10.03.2010

Qual revolução?

Antes de encerrar o blog, vou tentar deixar um pouco mais clara minha visão política a quem possa interessar. A melhor maneira de transmitir o conflito em que fico a cada eleição é lembrando que nasci em 14 de julho. Ou seja, mesmo dia da Queda da Bastilha e do nascimento de Buenaventura Durruti. O momento decisivo da Revolução Francesa, que espalhou o espírito democrático para todo o planeta, inclusive em nossas terras; e aniversário do maior guerrilheiro anarquista, figura heroica daquela que talvez tenha sido a luta mais libertária de que temos notícia, a Revolução Espanhola. A coletivização de terras em Aragão e a ocupação de órgãos estratégicos na Catalunha durou pouco demais para que soubéssemos o quanto uma sociedade seria capaz de se manter fielmente anarquista. A democracia, por outro lado, tem sido praticada há tempo demais para que não sintamos que é intrinsicamente falha.

As pessoas costumam associar anarquismo com desordem, mas quem poderá dizer que é harmonioso o processo democrático em nosso país? Não ficou definido sequer o que haverá com os votos assinalados para os candidatos ficha suja, decisão que foi jogada para depois da convocação às urnas. Claro que nenhuma decepção pode ser mais engraçada do que a de quem fizer questão em votar em um político sob litígio e não puder ter confirmado seu desejo inabalável de ser enganado. A Lei da Ficha Limpa é, de longe, o fato político mais importante destas eleições, muito mais do que a figura que vier a assumir o poder, seja ela quem for. O Projeto Ficha Limpa nos oferece um mínimo de esperança, nem tanto por coibir candidatos criminosos, mais por ter sido uma iniciativa popular. Alguém consegue imaginar um projeto como esse sendo proposto pelos deputados e senadores, restringindo sua própria festa? 

Os políticos no Planalto supostamente representam aqueles que neles votaram, no entanto jamais contrariarão seus próprios interesses. Não há como esperar algo muito diferente, pois representam em primeiro lugar aqueles que patrocinam suas campanhas e estes obviamente vão querer algum retorno. A elite econômica sempre será atendida antes do povo, mesmo por governantes que tenham vindo das classes populares. Para chegar ao poder, Lula moderou seu discurso, fez alianças com a direita, foi conivente com a corrupção no congresso, manteve relações das mais ambíguas com Daniel Dantas, entre outros fatos lamentáveis. Mas como poderia ter sido diferente? O famoso comentário de Lula não deixa de ser um desabafo: no Brasil até mesmo Jesus teria que fazer acordos com Judas. E completa: "entre o que você quer e o que você pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico". Não dá para criticar Lula sem criticar o sistema, estamos falando de realpolitik.

Justamente por ter visto a velocidade com que o PT foi se deformando conforme saia da oposição para a situação, não consigo me entusiasmar muito por nenhum projeto partidário. Mesmo os que se mantiveram mais à esquerda, não poderão crescer tanto quanto o PT sem fazer concessões semelhantes. Não gosto de generalizações, não acho que todos os políticos sejam iguais, mas mesmo que alguns se salvem individualmente, não dá para ignorar que a tendência natural do sistema é se manter injusto, manipulador e covarde. Algumas melhorias os políticos mais progressistas podem propiciar, até o Plínio admitiu isso - mas é pouco, velhos hábitos tendem a se cristalizar.

Por outro lado, uma experiência como a da Ficha Limpa, impulsionada pela internet, aponta para possibilidades de uma democracia mais direta. Quanto mais as pessoas se politizarem, quanto mais sentirem que seu papel nas decisões vai muito além da escolha dos candidatos, menor nossa dependência do governo para mudar o país. Sou um tanto cético quanto a derrubada do Estado à força, mas vejo em certas iniciativas populares algo que muito agrada meu lado Buenaventura Durruti. Não é a extinção do Poder Central, não é o fim da exploração dos ricos sobre os pobres, mas maneiras de colocar o establishment sob tensão. Com uma melhor distribuição do poder, pode vir uma melhor distribuição de todos os recursos.

Em Totem e tabu, Freud conta de uma tribo na África onde o rei era espancado por seus súditos antes de assumir a coroa. Ele não deixava de ser amado por seu povo, mas na mesma proporção que era odiado. Pode parecer uma prática primitiva, mas me parece conter sabedoria. Tenho pensado em amadurecimento político como uma conciliação dos dois 14 de julho. O espírito revolucionário da Queda da Bastilha não pode se apagar com a democracia instaurada, pois para que haja verdadeira democracia, com oportunidades para todos, é vital que o povo saiba "anarquizar" sempre que contrariado. Não basta votar no seu candidato favorito, por melhor que você conheça sua trajetória, ou mesmo por melhores que sejam as intenções dele. O jogo do poder é podre demais para ficar tranquilo com isso, para achar que o voto indireto garanta os interesses do eleitor. Para o bem da democracia, é preciso saber confrontá-la.

No comments: