto quanto se supõe – por mais que até hoje exista um ranço da “Morte à pintura” decretada décadas atrás. Ao ver pinturas no chão, como as de Eduardo Sued ou Ianelli, podemos perceber com maior clareza o quanto uma pintura, ainda que seja ilusionística e nos leve para uma dimensão inexistente, afeta o espaço ao redor, provoca uma nova percepção, inclusive corporal, diante do mundo palpável. Além, é claro, de nos convidar para um lugar impossível que só existe em nossas mentes. Mas creio que um corrimão absurdo também nos conecta com o mundo da imaginação, já que foge ao esperado.
Duas coisas bem diferentes são a exposição e seus textos. Há um libreto branco distribuído gratuitamente na entrada, e alguns de seus trechos estão reproduzidos nas paredes. Creio que a melhor maneira de se aproveitar a visita seja primeiro observar cada uma das obras com o maior desprendimento possível. Não são muitas as obras ali que dependem de um aprendizado teórico prévio, podendo ser desfrutadas por qualquer um que desbrave com juízo próprio. Em seguida, é interessante ler o texto de Teixeira Coelho, que na verdade busca uma síntese daquilo que críticos e artistas vêm discutindo nas últimas décadas. O texto é bem escrito, franco, e dono de uma rara generosidade para com quem não tem intimidade com esses debates. Apesar de um ou outro escorregão, é uma exposição teórica bastante bonita, assim como a exposição das obras. De modo geral, ele separa a arte contemporânea em duas correntes: a “Persistência da beleza” e “Na linha da idéia” – primazia da estética versus arte conceitual. No entanto, existe um hiato entre essas palavras e os objetos em destaque. O curador reuniu uma amostra interessante de obras de arte, e reuniu também um apanhado de proposições intelectuais desafiadoras. Mas, até mesmo por não ser uma exposição tipicamente contemporânea, arte e teoria não estão perfeitamente justapostas. Coisa que é louvável, pois vinha se tornando cada vez mais forte a tendência de reduzir o artista a um demagogo ilustrador de conceitos, tal como se viu em abundância na última Bienal de São Paulo.
Um dos filósofos mais inquietantes do século XX, Deleuze, em “O que é a filosofia?” separa abruptamente as funções da arte e as da filosofia. Ele sequer perde tempo argumentando porque opta por essa cisão, apesar de ter vivido uma época em que a arte conceitual atingia enorme prestígio. Deleuze, junto com Guatarri, não hesita ao dizer que a filosofia se constrói por conceitos, enquanto a arte se constrói por “afectos” e “perceptos”. “A obra de arte é um ser de sensação e nada mais: ela existe em si.” [1] Eu mesmo não seria tão radical, pois com todas as minhas ressalvas reconheço algumas (poucas) obras de arte conceitual que se sustentam em pé. No entanto é curioso notar que um filósofo como ele, alguém que buscava constantemente a quebra de fronteiras, atribuiu tão pouco interesse à arte conceitual que sequer a levou em consideração. Com a exceção de alguns pouquíssimos casos – como Duchamp, Tinguely, Marina Abramovich, de vez em quando Joseph Kosuth – eu também não vejo em que medida a arte conceitual acrescentaria algo a qualquer ser humano capaz de ver beleza na filosofia por ela mesma. O pensamento que vai até seu limite é, e sempre foi, comovente. E a sensação pura, com toda sua contundência, é, e sempre será, estimulante. No entanto, a comunicação verbal e a comunicação não-verbal são devires diferentes, cada uma necessária à sua maneira e a seu tempo.
É muito comum, nas grandes exposições de arte contemporânea, que a própria curadoria tenha algo de opressora, um conjunto de regras pré-estabelecidas – oprime o visitante leigo porque este desconhece o jogo, e oprime quem está familiarizado, porque lhe impõe um excesso de preceitos. Porém na atual mostra - em cartaz até 27 de maio - é tão eclético o conjunto exposto que torna a visita a ocasião ideal para se formar juízos pessoais. Vale conferir a pintura de Iberê Camargo, mesmo que não seja de suas melhores; Siron Franco e seu mórbido balanço de playground; Eder Santos com sua fantástica projeção animada sobre uma cristaleira. Raquel Kogan e seus códigos numéricos que escorrem no escuro, partindo do conceitualismo em direção ao mistério. A fotografia de João Musa flertando com a pintura, ao captar o mar tal como uma pincelada. Evandro Carlos Jardim em uma ótima gravura, para que ninguém duvide que ele é um dos melhores em sua atividade. Além disso, o espectador terá para si a tarefa de decidir se a ironia pop de Nelson Leirner é um convite ao riso ou se é apenas ele quem ri por último. Terá de pensar se Antonio Henrique Amaral, com suas melancias e bananas modernistas, diz ou não alguma coisa para nós no século XXI. Verá também as esculturas de Nuno Ramos, e sem precisar chamá-las de não-objetos saberá sentir se lhes tocam. Diante de Brígida Baltar em sua “Coleta de neblina”, poderá perguntar se a obra vale para o visitante ou se existiu apenas para a artista. E até mesmo as pedras de Cildo Meireles, bem parafusadas no solo, poderão servir de interrogação a todo tipo de tropeço. Em nossos tempos, a última palavra para decidir o que é e o que não é arte deve caber a cada espectador, e a ninguém mais.

