12.20.2009

Mosquitos e Berlusconi

Pelas minhas contas, no último mês matei uma média de 2,3 mosquitos por dia. Confesso que sinto orgulho desta marca e que é com muita felicidade que encerro a vida dos chupadores de sangue. Os jainistas se recusam a tirar a vida de qualquer criatura, por mais insignificante ou irritante que seja, mas nem com a mais profunda meditação eu suportaria insetos zumbidores. Também não há consciência ecológica que supere a emoção de ver que o tapa foi certeiro, que o bicho aprendeu que há alguma distância entre homem e artrópode.

Mas e quanto a chupadores de sangue maiores e mais perigosos, tal como Berlusconi, primeiro ministro italiano? Todos devem ter visto, na televisão ou na internet, a porrada que ele tomou de Massimo Tartaglia. A imprensa se apressou a desconsiderar o gesto de Tartaglia como ato político, devido a seu histórico psiquiátrico. Na verdade, a imprensa está sempre esperando uma oportunidade para igualar ativismo e insanidade, e não perderia essa. Não estou defendendo o gesto de Tartaglia, logo mais digo por que, mas acho que há muita ignorância em pressupor que quem busca tratamento psiquiátrico não possa ter opiniões sobre a maneira como seu país é conduzido. Há nuanças para a loucura, nem todos os casos são extremos a ponto de não restar juízo crítico. Meus pais militaram pelo movimento antimanicomial, justamente para contestar ideias como essa. Artaud e Van Gogh foram internos e criaram obras brilhantes. E ninguém aí leu O alienista? Na minha opinião, o melhor conto de Machado de Assis.

Pesquisando um pouco na web, vemos que Tartaglia era um artista. Apesar de não muito conhecido, ele teve inteligência o bastante para criar o que chamou de music picture, quadros cujas cores e formas mudam de acordo com os sons. Eu, como quase ninguém, jamais tinha ouvido falar nele antes, mas aí abaixo está a reprodução de uma obra sua, onde podemos ver dispositivos eletrônicos para acender as luzes. Não parece uma obra-prima, ele não é um Van Gogh contemporâneo, mas vale como prova de que ele não era de todo alienado.



Tartaglia não é o único que sentia vontade de dar um murro no mais polêmico e autoritário governante que a Itália viu desde Mussolini. Não é à toa que, logo após seu ataque, surgiram fã-clubes seu no Facebook com milhares de adeptos. Berlusconi é acusado de corrupção, é conhecido por comentários racistas e machistas, tem exercido a censura, tem sido um rolo compressor contra os imigrantes, para não falar na confissão de mafiosos, alegando que têm envolvimento direto com ele. Com uma fortuna de US$ 20 bilhões e a propriedade de uma grande emissora de TV, recursos para impulsionar a popularidade não lhe faltam, mas o homem por trás da tela não é nada agradável.

Confesso que senti um certo prazer ao ver o rosto de alguém tão detestável desfigurado pelo ódio de alguém que, se é mais louco do que nós, fez o que muitos queríamos. Podemos somar toda alegria que tive em me vingar das dezenas de mosquitos nos últimos tempos, deve ter sido esta a emoção que Tartaglia sentiu. Podem chamá-lo de louco, mas nós, os sensatos, estamos sempre apenas observando. Observamos Berlusconi tornar o mundo mais fascista, e observamos confortáveis uma reação que tentava desequilibrar a situação.

Multo bene. Eu queria falar um pouco do prazer, porque uma parte de mim quer sair por aí distribuindo porrada em todos os corruptos, manipuladores e proto-fascistas que nos sugam o sangue. Para ser ainda mais franco, não vejo até aí grandes problemas éticos, não acho moralmente "feio". Acho que o status quo, apesar de legitimado pelo pacto social, pode ser muito mais violento do que um gesto como o de Tartaglia. Dois dentes quebrados e um inchaço no rosto não são nada em comparação com a fome, a pobreza, a alienação e a perda de liberdade que Berlusconi impinge. Alguma agressividade é necessária para não se acabar exangue.

Entretanto, não necessariamente agressividade física. No fim das contas, a vingança falhou, pois a maioria dos italianos não percebe que seu primeiro ministro é um inseto asqueroso. Quase jainistas, sentem piedade por quem lhes retribui com desprezo e vileza. A popularidade do "pobre coitado" subiu sete pontos em uma semana! As pessoas fazem questão de oferecer a outra face, nem percebem de quem estão apanhando. Mesmo assim, a FAI (Federação Anarquista Italiana), se empolga, acha que vai ser ouvida e comete um atentado a bomba em uma universidade... Ninguém se feriu, mas, mais uma vez, acho que o governo pode se fortalecer com isso. As pessoas ficam assustadas, não consideram o contexto político para além do que a TV vomita, tampouco têm ímpeto revolucionário para se engajar numa luta sangrenta. O resultado acaba favorecendo quem está no poder, não tem a menor graça.

A resposta ao fascismo deve ser agressiva, porém dificilmente funcionará se escorrer sangue. O inimigo - não só na Itália - é dono da mídia. Tem se mantido no poder com a manipulação dos fatos, portanto é numa guerrilha de contra-informação que se deve engajar. Eu sinto que venho fazendo minha parte com meus textos, mas não é privilégio de escritor. Qualquer um tem capacidade para se tornar um vetor de transformação, seja através de blogs, de ativismo criativo, terrorismo poético, em conversas nos bares, corredores, universidades, em intervenções urbanas, em manifestações culturais e contraculturais, contestando tudo que nos degrada.

12.12.2009

Os dias da peste



Na ficção científica, o debate mais quente tem sido o do experimentalismo formal versus foco no conteúdo. É uma falsa oposição, mas é um tanto aborrecido notar que muitos especialistas do gênero fiquem tão tímidos diante de certos desafios, como os propostos por Nelson Oliveira em As três leis. O que Nelson vem propondo em seus artigos é extremamente alvissareiro para escritores de FC, ao menos para os que querem sair do nicho e ganhar atenção de um público e de uma crítica que ultrapassem os limites do gênero. Assim como Rubem Fonseca não é estimado apenas por fãs de romance policial, a ficção científica pode ir mais longe do que tem ido. Aliás, no exterior a sci-fi tem se repensado, o Brasil é que está atrasado - e que graça pode ter uma ficção especulativa que não olha para a frente? Olhar para a frente não significa pegar 1984 e jogar para 2084 - também pode ser, mas há outros links a se fazer.

