1.14.2010

Além dos bens e de Marx


Seja homem e siga a ti mesmo!
Não a mim, não a mim!
                        Friedrich Nietzsche   



            A leitura de Marx não pode fazer mal a quem tenha força para não se submeter acriticamente a mestre algum. Quem souber contrapor teoria à realidade, atualizar o velho, aceitar as lições da História, e tirar conclusões próprias em vez de aceitá-las prontas, muito se beneficiará de um estudo seminal sobre o capitalismo. O problema está em aceitar, junto com o que Marx tem de profícuo, uma série de premissas que já não nos servem e precisam ser questionadas. Estamos falando de um pensador que condenou a religião como ópio do povo, portanto nada mais justo que tenhamos o mesmo desapego quanto a dogmas ao refletir sobre suas ideias. Para começar, podemos perguntar se hoje Marx ainda seria comunista em sua versão totalizante. Até mesmo Einstein teve que recuar em alguns pontos de sua teoria – na constante cosmológica, em especial - e talvez Marx também recuasse diante de evidências que em seu tempo não pôde prever. Mesmo em sua época, ao menos para os jornalistas burgueses, ele dizia que a luta dos operários poderia variar de acordo com cada situação; que, por exemplo, na Inglaterra, a Revolução poderia dar lugar à negociação. Há grandes estudiosos de sua obra que se esquecem desses detalhes. Se desde aquele tempo Karl Marx podia ser mais flexível do que muitos de seus atuais seguidores, hoje há ainda menos motivos para se ouvir apenas a vertente mais intransigente da teoria. Caso a tentativa seja a de pensar em socialismo científico, a experiência deve definir o escopo. 

Aos modelos científicos não interessam as angústias humanas, considerações moralistas, menos ainda ambições políticas de ocasião. Levando isso em conta, devemos pensar até que ponto o socialismo de Marx ainda pode ser considerado científico – apesar de aspirar à aceitação universal de seus pressupostos. Como, de maneira geral, os cientistas não propõem fuzilamento aos que rejeitam as teorias de Darwin, que os marxistas encontrem fundamentos tão ou mais sólidos para assegurar que sua própria teoria de evolução não implique em sofrimento equivocado. Claro que nem mesmo a seleção natural está acima de qualquer dúvida, é apenas aquela, que, até o momento, se demonstra a mais confiável – a ciência é sempre a ciência de certo momento histórico, passível de ser superada. Uma teoria política, ainda mais uma que reivindica status de ciência, deve também provar ser a mais confiável em seu momento histórico. Se a cobaia é o homem, e se países inteiros podem servir como laboratório, cobrar por evidências não é pedir muito. A não ser que ainda estejamos no terreno da fé, não podemos nos permitir indulgências.

           Não há como discordar que alguns conceitos de Marx continuam sendo fundamentais para a compreensão de nossa época. A mais-valia, o fetichismo da mercadoria e a alienação, por exemplo, nos permitem criticar o capitalismo com ferramentas teóricas das mais incisivas. No entanto, ainda são muitos os que pensam que a vocação do marxismo vai muito além da análise, que se trata de uma preparação para a sociedade por vir, ou mesmo que a revolução será inevitável e redentora. Claro que é muito maior o número de pessoas que entende como obsoleto este modelo revolucionário, porém em muitos nichos intelectuais, a utopia resiste à Queda do Muro de Berlim, resiste a todas as decepções do socialismo real, e mesmo às respostas que grandes filósofos deram ao problema. A revolução comunista se faria em nome da emancipação humana, mas só parece empolgar a quem se recusa a enxergar o ser humano como ele é. Isto porque o ser humano, incluindo aí muitos de seus espécimes mais inteligentes, tende a procurar por líderes, por figuras tomadas como infalíveis que forneçam direções, e com tamanha paixão veem esses líderes que se cegam em relação a suas falhas. O homem é, ao mesmo tempo, muito mais limitado e muito mais fascinante do que Marx propunha. Mais limitado, pois não é capaz de assumir compromissos totalizantes sem em algum momento se deixar levar por desvios. E é mais fascinante, exatamente pelo mesmo motivo. A emancipação tal como Marx sonhava – com todos os trabalhadores em uníssono em nome do bem comum – jamais acontecerá, porque o homem não é capaz de se engajar de forma total. Por outro lado, é isso o que nos permite ver a liberdade possível: a recusa a se subsumir em um sistema. Inclusive o atual.

