4.16.2007

Alguns contemporâneos

Atendendo a pedidos, retomei o que eu tava discutindo em "Arte em crise", mas dessa vez citando alguns nomes.
Saiu também no Cronópios.




Em plena Avenida Paulista, a mostra “Itaú Contemporâneo” é uma boa oportunidade para se entender melhor que tipo de arte está se produzindo hoje. Também é um excelente ponto de partida para discutir algumas das questões mais intrincadas da arte contemporânea. A exposição abriu com polêmica ao colocar dezenas de pinturas na horizontal, próximas ao chão, coisa que revoltou os pintores. O correto teria sido consultá-los antes de adotar a disposição, mas é interessante o quanto a mostra consegue, seja por suas virtudes ou por seus defeitos, provocar questionamentos de todo tipo. Começando pelo nome. Entristece um pouco ver uma exposição desse porte batizada com o nome de um banco, como se o que conferisse forma e sentido ao conjunto fosse esse dado, o de a coleção pertencer ao Itaú. Levanto esse ponto porque se discute muito que a verdadeira arte deveria ser refratária às instituições, e antes mesmo de colocar os pés na entrada podemos refletir no quanto um evento dessa amplitude não seria possível sem um grande investidor, mas também o quanto isso é problemático. A arte contemporânea usualmente se opõe ao mercantilismo, porém jamais escapou ao paradoxo de depender financeiramente daqueles que combate. A meu ver esse é um dilema sério, mas, vivendo no capitalismo, não existe solução eficiente para isso. A única resposta que o artista pode dar é a criação de algo que seja mais forte do que o materialismo, que consiga ultrapassar o mercado. Há mais coisas na vida do que uma conta gorda no banco, seja Itaú ou qualquer outro, e todo grande artista consegue fazer com que nos lembremos disso, ao menos por alguns instantes. Não estou falando de trabalhos como os de Hans Haacke ou Broodthaers, que consistiam em panfletários ataques ao mercado – e desse modo apenas reforçavam a presença das instituições. Não precisa ser psicanalista para perceber que no fundo artistas como eles ostentam um fascínio reprimido pelo poder. Muito mais contundente é a arte que nos leva a considerar como há coisas mais estimulantes do que o simples acúmulo de capital. Sandra Cinto, presente na exposição da Av. Paulista, é um bom exemplo disso. Seus trabalhos de traços delicados nos colocam em contato com um universo que se estende ao cosmos, para muito além de nós-mesmos, ao mesmo tempo que nos aprofundam em um estranho abismo íntimo.
Na verdade, a exposição em cartaz não é tão tipicamente contemporânea quanto se denomina. Quase não há vídeo ou alta tecnologia, a arte conceitual está representada mas não dá o tom, sendo que o que vemos em maior quantidade são pinturas. Isso acontece porque a curadoria não teve nenhum critério mais rigoroso além da apresentação do acervo do banco. Apesar de tudo, Teixeira Coelho, o curador, conseguiu arranjar o espaço expositivo de modo a suscitar questões bem contemporâneas, o que faz com que a visita seja especialmente reveladora para quem não costuma acompanhar vernisages de perto. Até mesmo o fato que ganhou maior repercussão, as pinturas deitadas próximas ao chão, pode nos levar a reconsiderar alguns tabus. Desde os anos 60, a pintura vem sendo atacada por ser considerada “convencional” demais, esgotada, e por promover a arte como ilusão. Em contrapartida, a produção de arte mais tipicamente contemporânea se agarra ao real, ao concreto, buscando se inserir na própria tessitura da realidade. Quando isso é bem sucedido, obras maravilhosas podem acontecer. No andar de baixo, por exemplo, encontra-se um corrimão de aço concebido por Ana Tavares, que, no entanto, não é um corrimão qualquer. Tortuoso, provoca vertigem a quem o atravessa, obrigando a redimensionar o corpo em relação ao espaço. Contudo, uma obra como essa é capaz de conviver muito bem com as de Beatriz Milhazes, uma pintora que igualmente nos desnorteia, dessa vez com telas vibrantes, quase hipnóticas. O fato de uma trabalhar com a representação e a outra com a realidade externa não as diferencia tanto quanto se supõe – por mais que até hoje exista um ranço da “Morte à pintura” decretada décadas atrás. Ao ver pinturas no chão, como as de Eduardo Sued ou Ianelli, podemos perceber com maior clareza o quanto uma pintura, ainda que seja ilusionística e nos leve para uma dimensão inexistente, afeta o espaço ao redor, provoca uma nova percepção, inclusive corporal, diante do mundo palpável. Além, é claro, de nos convidar para um lugar impossível que só existe em nossas mentes. Mas creio que um corrimão absurdo também nos conecta com o mundo da imaginação, já que foge ao esperado.