Sob o pseudônimo de Luiz Bras, Nelson aponta que a literatura mais aceita pela crítica, herdeira de Clarice, Guimarães ou do mesmo Rubem Fonseca, tem se repetido demais. Por maior que seja o apuro formal dos escritores contemporâneos, estes têm sido pouco inovadores, especialmente no conteúdo. Podem monopolizar os elogios dos críticos com uma escrita consciente e madura, porém têm propiciado inevitáveis sensações de déjà vu. A ficção científica, por outro lado, sempre se esmerou pela inteligência inventiva, lidando com um vasto repertório de possibilidades narrativas. O conteúdo tem sido o forte da sci-fi; a forma, o triunfo da literatura considerada "séria": por que um não pode aprender com o outro?

Há resistências dos dois lados, preconceitos, posições identitárias, preguiça. Por isso que uma das minhas maiores alegrias literárias do ano foi Os dias da peste, de Fábio Fernandes. Antes mesmo de abrir o livro, a conversa que eu tive com o autor no lançamento já me sinalizou que os intercâmbios são possíveis. Leitor atento de Leminski e Borges, Fábio defendia o cuidado com a linguagem e atacava o purismo de ambos os lados. No bar da Bela Cintra, ressaltava que há tecnologia em tudo, até mesmo na camisa que vestimos, portanto, por mais humanista que se queira ser, não há como se livrar dos aparatos, recusar a ciência, ignorar as máquinas. Isto não significa que todo escritor deva escrever sci-fi ou ser expert em mecatrônica, apenas evitar a negaçao de um fato consumado. Aliás, Fábio diz estar mais interessado na reação das pessoas à tecnologia do que nos gadgets em si.



Neste exato momento, estamos recorrendo à internet. É consenso que tal ferramenta vem transformando nossa maneira de comunicar, de interagir com os outros, e consequentemente nossa maneira de pensar. Os Dias da Peste faz um excelente retrato do pensamento internético. Brincamos ao apelidar o Google de Deus, já o tomamos como uma entidade, um cérebro gigante, mas até o momento cremos tê-lo sob controle, afinal nos asseguramos de ter alma e os computadores, não. Mas por quanto tempo teremos esta certeza? As primeiras páginas do romance são a apresentação de Lucida Sanz, uma curadora que em 2109 resgata os antecedentes da chamada Convergência, a partir da qual, nós suspeitamos, a inteligência dominante passará a ser pós-humana. O que isto significa, vamos decifrando aos poucos, em notas de rodapé preparadas pela curadora. O livro se organiza em torno das anotações de Artur, blogueiro de nossos tempos, em diários virtuais que começam em abril de 2010. Artur tenta desvendar o súbito comportamento anormal que acomete os computadores de todo o planeta. Trata-se de uma peste digital com consequências caóticas - aeroportos parados, economia estagnada, população em pânico. Não parece um vírus comum, pois cada máquina responde ao usuário de maneira única, recorrendo às informações arquivadas para dialogar e pedir para não ser desligada.

Se a história avança por posts e podcasts, é pelos rodapés que compreendemos, paulatinamente, para que novo mundo apontam. Para os leitores pós-humanos de 2109, nosso presente é visto com estranhamento, pois mesmo a ideia de um mundo físico causa dificuldades de compreensão. São cômicas as interpretações não muito lúcidas desses historiadores do século XXII. Eles sofrem com as gírias, com as piadas e com as ambiguidades. Por exemplo, quando o blogueiro diz que se fodeu "em verde e amarelo", o rodapé comenta que "não foi encontrada na BioWeb nenhum registro de relações sexuais envolvendo tintas". Muito se perde, não se tem mais registro nem de Napoleão Bonaparte, embora a maior perda pareça ser a de nossa subjetividade. Estamos diante de uma nova mentalidade, mais limitada em alguns aspectos, mas turbinada em outros. Desde as vitórias de Deep Blue sobre Kasparov, os computadores nos humilham, no entanto fomos nós que os programamos, eles amplificam possibilidades de nossas próprias mentes.

Para Lucida Sanz e seus leitores, a narrativa linear é coisa do passado. Os links e o hipertexto oferecem sempre uma camada a mais, numa continuidade incessante de referências onde a obra fechada não mais se sustenta. A convergência de Fábio, vamos notando, é a do universo da ficção científica com a semiótica, ambas imbricadas em pesquisas com inteligência artificial. É difícil ler Steven Pinker (Como a mente funciona), e não concordar que a inteligência humana, até certo ponto, pode ser elucidada pela informática, pois muitos de seus processos são semelhantes. A hipótese de que um dia se possa criar máquinas com volição não é de todo fictícia, pois a linguagem humana também recorre a procedimentos que podemos considerar automáticos. Não é preciso esperar por 2019 para se inquietar com isso. Os artigos - muito bem escritos, por sinal - de Oliver Sacks também nos mostram o quanto somos maquínicos, pois basta um defeito no cérebro para fazer com que um homem não distingua sua mulher de um chapéu, não retenha memória recente ou perca completamente sua personalidade sem deixar de realizar tarefas lógicas. Onde está, portanto, a subjetividade?

Tomamos um comprimido contra a depressão e nos tornamos outra pessoa - nossa "alma" era melancólica ou tínhamos um problema na recaptação da serotonina? A ciência nos propõe questões tão ou mais perturbadoras que o existencialismo ou a psicanálise. Correr para a igreja para não enfrentá-las não nos salva dos comportamentos automáticos, apenas reforça o determinismo psíquico. O otimismo do livro - também o meu - é o de que o homem ultrapassa os aspectos artificiais da inteligência ao usar o humor, a palavra poética e ao se deixar levar pelos afetos. Contudo, do Deep Blue aos computadores "artistas" de Bill Seaman, estamos ameaçados a menos que enfrentemos nossos padrões pré-programados com uma vida criativa. A linguagem coloquial, "espontânea" de Artur é colocada sob suspeita pela lógica da inteligência artificial, no entanto esta não dá conta - os sentimentos mais simples são os mais herméticos para as Inteligências Construídas, para as máquinas que tentam inutilmente compreender o homem. Não é por exibicionismo que Foucault, Deleuze ou Umberto Eco são citados no livro, pois devemos nos preparar para desafios à nossa própria humanidade.

Entre as inúmeras citações, ganham destaque os diálogos de Artur com um escritor consagrado, Sant'Anna (livremente inspirado em Sérgio Sant'Anna). Sant'Anna não disfarça seu desprezo pela literatura de ficção científica, no que representa a opinião majoritária da academia. Artur tinha feito uma oficina literária com o mestre em sua juventude (assim como o próprio Fábio) e tenta, inutilmente, convencê-lo de que há boa sci-fi, desde que se separe o joio do trigo. São mundos distantes, Sant'Anna permanece refratário a esse universo, no entanto o blog de Artur, de maneira didática, convida o leitor a deixar de lado seus preconceitos e conhecer o que a sci-fi tem a oferecer. Os embates de Artur com Sant'Anna, me parecem, são a tentativa do próprio Fábio de ser reconhecido como escritor competente, não só entre os aficcionados pelo gênero. Não seria o primeiro brasileiro a ganhar esse status, uma vez que Bráulio Tavares, merecidamente, recebeu elogios de ninguém menos que José Paulo Paes. Em minha opinião, Os dias da peste é um livro essencial, não só para leitores de sci-fi, mas para qualquer um que acompanhe literatura contemporânea. Lamento apenas alguns falhas na edição - erros de datilografia, na cronologia e outros pequenos lapsos. Nada que não possa ser resolvido numa segunda tiragem, mas são detalhes que mereceriam melhor cuidado. No mais, torço para que o livro tenha a longevidade de muitas edições, por mais que não saibamos o que o futuro (do livro em papel, da literatura, da humanidade, das Inteligências Construídas) nos reserva.

12.06.2009

Na torcida

O Campeonato Brasileiro mais imprevisível da história bem que merecia um post bacana. O Flamengo campeão foi a cara da temporada - depois de tanto vacilo dos favoritos, tinha mais que ser um time vindo bem abaixo na classificação, desorganizado, numa escalada que, por mais meritória que fosse, deixou claro o quanto a zebra estava solta. Palmeiras, São Paulo ou Inter só não levantaram a taça porque escorregaram muito, especialmente no final. Mais surpreendente do que os tropeços bisonhos dos times favoritos, foi o Fluminense, que tinha seu rebaixamento dado como certo, mas se livrou na última rodada, após uma campanha quase milagrosa no segundo turno. Mesmo com meu time fora da dísputa, achei o campeonato mais emocionante dos pontos corridos, pela quantidade de surpresas.

Mas desculpem, não vou me estender no futebol. O assunto poderia render, mas não tô no meu melhor humor. Não só por alguns problemas pessoais, mas porque minha torcida maior, nesses dias, tem sido pela saúde do Mário Bortolotto. Ele foi baleado na madrugada de sexta pra sábado na Praça Roosevelt, reagindo a um assalto. Ele quis defender uma atriz, mas o assaltante não quis conversa, agora o Mário está internado em estado grave. O episódio todo é um saco. Eu morei por um tempo a dez minutos da Praça, sempre via o Mário lá e conversava um pouco com ele. Um cara gente boa, com fôlego para escrever, atuar, cantar blues, e ainda fazer da boemia uma arte própria, um estilo. A maior ironia é que seu blog e último livro se chama "Atire no dramaturgo", mas o imbecil não precisava levar ao pé da letra.

PS: As últimas notícias são de que ele tá bem melhor, apesar de ainda estar respirando por aparelhos.
Quem quiser dar uma força e doar sangue pra ele, dê um pulo na
Santa Casa. Rua Cesário Motta Jr, 112

11.27.2009

Volta pra cadeia, Maluf - e leva o Tuma junto!

Cadeia não deveria servir pra punir crime famélico, mas pra conter arroubos fascistas.
Eu não sei nem como é que Maluf tá solto, como que ele faz o que quer e não perde o mandato, muito menos como é que ainda votam nele.
Ele rouba, mas faz é deprimente. Estupra mas não mata, é de embrulhar o estômago. Agora Maluf e o comparsa Tuma finalmente estão sendo acusados de envolvimento com os assassinatos da ditadura. Eles ajudaram a ocultar corpos em cemitérios da prefeitura.
Dois nazistinhas. Eles queriam mudar a lei para que se pudesse cremar indigentes sem autorização da família - ou seja, para fazer sumir corpos com maior facilidade.
O processo que está correndo contra eles é muito leve. Estão cobrando uma indenização, mas sequer perderiam o mandato, menos ainda iriam pra trás das grades.
Será que nunca vamos ver o momento de justiça poética, essa corja que tanto defendeu o regime autoritário mofando na jaula?

http://br.noticias.yahoo.com/s/26112009/25/politica-maluf-tuma-responderao-ocultar-mortos.html

11.15.2009

Superpopulação

Gritam que o mundo está saturado de imagens, por isso que o artista contemporâneo deve abortar, deve se castrar, deve se retirar. O mundo não está saturado apenas de imagens, também está sobrecarregado de pessoas. Comparando, vemos que a resposta antiartísca é algo como “Não tenham filhos! O mundo já os tem demais, não vamos piorar o problema”.

Este “controle de natalidade” é uma estratégia fracassada sob qualquer ponto de vista. Se os homens mais conscientes se recusam a ter filhos, os conservadores não o farão. Muito pelo contrário, ampliarão sua influência devido à retirada da esquerda. “Ninguém mais faça arte, temos arte demais” – e é então que a indústria cultural ganha mais força, pois se prolifera sem qualquer força contrária em evidência. Nossos filhos, aqui, são as obras de arte, e um artista mais consciente deve, sim, visar uma perpetuação de seus valores, e para isso contará com filhos bem criados,tantos quanto puder sustentar, desde que haja alimento para crescerem fortes e contestadores.


10.27.2009

A filha do poeta

Conto inédito no site Germina!

É só clicar, espero que gostem.

Abraços

10.19.2009

Fuga

Arte é vazão
Mata e mete
Mas remete
É remissão

Arte é alusão
Conduz ao pó
Mas é polida
É ilusão

Arte é parte
É o que te parte
É contraparte
Não é lição

É especular
Espetacular
Experiencial
Especulação

É fuga em lá
Nem maior
Nem menor
- ar te insufla -
Sem salvação

10.12.2009

Último Dia das Crianças

Não sei exatamente quando, mas está decidido: este blog não completará mais um ano de atividade. Talvez eu comece outro, mas não quero assinar como L'enfant Le terrible por muito mais tempo.

Estou perto dos 30 anos, querendo fazer mestrado, cansado de não ser levado tão a sério quanto mereço, e acima de tudo, cansado da infantilidade das pessoas - quase todas.

Terrível, continuarei sendo, mas já não sou um principiante. E é preciso deixar claro para os outros que meu pensamento é maduro, e a alcunha tá começando a atrapalhar. Fazia mais sentido quando eu me orgulhava dos meus textos como um moleque vibra com sua rebeldia, mas isso já não basta. É preciso crescer, fazer com que as palavras atinjam um público vasto e interessado. Contra a corrente eu estou há muito tempo e sempre causarei incômodo, mas se tenho algo a dizer, quero mais é ser ouvido e que minhas ações ecoem.

Antes de parar o blog, no entanto, vou me despedindo com ousadia. Dizem que até os 30 anos determinamos nossa personalidade, então vou fazer o possível para mostrar envergadura, para avançar o máximo que puder e marcar posições. Quero lembrar de L'enfant le Terrible como programa resumido do que desenvolverei ao longo de toda a vida. Se eu mantiver a jovialidade - e, me arrisco a dizer, a novidade - do que esbocei aqui, me darei por satisfeito, terei sido um artista e um pensador pertinente. A partir de agora, tenho no máximo um ano para juntar minhas sementes. O tempo é curto: cada post deve ser um rito de passagem.

