5.23.2007

Orelha do livro "Será"

O progresso científico é como um machado nas mãos de um psicopata. Palavras de Einstein.
O primeiro romance de Ivan Hegenberg nos apresenta nada mais nada menos do que o futuro desse progresso. Qual seria ele? O mais assombrado e o mais assombroso possível, coordenado por máquinas inteligentes, suportado por homens e mulheres violentos e inseguros, às vezes esperançosos e confiantes, quase sempre desesperados ou deprimidos. O único futuro possível para o presente no qual vivemos: a continuação caótica do não menos caótico momento atual.
Dezenas de personagens, posicionadas pelo autor em pontos estratégicos, vão revelando pouco a pouco a estranha estrutura social e emocional dessa civilização alucinada, dessa sociedade em certos momentos muito mais angustiante do que as mais célebres distopias da ficção científica: a de George Orwell, em 1984, a de Aldous Huxley, no Admirável mundo novo, e a de Ray Bradbury, em Fahrenheit 451. Mesmo pertencendo a outra linhagem literária, A metamorfose e O castelo, de Franz Kafka, também lançam sua sombra sobre esse futuro.
Todos os fatos aqui revelados se passam no século XXIII. O oxigênio agora é retirado dos oceanos, a realidade virtual aboliu a distância espacial e a temporal (as pessoas podem viajar artificialmente para qualquer lugar e para qualquer época), a propriedade privada também foi abolida, a escassez de água e a superpopulação são as piores ameaças ao equilíbrio do planeta, as pessoas de carne e osso convivem (nem sempre tranqüilamente) com as pessoas virtuais, nos laboratórios os limites do macrocosmo e os do microcosmo são rompidos, as culpas e as neuroses podem ser extirpadas cirurgicamente da mente humana e agora a telepatia é a forma de comunicação mais sutil (até os sentimentos podem ser compartilhados).
A nossa espécie vive o apogeu da tecnologia e do cientificismo. Mas, ironia das ironias, essa situação é o reflexo da forte crise moral e existencial que devagar vai corrompendo as instituições e os indivíduos. Nesse sentido, apesar das possibilidades inimagináveis (a telepatia, a viagem ao centro da célula, a materialidade virtual), a sociedade futura continua estacionada espiritualmente no início do século XX. O fracasso das utopias, a fragmentação da consciência, a indústria cultural, a ideologia de direita e a de esquerda: nada mudou. Diante dos mesmos conflitos vividos por nossos antepassados, conflitos que levaram à Primeira e à Segunda Guerra Mundial, à Guerra do Vietnã e à do Iraque, fica bem claro que o progresso industrial e tecnológico não foi acompanhado pelo fortalecimento da subjetividade humana nem pelo enfraquecimento dos impulsos mais primitivos. Continuamos primatas egoístas e insaciáveis, dominados pelas paixões.
O sexo sádico e autodestrutivo, o fanatismo religioso e o instinto de agressão e dominação continuam testando os limites do amor e da sanidade. A última esperança para esse futuro sombrio e irracional é provavelmente o que a espécie humana vem buscando desde o início dos tempos: o verdadeiro contato com o sagrado. A procura desse contato último irá reunir e separar muitas das dezenas de personagens do romance. Elas precisam provar do sentimento do sagrado. Mesmo que esse sentimento esteja muitas vezes oculto numa cápsula de veneno.


Nelson de Oliveira

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