Duas coisas bem diferentes são a exposição e seus textos. Há um libreto branco distribuído gratuitamente na entrada, e alguns de seus trechos estão reproduzidos nas paredes. Creio que a melhor maneira de se aproveitar a visita seja primeiro observar cada uma das obras com o maior desprendimento possível. Não são muitas as obras ali que dependem de um aprendizado teórico prévio, podendo ser desfrutadas por qualquer um que desbrave com juízo próprio. Em seguida, é interessante ler o texto de Teixeira Coelho, que na verdade busca uma síntese daquilo que críticos e artistas vêm discutindo nas últimas décadas. O texto é bem escrito, franco, e dono de uma rara generosidade para com quem não tem intimidade com esses debates. Apesar de um ou outro escorregão, é uma exposição teórica bastante bonita, assim como a exposição das obras. De modo geral, ele separa a arte contemporânea em duas correntes: a “Persistência da beleza” e “Na linha da idéia” – primazia da estética versus arte conceitual. No entanto, existe um hiato entre essas palavras e os objetos em destaque. O curador reuniu uma amostra interessante de obras de arte, e reuniu também um apanhado de proposições intelectuais desafiadoras. Mas, até mesmo por não ser uma exposição tipicamente contemporânea, arte e teoria não estão perfeitamente justapostas. Coisa que é louvável, pois vinha se tornando cada vez mais forte a tendência de reduzir o artista a um demagogo ilustrador de conceitos, tal como se viu em abundância na última Bienal de São Paulo.
Um dos filósofos mais inquietantes do século XX, Deleuze, em “O que é a filosofia?” separa abruptamente as funções da arte e as da filosofia. Ele sequer perde tempo argumentando porque opta por essa cisão, apesar de ter vivido uma época em que a arte conceitual atingia enorme prestígio. Deleuze, junto com Guatarri, não hesita ao dizer que a filosofia se constrói por conceitos, enquanto a arte se constrói por “afectos” e “perceptos”. “A obra de arte é um ser de sensação e nada mais: ela existe em si.” [1] Eu mesmo não seria tão radical, pois com todas as minhas ressalvas reconheço algumas (poucas) obras de arte conceitual que se sustentam em pé. No entanto é curioso notar que um filósofo como ele, alguém que buscava constantemente a quebra de fronteiras, atribuiu tão pouco interesse à arte conceitual que sequer a levou em consideração. Com a exceção de alguns pouquíssimos casos – como Duchamp, Tinguely, Marina Abramovich, de vez em quando Joseph Kosuth – eu também não vejo em que medida a arte conceitual acrescentaria algo a qualquer ser humano capaz de ver beleza na filosofia por ela mesma. O pensamento que vai até seu limite é, e sempre foi, comovente. E a sensação pura, com toda sua contundência, é, e sempre será, estimulante. No entanto, a comunicação verbal e a comunicação não-verbal são devires diferentes, cada uma necessária à sua maneira e a seu tempo.
É muito comum, nas grandes exposições de arte contemporânea, que a própria curadoria tenha algo de opressora, um conjunto de regras pré-estabelecidas – oprime o visitante leigo porque este desconhece o jogo, e oprime quem está familiarizado, porque lhe impõe um excesso de preceitos. Porém na atual mostra - em cartaz até 27 de maio - é tão eclético o conjunto exposto que torna a visita a ocasião ideal para se formar juízos pessoais. Vale conferir a pintura de Iberê Camargo, mesmo que não seja de suas melhores; Siron Franco e seu mórbido balanço de playground; Eder Santos com sua fantástica projeção animada sobre uma cristaleira. Raquel Kogan e seus códigos numéricos que escorrem no escuro, partindo do conceitualismo em direção ao mistério. A fotografia de João Musa flertando com a pintura, ao captar o mar tal como uma pincelada. Evandro Carlos Jardim em uma ótima gravura, para que ninguém duvide que ele é um dos melhores em sua atividade. Além disso, o espectador terá para si a tarefa de decidir se a ironia pop de Nelson Leirner é um convite ao riso ou se é apenas ele quem ri por último. Terá de pensar se Antonio Henrique Amaral, com suas melancias e bananas modernistas, diz ou não alguma coisa para nós no século XXI. Verá também as esculturas de Nuno Ramos, e sem precisar chamá-las de não-objetos saberá sentir se lhes tocam. Diante de Brígida Baltar em sua “Coleta de neblina”, poderá perguntar se a obra vale para o visitante ou se existiu apenas para a artista. E até mesmo as pedras de Cildo Meireles, bem parafusadas no solo, poderão servir de interrogação a todo tipo de tropeço. Em nossos tempos, a última palavra para decidir o que é e o que não é arte deve caber a cada espectador, e a ninguém mais.

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