9.29.2009

Incognoscível

Hilda Hilst: "você está se esquecendo do incognoscível. O incognoscível? É, velho Ruiska, não se faça de besta. Levanto-me e encaro-o. Digo: olhe aqui, o incognoscível é incogitável, o incognoscível é incomensurável, o incognoscível é inconsumível, é inconfessável. Ele me cospe no olho, depois diz: ninguém está te mandando escrever sobre o incognoscível, estou te dizendo não se esqueça do incognoscível. Ah, está bem. Finjo que entendo. Ou entendo realmente que não devo esquecer do incognoscível?"

Meu primeiro livro se chama A grande incógnita. O conto que dá o título foi escrito em 1997, e de lá para cá eu passei por algumas experiências que vêm desafiando minha vã filosofia. Em 1997, sequer um deus espinosiano, que não guarda qualquer resquício de religião, poderia me causar mais do que bocejos, apesar de eu devorar Clarice Lispector, que desde sua estreia enveredava por uma espiritualidade um tanto maldita com forte inspiração em Espinosa. De Clarice, eu sorvia a força das palavras, mas entendia suas aleluias e epifanias de maneira bem cética, materialista.

Cresci sob um ateísmo imperturbável, que me permitia dormir tranquilo mesmo após entrar em igrejas falando palavrão. Tamanha era a minha certeza de que a metafísica é mera ficção que eu me divertia provando que o trono de Deus é vazio, e blasfemava em seus palácios. Não creio que sequer em um nível inconsciente me senti muito culpado por isso, de tão convencido eu estava de que não há governo superior ao dos homens. A Grande Incógnita aborda reencarnação, no entanto nem por um segundo me pareceu que a metafísica pudesse ser mais do que um belo conto. Uma amiga espírita leu a história e disse que não era muito condizente com a doutrina de Allan Kardec, mas não era essa minha intenção. E até que eu me pus à prova: a convite de amigos, tomei o chá do Santo Daime, três ou quatro vezes. De todas as visões que eu tive, nada me pareceu exigir explicações que fugissem da psicologia. Ao longo desses anos, fui anotando meus sonhos, porém, mesmo que eu procurasse, não encontrei muito o que justificasse o simbolismo de Jung ou explicações transcendentais. Um ou outro episódio, confesso, me deixou intrigado, mas as pistas falsas eram abundantes.

Talvez eu fosse, desde o início, e ainda hoje, mais agnóstico do que ateu. A rigor, o agnosticismo é uma posição mais científica do que o ateísmo, pois não se pode provar a inexistência de Deus. O que se pode - ou melhor, se deve - é contestar a convicção dos fanáticos, que vomitam dogmas sem qualquer evidência de que agem seguindo a Verdade. O mais engraçado é que, onde procurei com maior afinco, nada encontrei. Talvez porque eu procurasse para não achar - onde tantos pensam ver Deus, só percebi a imaginação dos homens. No entanto, pegando-me desprevenido, de quando em quando me acontecem situações como a do Daniel Seda, cujo e-mail eu transcrevi no último post, e quem eu conheci na semana passada.



Antes de falar dessa coincidência tão improvável, vamos combinar uma coisa. Não quero que ninguém acredite em mim só por voto de confiança. Se eu contar com algo tão insólito quanto a fé, valho tanto quanto um padre, e poucas coisas causam mais sofrimento no mundo do que os dogmas. Quero que cada um tenha fé em si mesmo, acima de qualquer autoridade ou qualquer palavra. Quem me lê deve ter fé em si mesmo mais do que em mim, portanto deve guardar uma dúvida, deve perguntar se eu não estou louco, ou se não foi tudo armado entre mim e Daniel Seda. Quanto a mim, venho preferindo fazer como o Ruiska de Hilda Hilst. Tenho lidado com o incognoscível como inconfessável, não me esquecendo dele mas raramente falando abertamente sobre.

Não sei ao certo sequer se eu deveria ter colocado o e-mail do Seda no ar. Em primeiro lugar porque é inconsumível - vide o silêncio nos comentários, apesar da boa visitação. E principalmente porque não consigo juntar o que penso sobre "metafísica" e os demais assuntos que me interessam, de arte à política. O Daniel é bem diferente de mim nesse aspecto: ele fala de telepatia sem muitos rodeios, vendo na internet um potencializador desses fenômenos e um prelúdio para uma sociedade mais igualitária. Pelo que me diz, ele vê tal potencial de maneira semelhante ao que eu descrevi no Será. Claro, ele sabe que, se eu escrevi A grande incógnita sem intenção de divulgar Kardec, também não escrevi Será para ser lido ao pé da letra. "Será", em ficão, deve ser lido como "Seria", do contrário não se defenderia a distância necessária entre arte e vida. Contudo, a aproximação entre Seda personagem e Daniel mostra até que ponto o diálogo entre as duas instâncias pode ser dinâmico e estreito. Não apenas a maneira como Daniel chegou até o livro, relatada no e-mail, mas certas semelhanças de nossas trajetórias surpreendem. Também ele se formou em artes plásticas mas tem se aproximado cada vez mais da literatura, buscando unir as duas linguagens. Também ele estudou Deleuze e anotou seus sonhos durante anos. E gastou horas e horas tentando imaginar como transpor um pouco da mentalidade anarquista para a realidade, sem se perder na utopia pela utopia. Se eu não fosse o próprio, acharia que esse Ivan Hegenberg batizou o personagem de Seda como homenagem, já conhecendo Daniel há tempos. Acho saudável que duvidem, mas eu não posso me dar esse luxo sem considerar que minha memória deve ter pulado alguma parte, pois não estou avisado da armação.

Não faço a menor ideia de porque atraio sincronicidades e fenômenos afins. Lembro, no entanto, que diversos escritores que se empenharam em levar a linguagem ao seu limite acreditaram tocar no incognoscível. Hilda Hilst pensava poder captar as vozes dos mortos; James Joyce se convenceu de que sua filha era telepata; Clarice falava de Deus com tão estranha proximidade que foi convidada a um simpósio sobre bruxaria; Guimarães Rosa hesitou por anos em aceitar a cadeira na Academia, como se soubesse que morreria três dias depois da honraria. Nenhum desses episódios vale como prova de nada, a não ser, talvez, de uma correlação entre uma certa compreensão da linguagem poética e uma experiência de mundo que crê ter intimidade com a "metafísica". Talvez. Há também a física quântica, que me faz a um só tempo esperançoso e cauteloso. Estou aguardando, não quero especular muito.