4.01.2007

Poema de primeiro de abril

Eu te contei uma mentira
Talvez duas ou três
De uma vez só e sem dó

Em minha defesa eu digo
Que não te ludibrio
Minto com fé e verdade
- malícia sem maldade -
Com base em fatos
sub-reais

2.26.2007

O carnaval-arte de Paulo Barros


Oba! Essa saiu no Cronópios:

Não se pode colocar todo o peso da palavra “alienação” no futebol ou no carnaval. Gostar de folia ou de esporte não implica necessariamente em ignorância quanto a outros assuntos mais sérios. Aliás, de que vale uma filosofia que não preze a alegria ou que ignore o corpo? Algumas das pessoas mais inteligentes que conheço amam estas duas festas tipicamente brasileiras - a que se celebra com a bola nos pés e a que se celebra com pandeiros e fantasias. Todos os povos têm seus rituais, e os nossos são marcados pelo improviso, pela malícia, pela ginga. Tradições nacionais costumam ser rígidas e repetitivas, as nossas ao menos se apresentam com alguma criatividade. É claro que as válvulas de escape se tornam bastante limitadoras quando hipertrofiadas, quando excluem os demais aspectos da vida. Mas há uma outra questão que eu pretendo enfocar até o final do artigo.




Eu pessoalmente aprecio mais o futebol do que o carnaval. Deleito-me com a inteligência e a plasticidade de uma bela jogada, ao passo que me sinto um pouco gringo no carnaval, principalmente por não entender nada de samba. No entanto, contrariando minhas próprias expectativas, fui fisgado este ano pelas imagens do sambódromo, quando me deparei com a Unidos do Viradouro. Raramente perco mais do que dois minutos assistindo aos desfiles, mas por sorte calhou de a Viradouro atravessar a Marques de Sapucaí no momento em que parei para olhar. E foi uma sorte mesmo, eu tenho que admitir que esse tal de Paulo Barros, o carnavalesco por trás da escola, me deixou fascinado. Ele inovou com muito bom gosto, nos presenteando com um resultado tão sofisticado que não há porque hesitar em chamá-lo de um verdadeiro artista.





Pesquisando um pouco, notei que nos anos anteriores ele já trazia elementos novos à passarela. Em 2004, apresentou um carro repleto de pessoas pintadas de azul, que, cintilando em coluna ascendente, representavam a cadeia de DNA. Em 2005, Dom Quixote foi o fio condutor para o mundo da imaginação. Em 2006, Mozart visitou o Brasil, entrou em uma roda de samba e regeu a imensa “ópera de rua”. Um dos carros alegóricos era um gramofone gigante que se convertia em orquestra, onde em sincronia perfeita as pessoas tocavam música ou trocavam o disco.





Neste ano o mote foi o Jogo, abordado desde os cassinos até o pinball, passando pelos esportes e por “Onde está o Wally”. As soluções visuais surpreenderam, indo muito além da ostentação kitsch que se costumava ver nos desfiles tradicionais. Um dos carros que mais me causou impacto foi a alegoria dos Jogos Olímpicos. Mulheres moviam os braços em nado sincronizado, tendo uma lona azul imitando a altura da água na cintura. Subitamente, a lona é retirada, e o que era piscina se transforma em quadra de basquete, com jogadores quicando a bola ferozmente. O que era harmonia feminina e leveza se converteu em confronto direto e combativo - dois aspectos do lúdico sintetizados com muita graça. Também me intrigou o carro do Castelo de Cartas, virado de ponta-cabeça em alusão ao samba-enredo “A Viradouro vira o jogo”. As rodas expostas para cima provocavam uma sensação de estranhamento, por se tratar de uma opção mais conceitual do que estética. Faz parte do estilo de Paulo Barros não só oferecer o belo, mas também causar suspensões e deslocamentos, tal como os bons artistas plásticos.





O que confirma o temperamento desse carnavalesco como o de um autêntico criador é sua disposição para o risco e seu perfeccionismo. O melhor exemplo disso é sua perigosíssima decisão de colocar a bateria sobre um carro alegórico. Se a bateria errasse, o desfile inteiro desandaria. Mesmo assim ele fez 300 ritmistas subirem e descerem as escadas de um elegante tabuleiro de xadrez sobre rodas. Era grande a chance de tamanha ousadia terminar em vexame, sendo que os solavancos do carro poderiam colocar a batucada em descompasso. Mas, graças aos ensaios exaustivos, tudo correu bem, e a bateria foi aplaudida pela multidão. É pouco provável que alguém jamais tenha efetuado na Sapucaí manobra mais corajosa.