            Marx tem algo a nos ensinar, desde que o vejamos como um homem, não um mito, portanto passível de errar. Se hoje ele deixaria de ser comunista é especulação, mas não se pode negar que algumas de suas previsões mais assertivas falharam. Ele estava convencido que a revolução começaria nas civilizações mais industrializadas, e o que se verificou foi o oposto: Rússia, China, Cuba, os países da cortina de ferro, do leste asiático e dos revolucionários da África, todos eram essencialmente rurais. Outra previsão que foi para o buraco é a de que a classe média iria minguar, acirrando uma dicotomia entre detentores de capital e operariado. Os números mostram que em muitos países, inclusive o nosso, a classe média pode se expandir junto aos avanços do capitalismo. Aliás, o fato de termos alguma mobilidade social é o que mais frustra os comunistas de hoje, pois é um dos fatores a dissuadir os mais pobres a se unirem em prol da revolução. Não sendo nossa sociedade de todo estanque, muitos dos que estão na pobreza preferem sonhar com uma escalada rumo a um status diferenciado em vez de garantir sua parte em uma distribuição igualitária. A origem social não determina o comportamento individual de maneira tão definida quanto seria necessário para a revolução que Marx imaginou. O mais miserável dos trabalhadores talvez não seja tão diferente do chefe que o explora, pode estar apenas aguardando sua oportunidade. É na cegueira para tais instintos, aliás, que reside o equívoco maior do comunismo. Não se trata apenas de dificuldades acarretadas pela transposição da teoria para a prática – há questões que no papel já se afiguram extremamente problemáticas e perigosas.

            O “bem”

            O maior equívoco do marxismo está em sua necessidade de confiar na bondade humana. A transição de nossa sociedade injusta para uma sociedade igualitária só se faria à força, com violência, o que a princípio se justificaria por contrapor-se à falta de compaixão dos atuais poderosos, puníveis por não se importarem em olhar para a humanidade de cima para baixo. Concordo que falta compaixão a quem está no topo, mas faltou ver o quanto é ingênuo apostar na bondade dos que liderariam a transição. O simples fato de alguém se dizer comunista ou vir de uma camada social mais baixa não é garantia de que seu comportamento em algum momento não poderá ser traiçoeiro. Pelo contrário, é isso o que vimos em todas as tentativas de implantação do comunismo. Bakunin, o maior rival de Marx em seu tempo, não precisou esperar pelos abusos de Stalin, de Mao ou de Fidel para acusar o maior ideológo da esquerda de ingenuidade. Bakunin, anarquista, pode não ter conseguido sistematizar seus próprios sonhos com tantos detalhes quanto Marx, porém foi muito melhor psicólogo do que ele. Ele soube premeditar o que ainda hoje os comunistas se recusam a entender como fatalidade incontornável: o proletário, ou seu representante, ao subir até o poder, já não se comportará mais como proletário. O poder transformará sua essência, mesmo que em um primeiro instante ele acredite sinceramente em sua vocação revolucionária. Nós vemos isso acontecer muito de perto em nossos partidos de esquerda, como o PT, que por mais bem-intecionado, e até mesmo radical que tenha sido no início, está muito longe de permanecer incorruptível. Não há nada no comunismo que nos faça crer que seria diferente. Ou melhor, a diferença estaria na disponibilidade de força total para se usar contra “inimigos do povo”, contra “corruptores” e contra “dissidentes” – que, é claro, são sempre os outros, sempre bodes expiatórios. Eliminados os adversários e “traidores”, no entanto, teríamos que confiar cegamente nas boas intenções desses novos ditadores – não haveria mais ninguém com poder para regular suas ações.