Ainda prefiro a ciência, gaia que seja, à fé pura e simples. Em poucos anos, o acelerador de partículas de Genebra ajudará a explicar os fenômenos não-newtonianos. Para quem não sabe, na física de partículas observam-se situações tão desnorteadoras que teorias como dimensões extra ou a simultaneidade entre passado, presente e futuro são consideradas com a maior seriedade. Há também quem esboce uma correspondência profunda entre matéria e informação, para não falar em teorias mirabolantes como as divulgadas no esquisitíssimo Quem somos nós?. Estima-se que em dois ou três anos, teremos algumas respostas para essas questões. Já imaginou o incomensurável tornando-se comensurável?

Tudo isto é tão confuso para mim quanto pode ser para os leitores, mas estava difícil passar para qualquer outro assunto enquanto o e-mail do Daniel ficasse flutuando sem reflexão. Agora, até mesmo pela incapacidade de avançar nesses mistérios, vou voltar à programação "normal".

9.14.2009

Sincronicidade estarrecedora

Um e-mail tão surpreendente que eu ainda tô digerindo... Juro que eu nunca tinha ouvido falar do Daniel Seda antes, é uma coincidência "telepática" esquisitíssima. Acho que vou conhecê-lo esta semana e ver como é que a coisa se desdobra. Estou colando o e-mail que ele me mandou pra vocês entenderem do que eu tô falando.


Oi Ivan,

Na sexta-feira passada, dia 4 de setembro, fiz uma apresentação de um projeto meu ( http://www.namahaiku.com ) na Casa das Rosas. Depois da apresentação, um amigo que estava fazendo as vezes de assistente me trouxe um livro que ele havia encontrado no porão da Casa, onde estava localizado nosso camarim improvisado. O que havia chamado a atenção dele para o livro é que ele o abriu bem na página onde a personagem "Seda" é apresentada. Ele achou a coincidência curiosa (meus amigos me chamam de "Seda", meu sobrenome) e pegou o livro de presente pra mim (o livro estava alí, meio jogado).
Resolvi ler o livro e estou achando ele uma agradável surpresa e uma curiosa coincidência.

Estou numas de "ler os meus contemporâneos", ou seja, escritores que nasceram entre os 70 e os 80 e que fizeram e continuam fazendo um bom uso da Internet para desenvolver sua obra. Escrevo e publico na web desde 1996, sempre coisas mais experimentais, juntando imagens e palavras em pequenas narrativas poéticas.
Recentemente (há uns dois anos) comecei a escrever coisas no formato "livro" e agora estou na batalha pra publicar.

Portanto receber por acaso um bom livro de sci-fi brazuca é uma ótima surpresa.

Mas a coincidência maior do seu livro com o meu nome é que eu, há uns anos, desenvolvi uma espécie de narrativa desconstruída chamada "Telepatia". É esse projeto aqui: http://telepatia.blogspot.com Desenvolvi uma idéia geral, escrevi alguns fragmentos, fiz alguns videos e atualmente esse projeto está em animação suspensa devido a outras coisas mais urgentes que estou desenvolvendo.
E o seu livro tem muito a ver com algumas idéias de lá. Atribuo isso ao "espírito da época", claro. Quando eu desenvolvia o "telepatia", tinha uma nítida sensação de que outras pessoas estariam pensando e desenvolvendo coisas semelhantes. E o seu livro é só uma evidência disso. Talvez porque a conexão "telecomunicações móveis" <-> "telepatia" seja um tanto óbvia, pelo menos pra mim e isso está inscrito no espírito de nossa época.

Bom, é isso. Resolvi escrever para dar um feedback em relação ao livro, que estou achando muito bom, e em relação à essa coincidência de nomes e inspirações.

Ah é, consegui o seu contato com o Romeu Martins, a quem acompanho no Twitter.

Abração

Daniel Seda

9.08.2009

Testando, som

Como eu disse antes, concedi uma entrevista à Rádio UNESP, a primeira vez que fui ao rádio. Tirando uma ou outra besteira que falei por nervosismo, acho que não fui mal no teste. Quem quiser conferir, é só clicar aqui e procurar a entrevista número 258. Falei sobre processo criativo, sinestesia, rock, entre outras coisas.

Abraços

Patriotismo

Eu nunca fui tão patriótico quanto neste feriado. Assim como nosso estimado D. Pedro II às margens do Ipiranga, eu estava com um desarranjo retumbante. Não pude comer feijoada, assim como a Independência é cheia de restrições. Dizem que o berço é esplêndido, que o colosso é impávido, e salve salve(-se quem puder). Nosso hino deveria ter ao menos um verso sobre a indigestão.

9.01.2009

Celuzlose + Zappa

Saiu agora a segunda edição da Revista Celuzlose, editada por Victor del Franco. Para quem gosta de literatura, é um prato cheio: Márcio André, Rodrigo de Souza Leão, Danilo Bueno, Donny Correa, Flávia Rocha, Greta Benitez, Luiz Roberto Guedes, Marcelo Ariel, Alan Mills, Javier Díaz Gil, Peter Finch, Valeria Meiller, Alejandro Mendes e trechos do Puro enquanto e do Será, do enfant terrible que aqui bloga.


Outra dica boa, para quem estiver em São Paulo, é o filme 200 Móteis, de Frank Zappa. Amanhã, no Cinesesc (Rua Augusta, 2075), 21h30. Pela primeira vez, o filme será exibido com legendas em português. É uma raridade, e tão alucinado quantas as músicas do roqueiro mais experimental que o mundo já viu. Um dia ainda vou escrever sobre essa figura. Ringo Starr interpreta Zappa e Keith Moon é uma freira pervertida. Imperdível!

O QUÊ: Sessão do Comodoro - 200 Motéis - Dir.: Frank Zappa & Tony Palmer
QUANDO: Quarta, 2 de setembro, às 21h30
ONDE: CineSESC - Rua Augusta, 2075
QUANTO: GRÁTIS

8.28.2009

Resenha no Guia da Folha

Antes da resenha, um recado importante. Na Folha, como em outros lugares, vocês verão o preço do livro como r$ 40,00, o preço normal de livraria. Vocês podem pagar metade do preço se comprarem direto no site da editora. O livro entrou no site esta semana, aproveitem!

Puro enquanto – por Caio Liudvik

A descoberta da traição, a tentativa de suicídio, o coma. Este é o ponto de partida do romance “Puro enquanto”, de Ivan Hegenberg. O protagonista é um publicitário que, até o desastre, vivia sob a autoignorância e lucrava com o sonambulismo coletivo e os pseudosonhos à venda na sociedade de consumo.
E, por ironia, é no “sono” da inconsciência, à beira da morte, que ele despertará para uma nova lucidez, deixando emergir a voz interior numa torrente de lembranças e fantasias verbais e visuais (belas ilustrações do próprio escritor, que é artista plástico de formação).
O tônus da narrativa também cresce pelo fato de Hegenberg se inspirar em seus sonhos, coletados ao longo de dez anos, o que aproxima ainda mais o leitor da linguagem estranha e familiar do inconsciente como “natureza” que, diz o demônio a certa altura, “não precisa de lógica para saber o que faz”.

