8.31.2010

Mais leve

Eu estava dando uma olhada na pasta de rascunhos para ver o que ainda quero publicar antes de encerrar o blog. No meio dessa faxina, reencontrei este texto do ano passado. Deve ter parado no meio dos rascunhos sem querer, é um post de que gostei muito. Era de agosto de 2009, quase exatamente um ano atrás.

Não é só porque minha mãe se recuperou completamente da cirurgia. Não é só porque meu pai, que estava sob suspeita de câncer, recebeu um diagnóstico bem mais suave. Não é porque finalmente lancei o livro em que eu trabalhei por dez anos. Não é apenas o Brasil saindo da crise, ou mesmo a arte querendo sair da crise. O melhor é aquilo de que estou lembrando, e de que eu nunca deveria ter me esquecido.

Sobre a leveza. Ela, que parecia me escapar pelos dedos. Reencontro-a como a uma amiga íntima de quem conheço as histórias mais inusitadas. Eu quase me esquecia onde ela faz a morada. Não é no coração dos ignorantes ou entre os sedentos de poder. Tampouco um privilégio das crianças. Com quem aprendi sobre a leveza? Inesperadamente, com artistas e pensadores os mais subversivos. O sorriso falso não convence, não como os que ensinam malabarismo com o mundo às costas. Os inquietos podem parecer densos, tocando nas feridas, rompendo o que é estável, invertendo perspectivas – mas o fazem porque são ágeis o bastante, porque encontram força.

Nietzsche, por exemplo, o filósofo das marteladas, não é ele também o mais sutil? As marteladas, um bom tradutor já apontou, são perscrutações no corpo, pequenos toques para compreender reflexos. Seus livros estão além do bem e do mal, mas para ele o pensamento é “algo leve, divino, e intimamente aparentado à dança e à exuberância.” O mais corrosivo dos pensadores definiu a si mesmo como um bufão. Nossa época é cética demais para captar tais nuances, mas é aí que está a mais doce sabedoria.

Ou então, Clarice Lispector. Ela que vai da delicadeza ao soco no estômago, ela que se humaniza e se desumaniza nas mais inquietas metamorfoses... “Estremece em mim o mundo”, ela diz, mas “não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo”. Só na coragem de atravessar as piores tormentas é que se amplia o espírito o bastante para longas viagens.

Então podem retrucar: “leveza, nesse mundo sórdido? E as pessoas morrendo, e as guerras, e a injustiça?” Aí mesmo que é preciso não se deixar abater. O oncologista que trata doentes terminais, um guerrilheiro que combate o fascismo, o promotor que desafia a banda mais podre do poder... ou o fazem para aliviar o mundo do excesso de peso, ou seus gestos são inúteis. Seriedade não é manter os lábios constritos. Mesmo Kafka, tão obscuro, lia seus contos às gargalhadas com os amigos. É preciso rir com Kafka, já dizia Deleuze.

Arte e pensamento valem quando propiciam sobrevoos. Viajando de balão ganhamos a paisagem do alto, mas para isso é preciso dominar a gravidade. É preciso esforço de construção: o preparo do envelope, a tensão das cordas, o equilíbrio das formas, e – porque somos leves mas não levianos – o manejo do fogo.

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