11.30.2007

Menino que faz os sonhos

Para quem perdeu minha apresentação de hoje à tarde, vou deixar aqui o conto na íntegra. Ao vivo foi muito melhor, é claro, mas acho que o texto funciona com ou sem uma interpretação em voz alta.

Menino que faz os sonhos

- Ai, que mininu bunitu, coisa fofa da titia!
Rafaelzinho mal sabia que se chamava Rafael. Ainda estava aprendendo a pronunciar os primeiros sons, e como quase sempre chamavam-no de “Mininu”, ainda
estava longe o dia em que diria: “Meu nome é Rafael dos Anjos”.
- Bilubilubilubilubilú! Lindinho!
Na verdade, é Rafael das Dores, mas com um rostinho tão angelical, os cabelos loiros charmosamente encaracolados e a pele tão branca, preferiria um nome que melhor lhe aparentasse, e não o dos parentes.
- Vem agora com a mamãe, meu anjo, vem.
Rafaelzinho ainda não sabia que a mãe era operária de uma fábrica de cotonetes. Não tinha a menor idéia de o que é isso. Não tinha a menor idéia de quanto suor valia cada papinha que devorava. Aliás, não sabia que a mãe soluçava de aflição, e nem que seu nome é Maria, e nem que estava devendo três meses de aluguel.
- Mininu gotôso! Ói que perninha gotósa de apertar!
Tão bonito esse Rafaelzinho que o sucesso com as meninas será fácil. Mesmo as riquinhas mais embonecadas vão cair na sua lábia, nos bailes da cidade. E ele um rapaz meigo. Não muito romântico nem monogâmico, mas conhecedor das delicadezas que as meninas gostam.
- Uma graça, não é? Lindão!
O Mininu tinha um passatempo favorito, que era brincar de carrinho. Acelerava pelos ladrilhos frios da sala, buzinava para os três vira-latas magros, e de quando em quando derrapava em alguma almofada velha, poeirenta, esquecida no chão.
- Cumprimenta com a mão assim. Estica mais, assim. Isso aí, filhão!
O pai procurando emprego há anos, tentando o melhor que pode sem encontrar nada. Rafael vai demorar para aprender a ler, então não sabe o que é jornal e muito menos o que é Classificados. Dizem que seu pai é um desclassificado, mas isso ninguém da família entende muito bem o que significa.
- Você é um príncipe, filhinho. Um principezinho encantado.
E quando levasse para casa as filhas bonitas da gente rica, veria no braço delas os pêlos arrepiados. Não por tesão, mesmo que ele caprichasse nas carícias. Seriam as paredes descascadas, as cortinas desbotadas, o sofá gasto e remendado. Nenhuma delas se sentiria à vontade ali, por mais que confessassem uma quase magia em seu beijo. Ele fingiria não ver problema algum. Elas diriam que ele se parece com um galã de novela e estaria tudo bem.
- Tutitutituti. Tutitutitutitutitu!
Rafaelzinho ainda não sabia o quanto o trabalho esgotava sua mãe. Ela chegava quase desfalecendo de cansaço, era enorme seu esforço para disfarçar. O bebê era a esperança da casa, e todos combinaram que ele seria o primeiro da família a entender perfeitamente o que é essa tal de dignidade.
- Ae, garotão! Mininu esperto, assim que eu gosto!
O pai jamais contaria quanta humilhação já passou com os antigos patrões. Até cuspe na cara ele tomou, quando reclamou de seus direitos. “O que foi, seu Zé Ruela? É baixar a cabeça e fazer o que eu mando. Tá me olhando torto porquê? Tu é feio demais, porra. Mete o rabo debaixo das pernas e pega tuas coisas. Tá despedido.”
O sol está forte. O vento que sopra ao meio-dia é muito bem-vindo, refrescante. Uma sopa de ervilhas está para sair do fogo e o aroma desperta a fome nos moradores.
- Amo demais esse gurizinho. Ele é a nossa maior bênção, não é? Nós somos felizes, não somos?
- Somos, sim.
E Rafaelzinho corre pela sala, descalço, descobrindo brinquedos e inventando pequenos truques. Atrás de uma cortina ou do lado de lá da parede cabe um universo inteiro. Absolutamente tudo o que a brincadeira pode conceber é possível e real. Tesouros indescritíveis, imensos, doidos. Seres fantásticos maiores que uma casa, maiores que o quarteirão. Mesmo assim cabem em sua minúscula mão de mágico, na mão dele, menino que faz os sonhos.

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