Avaliação: ótimo

8.16.2009

Mais lançamentos no mês do cachorro louco

Eu já disse antes, e provavelmente vou dizer mais vezes, que comigo as coisas acontecem todas ao mesmo tempo. E, na verdade, agosto costuma ser um mês repleto de eventos na agenda literária, para tirar o atraso de julho, um dos meses mais fracos.

Indo direto ao ponto, neste mês do cachorro louco, tenho mais dois lançamentos! No dia 18, terça-feira, na Livraria da Vila (R. Fradique Coutinho, 915, V. Madalena) estarei com os outros contistas de Futuro Presente, a partir das 19h. A antologia foi organizada por Nelson de Oliveira, sempre firme na ambição de aproximar ficção científica da literatura contemporânea mais aceita. A Editora Record comprou a briga, e eu mesmo estou louco pra ver o resultado de perto (eu quero o meu, caramba, ainda não vi!)



Na sequencia, dia 21, vou a uma mesa redonda no Espaço Terracota (R. Lins de Vasconcelos, 1886, na Vila Mariana.), às 19h30, com outros autores do Portal Stalker para falar do projeto. Lembrando que o Portal Stalker NÃO SERÁ COMERCIALIZADO. A tiragem é dedicada apenas a jornalistas e aos leitores mais fanáticos de ficção científica. Se você quiser um exemplar, com sorte pode ganhar um no dia da mesa-redonda - portanto, apareça!



Por hoje é só - e a semana, só começando.

Abraços!

8.13.2009

Entrevista no rádio

Amanhã, às 13h, serei entrevistado por Oscar D'Ambrosio na Rádio UNESP FM. Estou quase famoso, não? Mas fiquem tranquilos, não vou deixar isso subir à cabeça.

E hoje, vocês já estão sabendo, é o lançamento do Puro enquanto. Quem não estiver com gripe suína, apareça para o vinho e para o livro!

Abraços, até logo

8.10.2009

Lançamento de Puro Enquanto!




Lançamento do romance Puro Enquanto no Espaço Barco Virgílio. Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, n° 426, São Paulo, a partir das 19h.


Amigos
Convido a todos para, no dia 13 de agosto, celebrarmos uma série de erros. O primeiro deles, claro, é a pretensão de um jovem de se declarar escritor em pleno século XXI e em um país de iletrados. Os erros não param aí: o autor poderia ao menos escrever sobre auto-ajuda, ocultismo, fofoca, feng shui ou dicas de relacionamento. Não, o pobre insiste na literatura. Consome dez anos em um livro, tão sonhador quanto o personagem principal, tão afastado da realidade quanto aquele que delira em coma. Ousa experimentar, mistura texto e arte visual, procura a dicção dos sonhos, e apesar dos pesares, acredita que a arte está viva. Falando um pouco mais sério, Puro enquanto já começa sob um certo fracasso. Ganhei uma bolsa para realizá-lo – o PAC, Programa de Ação Cultural - mas o livro estourou o orçamento. A vontade de inovar custou caro, e mesmo com patrocínio, estamos no vermelho. Isto significa que, se eu não contar com o prestígio de vocês, simplesmente não vou poder lançar voos semelhantes no futuro. Quem é da área sabe o quanto é difícil convencer um editor a correr riscos, e se o livro não chegar aos leitores, meus próximos projetos não vão deslanchar. Peço, humildemente, para que me deem uma força da maneira que puderem.


Compareçam, tragam amigos, divulguem, participem.
Grande abraço para todos e até logo!

8.02.2009

Mordendo a língua

Mordo a língua. Mas o gosto do sangue é adocicado. Depois de tantos combates, tenho maior clareza do que eu sentia pelo inimigo. Melhor admitir que desde cedo eu me inclinava para a dentada. Mordo a língua, porém sem me trair, pois é da linguagem, e não do músculo, que estou falando. De qualquer modo, não era apenas repúdio o que guiava meus ataques à arte pós-moderna. Entendo que havia, simultaneamente, uma atração. Uma proximidade com o limite, com o momento em que a linguagem se contorce sobre si mesma. Ficou muito claro, para mim mesmo, a partir do último conto que escrevi, Esquizóide, publicado no Portal Stalker. O personagem passa a suspeitar que é um personagem, ele se pergunta o que pode haver além do espaço metafórico onde está inscrito. A ficção refletindo sobre si mesma. Como num Mito da Caverna invertido, o personagem, de formas ideais, tem sua origem no mundo imperfeito do autor. É a partir de dentro que o pacto ficcional sofre um abalo e o espaço da arte se revela em seu processo, perdendo sua realidade autônoma. Basta isso para se chegar muito perto do instante da Morte da arte - embora meu convite seja para olhar a margem do abismo, não para se atirar.

Não acho que todos os artistas contemporâneos entendam a diferença entre olhar para a morte sem medo e cometer de fato o assassinato (ou o suicídio). Meu reconforto é compreender que não estou agindo como mera contraparte, minha ação não é mera reação. Poupando o dinheiro do analista: não era só pelo poder do inimigo que eu me chocava com a morbidez de seus discursos, tinha a ver comigo mesmo. Era urgente discernir o que os antiartistas faziam e o que eu mesmo pretendia fazer. A diferença é enorme, embora tenha sido muito complicado entender qual era, e a confusão tenha me levado a muitas dúvidas quanto ao meu próprio trabalho. Quanto à estupidez de alguns deles, mantenho o que eu disse antes, até com maior convicção, de que denigrem não só a arte como a vida. Os argumentos estão no Crepúsculo de Paradigma e em outros artigos, não preciso repetir. Acrescento apenas que se eles não existissem, teria sido mais simples, porém a partir do momento em que eles fizeram um estrago enorme, precisei quebrar a cabeça. O que teve seu lado bom, me forçou a pensar a arte até o fim (até a "morte"). Foram anos até entender como levar a linguagem tão longe quanto eu queria sem incorrer nos erros deles - na quase literal Morte da arte, para resumir. Fico aliviado em perceber que não era tanto por eles que eu estava obcecado. Seria impossível continuar testando limites em meu trabalho se eu não compreendesse onde traçar minha bifurcação e escapar das armadilhas.

Desde meu primeiro livro, que comecei a escrever aos 17 anos, muita vezes estive próximo da destruição do espaço ilusório. Alguns de meus contos brincavam com os sinais gráficos, como em O homem que de fato morreu, onde um ponto final se converte em formiga esmagada; ou em Neurocirurgia, onde a linguagem da narrativa se desagrega em meio a um surto psicótico do protagonista. Foram coisas que escrevi por instinto, não conhecendo praticamente nada das teorias pós-modernas. Em Puro enquanto, já consciente dos debates atuais, o que coloco em cena é justamente o embate entre ilusão e realidade. No romance, a linguagem fragmentária é a de alguém em coma, tentando despertar porém demasiado fascinado pelo mundo dos sonhos (ou da arte). Porém, mesmo explorando tensões, a busca pela riqueza estética deixa poucas dúvidas quanto minha crença na força da fantasia. Com este último conto, Esquizóide, mais explícito na auto-referência, estão acentuados os vetores contraa ilusão. É algo que só interessa se você tiver uma boa noção de até onde a ilusão resiste. Se sacudimos a arte, podemos trazê-la mais perto de nós. Se ela passar por algumas provações, nos parecerá mais forte, interagindo com maior proximidade.

De modo geral, acho que os escritores contemporâneos souberam não arruinar a literatura, ao passo que muitos artistas visuais se esforçaram para realmente impossibilitar a arte. Muitos dos mais jovens têm outra pegada, mas ainda vemos retardatários. Minha maior dúvida, hoje, é se as especifidades da arte visual eram tais que a antiarte seria inevitável (por questões históricas, econômicas, do suporte, etc). Se comparo com o que houve na literatura, a tentação é a de dizer que nem seria preciso teoria pesada para evitar o sangramento: a intuição mesma
poderia dar conta. Bastaria não confundir a auto-mutilação dos penitentes com a ousadia dos aventurosos. Os escritores souberam roçar o limite sem esgarçá-lo (mesmo porque, se você leva ao esgarçamento, algo se afrouxa). Contudo, se eu, que detestava a antiarte, levei dez anos para traçar a diferença, acho que nas artes plásticas estava mais difícil de percebê-la do que na literatura. De fato pareceu que para ampliar o campo da arte, seria preciso matá-la, e também eu estive confuso quanto a avanços e recuos.

Em muitos momentos, um verdadeiro espírito livre precisa testar um limite, e se sentirá um covarde se não o fizer. Cravar os dentes nas palavras em fluxo, ou sentir na boca o sabor das tintas. Um artista ou um escritor pode morder a língua sem que o gosto sutil de sangue cause grande mal. O sangue só será amargo se jorrar demais e atravancar a fala. Agora mordo a língua e a sinto doce.

7.17.2009

Sufoco no aniversário

Já é uma tradição pessoal tudo acontecer ao mesmo tempo. Minha mãe estava há quase um ano na expectativa de uma cirurgia, uma histerectomia. Não foi ela quem marcou, soubemos em cima da hora, mas coincidiu com meu aniversário. Nem tudo segue conforme o planejado: havíamos marcado um jantar em família, e comida de hospital não era a primeira opção. Tínhamos até combinado que desta vez não haveria discussões ou “terapia de grupo”, só um momento à mesa conversando amenidades. Em vez disso, é como se o médico soubesse, preferiu que eu levasse minha mãe para o quarto 604 do Santa Catarina, logo nesse dia. E o medo de minha mãe morrer no meu aniversário? Não era uma cirurgia de alto risco, tudo correu bem, mas admito que bateu um certo medo de que Deus finalmente viesse cobrar minhas ofensas. Não ia dar nem pra continuar bancando o escritor maldito: “Seguinte, gente, minha mãe morreu na mesa de operações e a culpa deve ser minha. Deus só pode ser aquele vingador maníaco do Velho Testamento, não tem outra explicação.” Felizmente, foi só uma sincronicidade, não uma praga divina daquelas.
Dezenas de pessoas me mandaram mensagens de aniversário e eu não saberia como explicar a um por um que o aniversário não estava tão alegre quanto poderiam pensar. Não acho que era só preguiça, alguma coisa naquele dia bem que podia ser suave, então evitei o anticlímax. Para que preocupar todo mundo, se até o paranóico aqui sabia que no final não haveria castigo pela Santa Catarina? Agora explico a quem acabou sabendo pela metade: a cirurgia foi chata mais pelo lado emocional do que físico. Minha mãe se mostrou uma verdadeira guerreira e em poucas horas mostrava um bom humor maravilhoso. Nem mesmo a ironia de perder o útero no andar da maternidade onde havia dado à luz meu irmão a impediu de dar risada. Afinal, a gente encontra saúde vencidos os maiores desafios. Agora sim, sabendo que está tudo bem, posso comemorar mais um ano que completo, e, mais importante, a confirmação de que minha mãe é mais forte do que eu imaginava.

7.09.2009

Uma mensagem amiga

Veio em boa hora esta mensagem. Obrigado, Aline, eu tava precisando de um pouco de confiança pra encarar o que vem pela frente.

Ivan

Cara, acabei de ler o livro. MUITO BOM! Eu sei q não sou nenhuma crítica literária, mas também sei que livros não são escritos para críticos e sim para pessoas como eu! E eu digo que para me prender eu tenho que gostar muito do livro. E eu digo "GOSTEI! MUITO!" Me apaixonei pela maluquinha da Michele (confesso que já entrei em um ônibus só para ver onde ele ia, e o que ele me mostraria. E adorei o tanto de palavrões que ele fala, porque é assim que a gente fala (ou pensa!). E adorei entrar nos sonhos pirantes que as vezes parecem com os meus e outras nem tanto, mas que se eu pudesse lembrar de todos meus sonhos sei que seriam loucos assim.
E gostei da segunda chance dele ter vindo do amor puro, porque é isso que nos salva.
Muito bom trabalho!!!! Espero ver em breve outros livros! novos e os já lançados também.

Aline OS

6.19.2009

Improviso onírico

Tenho lembrado muito dos meus sonhos, pela manhã. Nós sonhamos todos os dias, não sei se vocês sabem, e às vezes nos lembramos, às vezes, não. Eu venho anotando muitos sonhos, mas ainda não sei se vou escrever outro livro como Puro enquanto. Ao menos para não perder a prática, fiz um improviso com o sonho de ontem.

Foi com a Lucila, que não é exatamente minha namorada, é com quem eu tenho saído nos últimos tempos. Eu falava com ela, meio ansioso, sobre minha visão sobre arte, até cansar. De repente, ela me pede que eu lhe faça uma música. Me sinto meio contrariado, pois não tenho talento pra isso. Eu tento beijá-la, mas ela sorri e desvia o rosto, não consente até que eu atenda o pedido.

Essa é a descrição narrativa do sonho, mas quem disse que os sonhos cabem em uma narrativa linear?



Lucila, luciluzente, não quer mais saber de morte ou de Marte. Ela quer Dionísio, quer música, quer dlin-dlon-dlin. Ela se dá musa, toda-toda, mas se sou surdo, não me beija. Não queixo – certa ela, dona das ondas.

E quando a gente fica junto, co-pulando na cama, na sanha – é o que pergunto – não são os ritmos? Da fúria aos furos, como quem come, sssorvendo os poros, lambendo os pelos? Melodia malícia, Lulu. Dionísio sodomiza Afrodite; quem não vê beleza que vade reto.

6.13.2009

Trecho de Puro enquanto

Sombrão. Assombração; sombrão.


Arrepio; é muito real, não sabia que coisa dessas existisse. Dois metros de altura, atávico (um Ante-passado). Feito sombra - e denso como pedra. Voz que atravessa os tempos, assustadora penetrante, enredante.


‘Sabe o que escondem os quadros de Dali?’ Dali? Dali ou Da Vinci? Ou Dadá... ali, ou vindo, ou a dar? ou vencendo? Vislumbre de Mona Lisa. Mas é como um rosto de um manequim de loja, sem peruca e com rosto pontilhado. Tem algo por trás do quadro, um objeto, entre a moldura e a tela pintada. Teria que se cortar a tela, (a Mona Lisa), e pegar com as mãos.


Mona Lisa é todo retrato de pessoa viva disse uma vez Clarice. Ou mais de uma vez.


Abrindo a terceira gaveta do armário da televisão. A gaveta é que vai lentamente se abrindo, fantasmagórica. Ao redor, paredes se inclinam, como navio à deriva (e nós, tripulantes em meio à tempestade).


Medo, ainda, da sombra. Não olhar para a esquerda, onde ela está. Não ver, evitar de enxergar a alma, e o que quer que seja de olhos vermelhos.

Sobre Puro Enquanto

O livro é baseado em dez anos de anotações de meus sonhos, que só poderiam ser "amarrados" descontinuamente, em uma linguagem delirante. Levei a palavra escrita o mais longe que pude, próxima da desagregação do "eu" de nossos pensamentos inconscientes. Contudo, mesmo esquizofrenizando a palavra, eu não estava satisfeito. Nos sonhos há sempre algo da ordem do não-dito que poderia ser simulado, mas que minhas frases mais loucas ainda não transmitiam como eu queria. Eu queria sensações inalcançáveis pelo pensamento verbal. Isso me levou a misturar as palavras com diversas imagens visuais, muitas delas abstratas. As pinturas entram como aquilo que o discurso não alcança, aquilo que foge do racionalizável.

Temos uma tradição de milênios em que o mundo da arte o mundo dos sonhos são comparados um ao outro, confundindo-se. Sendo assim, e já que não vivemos só dos devaneios, é natural que a discussão sobre os reflexos da arte na realidade tenha alguma consistência. O protagonista de Puro enquanto, cuja voz conhecemos apenas por meio de seu inconsciente, nos leva a um mergulho no universo fantástico dos sonhos e da arte. Porém, por mais que encaremos este mergulho como aventura pungente, repleta de descobertas viscerais, as incursões pelas profundezas ecoam a agonia de quem se afasta da realidade. O protagonista percebe-se em coma, percebe-se alienado, e procura despertar. Não é tarefa fácil, pois para captar algo da realidade, para não tomá-la pelo mundo dos sonhos, todos temos de nos haver com nossos maiores delírios.

6.10.2009

Finalmente, nas livrarias!


Até que enfim, quando ninguém mais acreditava, eis que meu romance está à venda! Ainda não definimos data de lançamento, mas quem já quiser ver, cheirar e degustar o livro, ele está disponível no site da Livraria Cultura, que entrega para o Brasil todo. Além da Cultura, qualquer livraria que trabalhe com a Editora Annablume (e são muitas) pode encomendar o livro.

Até o final desta semana, está mais do que prometido, vou postar um trecho de Puro Enquanto. Não é nada parecido com qualquer coisa que eu tenha escrito antes: é a língua que eu falo nos sonhos.

6.09.2009

Tempo (e a falta de)

Uma das minhas angústias mais frequentes costumava ser a falta de tempo. Não era fácil conciliar as tarefas do ganha-pão com o tempo necessário para criar, para pensar e para falar de arte. Sempre uma urgência desesperada de me expressar, e eu seguia frustrado porque outros deveres me chamavam. Hoje, ao menos aquilo que de fato eu precisava fazer e me deixava sem dormir está em boa parte concretizado. Terminei o Puro enquanto, livro que me tomou dez anos para realizar e que termino com grande felicidade. E alívio, vocês não sabem como foi difícil. Nos próximos anos vou ficar só nos contos e nos poemas, mais fáceis de espremer entre uma obrigação e outra.

Quanto às minhas leituras, sinto que, na medida do possível, pude pô-las em dia - nos últimos anos, li tanta filosofia, tanta teoria estética e tanta literatura que ao menos não me sinto mais numa dívida constante. A sensação de que não posso escrever um artigo decente até entender o que Nietzsche ou Rosenberg queriam dizer, ou que eu não posso me considerar escritor de verdade até ler os principais autores, já foi quase neurótica, hoje está bem mais suave. Só passou com as muitas horas de vôo, depois de ler muito. Em muitos momentos, foi um grande prazer; em outros nem tanto, pois a gente não lê só os autores com que tem afinidade.

Pensei agora, não é à toa que em um de meus romances, estico meu tempo até o século XXIII, e nesse novo, o tempo é puro enquanto. À minha maneira, eu quis ampliar a experiência temporal, revirar o cotidiano. Torná-lo mais musical, extrair ritmos. Não me contento com o tempo objetivo, pois sei que ele coexiste com o tempo dos sonhos e dos devaneios. Percepção e memória são inseparáveis, e a mais remota infância ecoa em cada um de nossos gestos. Se entrarmos em física quântica, então, a coisa se complica ainda mais, pois há teorias que entendem o passado, o presente e o futuro como como ocorrências simultâneas. Mas essa é uma conversa que deixo para um outro dia - pra que a pressa?

O que me interessa não é só o tempo, mas a temporalidade, os ritmos, a possibilidade de ver vida e arte numa dança. Aquela história de "morte da arte", na minha opinião, aniquilava tudo isso, percebessem ou não seus defensores. A gente faz o melhor que pode para ser um bom terrorista poético, ou seja, para não se esquecer de dançar enquanto briga, mas nem sempre é fácil. Acho que hoje, finalmente, estou bem seguro de que minhas opiniões sobre arte contemporânea estão embasadas o suficiente para o assunto não me drenar tanto as energias. Organizando os artigos já escritos e alguns inéditos, até o fim do ano reúno o material todo em um livro e lanço grátis em PDF. Assim, dou minha conclusão à querela, em que eu gastei tanto tempo e neurônio que minha pressão estava sempre alta, e também evito deixar monotemático este tão querido blog. Exatamente porque o tempo é precioso, quero postar mais sobre atos criativos, meus e dos outros, e menos reclamações sobre a anticriação.

Carpe diem et carpe noctem