            A questão é quase esotérica, mas consinto que Trotsky parecia muito melhor do que foi Stalin. Um grande sinal de que Trotsky merecia alguma simpatia é sua boa disposição diante dos artistas. Breton frequentemente trocava cartas com ele, em seu refúgio no México, e concordavam em um ponto interessantíssimo: no comunismo de Trostsky, a arte seria anarquista. Não haveria controle estatal algum sobre a criatividade dos artistas, coisa que jamais ocorreu no socialismo real. Se isso fosse aplicado, a arte viveria uma liberdade sem precedentes. No capitalismo, não há como a arte ser totalmente livre, o mercado inevitavelmente impõe seus padrões, seu gosto, seus limites, mas Trotsky defendia um regime onde isso seria possível. Não quero dar a entender que o mais importante seja a política cultural, mas esse ponto me inclina a pensar que sua visão da emancipação humana tinha certa flexibilidade e sensibilidade. Se ele conseguiria colocar tal plano em prática já é levar muito longe o esoterismo, pois o principal a se ter em mente é que Stalin se impôs como sucessor de Lênin. É a pergunta que eu sempre faço aos meus amigos marxistas, e eles nunca me deram uma resposta convincente: uma vez montado um aparato ditatorial, o que garante que o melhor homem assumirá o comando? Mais provável é que aconteça sempre o contrário: que o mais ambicioso, o mais forte, o mais dissimulado ou o mais inescrupuloso saberá galgar degraus melhor do que o homem sensível. Sempre um Stalin em vez de um Trotsky, ou mesmo um Fidel em lugar de um Che. Marx queria dedicar sua obra máxima a Darwin, que ele muito admirava, mas este recusou. Não foi à toa: a evolução natural mostra que os mais fortes tendem a se converter em líderes, e os mais fortes, tanto no reino animal quanto no humano, não dispensam uma agressividade acima da média.

            Na tentativa de evitar este problema, a teoria marxista prescreve que seja temporária a existência de qualquer partido, que a ditadura do proletariado se dissolva assim que a igualdade esteja assegurada. Verificou-se, no socialismo real, uma procrastinação eterna desse momento em que o Estado deixaria de existir. Acreditar que os governantes, uma vez tendo sentido o gostinho do poder, aceitariam o momento de abandonar seus postos é o mesmo que esperar que nossos milionários saiam voluntariamente de suas mansões para morar em conjuntos habitacionais e distribuam tudo que têm de supérfluo.

De qualquer modo, não há como chegar a um momento em que o comunismo se torne natural o bastante para funcionar sem coerção. Se, uma vez estabelecida a igualdade, o Estado abandonasse sua função, em pouquíssimo tempo os homens voltariam a competir, voltariam a disputar cada pequeno degrau, restabelecendo uma situação cada vez mais semelhante à do capitalismo atual. Por amargo que seja, é preciso admitir que o capitalismo é mais espontâneo, é mais natural do que o comunismo. Se somos descendentes dos macacos, não podemos esperar um comportamento sem qualquer vestígio de brutalidade animal – devemos lidar com isso da melhor maneira possível, mas sem ilusões. Ao contrário do que Rousseau acreditava, não há um bom selvagem que a sociedade corromperia. Pelo contrário: a disputa por território, a exploração e a hierarquia não são exclusividade do capitalismo avançado.
           
            Podre poder

Toda relação humana é relação de poder. Seja com o Estado, com o trabalho ou na vida em família. Foucault entendia que até mesmo o amor só existe em uma dinâmica entre dominador e dominado, às vezes mais sutil, às vezes com maior tensão. Não é à toa, portanto, que a revolução cultural de Mao Tsé-Tung coibia demonstrações de afeto, livros e filmes românticos ou qualquer traço sensual nos trajes e cortes de cabelo femininos. A princípio, pode parecer que ele estava deturpando os ideais comunistas, no entanto o que exerceu foi mais uma interpretação literal demais do que uma traição. O que Mao notou é que, se o princípio da igualdade deve se sobrepor a qualquer desejo individual, até mesmo a paixão dos amantes seria, potencialmente, um sentimento adverso, na medida que os afastaria da coletividade. Quanto mais dessexualizado um homem e uma mulher, mais eles poderiam se comportar fraternalmente, sem a subjugação de um ao outro, tal como Foucault constatou. Lembramos também que Marx havia escrito, em seus textos mais panfletários, que os filhos deveriam se separar dos pais e ser entregues ao Estado assim que se concluissem os primeiros cuidados maternais. Parece-nos bruto, seco demais, e dificilmente um comunista moderno concordaria ipsis litteris, no entanto pensamentos como esse coadunam com a dieta restrita de afetos que uma sociedade comunista requereria.

No início, aliás, Mao tentou oferecer maior liberdade de expressão, lançando a Campanha de Cem Flores, com a intenção de que todas as vozes dissidentes fossem ouvidas – cem escolas de pensamento, inclusive contrárias ao comunismo, seriam ouvidas. Em 1956, assim ele dizia: “Como verdade científica, o marxismo não teme críticas. Se o fizesse e pudesse ser derrotado numa discussão, não teria validade.” A intenção de abrir espaço para críticas parecia boa, mas logo incorreu em uma onda de protestos tão caótica e contraproducente, que Mao voltou atrás e se viu obrigado a reprimir os desafetos.

 Onde, quando e quanto se deve reprimir pode ser variável, no entanto, o igualitarismo pleno é impraticável sem o sufocamento de um grande leque de desejos e opiniões individuais. Se o Partido se arroga o direito de expropriar pessoas influentes de suas propriedades, de ocupar fábricas e empresas, e de decidir quem se incumbirá de quais funções na sociedade, só é capaz de fazê-lo ao legitimar sua autoridade junto ao povo. No primeiro momento, a repressão é sine qua non, para impedir os antigos poderosos de se reestruturarem. Obtida a estabilidade política, o Estado ainda precisa impor constantemente sua autoridade, atuando com a capilaridade e onipresença que caracteriza uma ditadura. Caso relaxe em sua influência, os opositores se reorganizam e o processo revolucionário não se consuma, como Mao bem o percebeu. Não só as transformações objetivas devem ser asseguradas, como uma nova subjetividade deve ser criada. Este passo, que costuma incluir o culto à personalidade do dirigente, é de vital importância, para que as identificações burguesas sejam substituídas por novos valores e possa haver harmonia nessa sociedade.

Um problema é que os desejos burgueses, com todas as críticas que podemos lhes fazer, não são tão totalmente artificiais. Por mais que a publicidade use truques escusos para difundir desejos supérfluos, alguma vontade de consumir é autêntica. O dinheiro traz infelicidade para a sociedade, mas para o indivíduo pode ser prazeroso. Mesmo no imaginário dos mais pobres, há uma volúpia em torno do dinheiro que só se reprime a muito custo, usando força bruta contra os dissidentes, controlando-se a imprensa e a educação. Se a nossos olhos parece que o socialismo real cometeu exageros, não foi apenas pela idiossincrasia dos comandantes, mas porque a transposição da teoria para a realidade desperta resistências que só podem ser vencidas com mão de ferro. Tão difícil é esse controle que, para o Partido, o melhor é estabelecer laços simbólicos os mais entranhados possíveis. Com isso, uma grande energia é dispendida não com a instrução científica, mas com a propaganda mais emotiva e irracional. Não vejo em que medida isto seja menos pior do que a publicidade do capitalismo. O ditador, cultuado, assume as feições de grande pai, responsável pela vida de cada um, ensinando com severidade e atenção constante, influindo na maneira de pensar, de agir e de desejar de cada filho. Mesmo que não houvesse perseguições e fuzilamentos arbitrários, o comunismo já seria lamentável por infantilizar o povo, por afastar cada homem de sua potência, de sua capacidade de responder por si mesmo.