Apesar de tudo isso, e aqui entra o que chamo de problema, a Viradouro amargou um quarto lugar na avaliação do júri. A maior parte da imprensa apontava a escola como favorita ao título. Eu, fã instantâneo do artista, torcia para que se corroborasse o que me parecia quase certo. Para ter base de comparação, dei uma olhada nas outras escolas, e confesso que encontrei cenas bem interessantes – por exemplo, na Mocidade, Adão se destacava de um livro como se fosse uma ilustração ganhando vida - ainda assim, nada atingia o patamar do que a Viradouro apresentou. É por isso que me senti impelido a escrever este artigo, para sublinhar o quanto, neste país, no atual momento histórico, aquele que vai além do esperado é pouco valorizado. Nas mais diversas áreas, o que se cobra é, no máximo, que se faça bem-feito o que já é de conhecimento público, e quem apresenta algo a mais é advertido e desestimulado. Isso vale até mesmo para o carnaval, coisa que, gostemos ou não, é a cara que mostramos para o resto do mundo.Vale também para o futebol - ou não vimos, recentemente, Robinho no banco de reservas, apesar de ter sido o único jogador da equipe a atuar com brilhantismo? Se para a maior parte do planeta o Brasil não é mais do que o país do futebol e do carnaval, eu preferiria que ao menos nessas atividades exibíssemos inteligência, criatividade e arte. Alguns exemplos provam que isso é possível. Paulo Barros, a meu ver, apresenta algo de excepcional, e poderia ser um motivo de orgulho, alguém capaz de transfigurar em alguma medida a auto-imagem do brasileiro. É uma pena que não haja espaço para essa renovação – o carnavalesco já declarou que não terá condições de ousar novamente em futuros desfiles, pois as escolas cobram resultado – acho que com isso a perda para o país, em termos de identidade, é inestimável.

2.04.2007

Uma auto-biografia não-autorizada

Aos 26 anos, começa a me dar comichão de escrever um livro auto-biográfico. Não sei se é uma velhice precoce, um certo medo de morrer sem mostrar quem fui, ou porque sinto estar no final de um grande ciclo da minha vida. Acho que narrar esses meus anos “de formação” daria uma história tão boa, e tão inusitada, quanto qualquer ficção que eu pudesse criar. Quem leu meu livro de estréia sabe o quanto minha imaginação adentra territórios pouco explorados – porém a minha vida ninguém teria sido capaz de imaginar, nem eu, nem Garcia-Marquez, nem Balzac, ninguém.

Se eu contasse numa mesa de bar, dia após dia, minha trajetória inteirinha para um desconhecido, duvido muito que ele acreditasse, por mais crédulo que fosse. Aliás, mesmo que eu a narrasse para meus melhores amigos, cada um só aceitaria um pedaço, diria que o resto “não é a minha cara”. Colocar tudo no papel é a única maneira de provar que todas as minhas faces se amalgamam numa pessoa só. Posso já conhecer alguma coisa do enredo, mas para torná-lo convincente, realista, eu teria que caprichar na forma, chegar numa linguagem tão elástica quanto a diversidade do personagem em questão.

O mais difícil de compreender são os meus contrastes. Vou dar exemplos, sem aprofundar. Como é que posso ter feito uma performance terrorista-poética, com um megafone, diante de centenas de pessoas, se até os quinze anos eu era tão travado que não sabia sequer conversar? Como posso ter cenas de putaria das mais desinibidas no currículo, sendo tímido como até hoje sou? Ou o oposto: como posso manter uma inocência romântica quando me apaixono, depois de ter transposto os limites da decência? E como posso ser tão forte em alguns momentos, e tão decepcionantemente frágil em outros? Por último, que tipo de intelectual eu sou, que recebe elogios dos nossos melhores escritores, mas não consegue evitar um sem-fim de burrices que somente um retardado mental cometeria? 

Não terei tempo para isso agora, mas quando eu enfim descrever minhas errâncias, vai ser muito parecido com fazer ficção. Porque, no fundo, eu estive o tempo inteiro me inventando, me criando a partir de páginas brancas. Ninguém ditou minha vida; se alguém encomendou minha história, eu jamais atendi o pedido. Eu me sinto, constantemente, vivendo um romance experimental, onde o personagem atravessa as situações mais diversas, tentando, atordoado, aprender um pouco de tudo. Colocar minhas vivências em texto será apenas ratificação, pois em cada pequena coisa que vivo estou exercitando minha arte.