Duas acepções de economia

Marx fala em emancipação humana. Com o fim do trabalho exploratório, o homem readquiriria sua dignidade. O trabalho já não seria reificante, pois o produto de seu esforço retornaria ao trabalhador de forma justa, desfazendo sua posição de inferioridade em relação ao empregador. Até aqui, o pensamento é de fato libertário. Constenador é perceber tudo que ficou de fora. Pode ser profícuo considerar, tanto quanto a noção marxista de economia, a maneira como Freud emprega a mesma palavra. “Economia”, no vocabulário psicanalítico, não diz respeito às finanças, mas ao fluxo da libido, à maneira como o inconsciente lida com as pulsões. As duas acepções da palavra podem ser pensadas conjuntamente, embora se costume esquecer do quanto uma economia interfere na outra. 

Todas as correntes psicanalistas, por mais diversas que sejam, concordam que a agressividade é anterior ao surgimento da propriedade privada e faz parte da psique desde a primeira infância. O sofrimento psicológico é impossível de se erradicar – afinal nem sempre advém de situações concretas, muitas vezes sendo deflagrado por situações imaginárias. Para organizar sua economia psíquica, constantemente ameaçada de caos, cada indivíduo se vale de poderosas ilusões que nutre a respeito de si mesmo e do mundo. Trata-se de ilusões constituintes, necessárias, que podemos chamar de loucura cotidiana. Nem eu nem vocês estamos isentos dessa condição, que no entanto nos salva da loucura maior, patológica. Lembremos que o homem é um animal desgarrado da natureza, de que a sociedade se apoia em inúmeros artifícios, de que a consciência da morte nos oprime, e de que o pacto social, mesmo o mais justo, nos impinge um grande leque de dificuldades adaptativas. O marxismo não atribui o mesmo peso a tais considerações que a psicanálise. Caso confrontasse a economia material com a economia libidinal, teria que admitir que todos os comandantes do Partido estão sujeitos, como qualquer homem, à loucura cotidiana. A auto-ilusão pode ser encontrada, sem dúvida, nos governantes da democracia, porém ao menos não se lhes oferece poder totalitário. Na democracia, um presidente homofóbico pode ser eleito, mas tal sintoma terá que ser contido. Mesmo Berlusconi, um dos piores chefes de Estado da atual democracia, não pode dar plena vazão a seus preconceitos. Nas mãos de um ditador, a homofobia pode se externalizar em um decreto que condene o homossexualismo e toda a cultura gay, como de fato fez Fidel Castro em Cuba. Nem sequer vem ao caso falar em “crueldade”. Os ditadores comunistas que tivemos muito provavelmente sentiam-se fiéis ao legado de Marx – mesmo porque trata-se de uma ideologia estruturante, totalizante a ponto de organizar sua economia psíquica e acentuar convicções –, no entanto, nem mesmo a crença sincera na utopia garante que as neuroses ficarão de fora das decisões nacionais. Fidel Castro – ou mesmo Stalin – aparentemente sentiam-se bons cumpridores de seus deveres, por mais que sua rotina fosse sanguinária. 

O próprio Marx, se tivermos um mínimo de honestidade com a História, possuía uma auto-imagem incompatível com algumas de suas atitudes. Filho da burguesia, o revolucionário defensor dos trabalhadores vivia às custas de Engels, pedindo-lhe empréstimos que não se destinavam à mera sobrevivência, mas ao aprumo nas vestimentas e na decoração de sua casa. Ele considerava fundamental ter uma apresentação vistosa, muito acima dos trabalhadores que defendia, para suas reuniões políticas. Diplomaticamente, talvez seja defensável, mas o que pensar de sua decisão, confessada em carta a Engels, de que suas filhas deveriam se casar com homens bem-posicionados? Ele diz com todas as letras que não era conveniente que suas filhas se casassem com proletários. Também encontramos em sua correspondência certos traços racistas, ou no mínimo colonialistas, sem grandes simpatias pela África. Esforço-me para não ser tendencioso, não é preciso manipular os fatos para fazer um retrato humano de Marx que não é de todo agradável. Homem algum, por maior que seja, passa incólume pela vida, isento de uma mancha ou outra.

Isto posto, devemos ter a clareza de que nenhuma filosofia onde se separe o bem e o mal pode ser tábua de salvação. Quando se tem uma auto-imagem envolta pela aura do “bem”, permite-se muitas indulgências para consigo. Quando se pressupõe a existência do “mal” como um absoluto, obtém-se permissão para liquidá-lo sem maiores explicações. O problema é que não há, a priori, qualquer instrumento para aferir se o “mal” está realmente no inimigo, ou se pertence à dinâmica de auto-ilusão constituinte do comandante. Para se pensar o homem com alguma confiabilidade, é preciso ter coragem de pensá-lo além do bem e do mal. Em vez de apostar em um discernimento moral sobre-humano por parte do ditador, que nem mesmo Marx atingiu, é preferível uma filosofia que lide com a vida de maneira extra-moral – como o faz a psicanálise ou, antes dela, Nietzsche. Nietzsche assume os aspectos trágicos da vida, no entanto nos ensina a lidar com eles. O filósofo foi muito mais ético do que se costuma pensar. Ele é associado erroneamente ao nazismo, sendo que rompeu com Wagner devido ao anti-semitismo do compositor. Costuma-se também tachá-lo de niilista, quando na verdade trata-se do oposto. Se Nietzsche escancara os aspectos trágicos da vida é porque ao olhar para o abismo de frente pode-se aprender a atravessá-lo. É evidente que ele tem seu lado perturbador, pois abdica da tentativa de livrar o mundo do sofrimento. Que fique claro, no entanto, que assim faz porque qualquer tarefa totalizante só poderia ter como resultado novos enganos. Em vez de nos orientar ideologicamente, nos estimula a coragem para enfrentarmos as ilusões. A única grande ilusão que Nietzsche conserva é a arte, que, aliás, serve-lhe como exemplo de que o sofrimento pode render coisas belas e potentes. O filósofo viveu no fim do século XIX, época em que os ideais socialistas ganhavam força, e observando tais movimentos, considerou que um regime igualitário poderia, em tese, ser alcançado. A seu ver, contudo, tal regime só poderia se firmar através de uma série de ilusões, através de uma pressão constante e manipuladora, o que faria com que tivéssemos uma sociedade de “homens de rebanho”, sem voz própria. Se levarmos em conta o que se passou na arte da Rússia soviética, não deixa de ter sua razão. Com Trotsky e Breton afastados do governo, toda a vanguarda artística que havia no país, de Malevitch a Maiakóvski, enfrentou a prisão, o exílio ou o ocaso, ao passo que prosperou o realismo socialista, uma produção que pode ter sido boa propaganda, porém insípida como arte. A verdade é que a cultura se deteriorou em todos os regimes socialistas, recuperando-se apenas nos momentos de abertura.
 
Em um governo totalitário, seja de esquerda ou de direita, a tendência não é a de que a expressão livre prospere, mas a de que o programa político inclua o controle sobre a arte. Arte controlada só pode ser uma arte menor, e não se trata apenas de arte. Um pensamento crítico ao capitalismo sem dúvida é fundamental para que nos livremos da alienação, afinal nosso atual sistema divulga uma idéia muito limitada de liberdade, associada ao consumo voraz. Não vou me estender neste ponto, que já abordei em outros textos, mas a publicidade contamina nosso imaginário, desestimulando-nos a afirmar uma subjetividade mais autêntica, mais digna. No entanto, a emancipação planejada pelo comunismo pode ser ainda mais enganosa, e com menor espaço para dissidências do que temos na democracia. Lacan, por exemplo, paga seus tributos a Marx, mas entende que a alienação não acontece apenas nas relações de trabalho, de produção ou de consumo. Alienação, no vocabulário de Lacan, significa submissão ao Outro, onde os desejos pessoais ficam tolhidos. O fascínio que os ditadores populistas exercem sobre a população, que, como vimos, assume a mitologia de um grande pai, é extremamente alienante. Se não há uma distinção clara dos desejos do indivíduo em relação aos desse Outro, encarnado pelo ditador, não podemos sequer dizer que o sujeito esteja politicamente mobilizado. Sua subjetividade é coordenada por desejos alheios, vindos de cima para baixo. É um quadro de grande fragilidade e de infantilidade psíquica. Nas palavras de Nietzsche, é esse o homem de rebanho. Não é só a exploração material que deforma o homem; essa é, certamente, uma das coisas, no entanto Marx foi muito redutor. Também a hierarquia, a obediência a um líder e o trabalho não-criativo sufocam e atrofiam o homem. Marx teria suposto que a longo prazo tais problemas supostamente seriam resolvidos com o fim do Estado, porém, se este passo é impraticável, o estabelecimento de uma ditadura apenas os exacerba.
            
 A dificuldade maior, que até mesmo alguns dos grandes pensadores dos últimos tempos não souberam assimilar, é a compreensão de que não há como livrar o mundo de toda tragédia. É um erro ainda mais trágico, por parte dos sistemas totalitários, arrogar-se a pretensão de erradicar da humanidade suas inevitáveis angústias. A partir do momento que o homem se afasta da natureza, não há maneira de não se deformar. A alienação tem uma envergadura muito maior do que o marxismo considera. Não há, infelizmente, como renunciar a esta condição, embora se possa aprimorar ao longo da vida as maneiras de se responder pelo próprio desejo, em vez de se subordinar a diretrizes superiores. Tal noção de liberdade me parece mais generosa e mais ética do que a noção materialista. Uma filosofia trágica, tal como a de Nietzsche, não se confunde com uma visão pessimista, na medida que nos ensina a dizer Sim para a vida, apesar de seus conflitos. Não há uma “saída” finalista, mas uma busca por maior autonomia, ainda que incompleta, onde possamos escolher nossos próprios equívocos. Não se defende aqui o relativismo total, pois este sim seria niilista, mas uma resistência local, não-dogmática, e uma consciência que abarque também o inconsciente, o fugidio e o inexpugnável. A micropolítica, como defendem aqueles que melhor atualizaram Nietzsche, como Deleuze e Foucault, é preferível às políticas totalizantes, precisamente por considerar a economia libidinal tanto quanto a economia financeira.

Ao concentrar todos os fluxos em um único aspecto da vida em sociedade – o bem-estar material -, subordinando cultura, autonomia e liberdade individual a um sistema controlado, o ideal comunista desconsidera todos os outros devires, todas as demais batalhas e conquistas da humanidade. A compreensão de que o capitalismo é perverso denota um pensamento crítico, porém este termina assim que se obstina por soluções demasiado moralistas. Falha quem desconsidera a natureza humana no que esta tem de variado, de complexo, de sutil, e mesmo de incoercível. Um comunista ortodoxo talvez venha a tachar meus pensamento de conivente e conservador, quando se trata mais precisamente de uma desencantada, porém vigorosa lucidez. Prefiro-a do que a ilusão eloquente – o estrago é bem menor, e as possibilidades se abrem para o que podemos chamar com mais sabedoria de liberdade.


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