7.04.2006

O homem que de fato morreu

O título acima foi o primeiro que me ocorreu. Outra possibilidade seria manter só as duas primeiras palavras, descartar o predicado desnecessário. Optei deixar como está, para um melhor entendimento – é este meu principal objetivo.

Digo logo: estas linhas pertencem aos dias de hoje, mundo ocidental. Seriam de outra importância se escritas na Idade Média, quando o mais insignificante moribundo era acompanhado por uma corja de curiosos, ávidos pelo espetáculo da passagem; ou em tempos mais bélicos, cada cidadão transformado em guerreiro e os cadáveres espalhados como que para a colheita. Demoro-me mais do que deveria - 1998 d.C.

Há algum personagem na história que conto? Se assim quiserem, concentrem-se por ora em um senhor de setenta e oito anos, vestido à moda antiga, calças sóbrias, suspensório. Digamos que ele está na fila de um banco. Por sua idade o leitor provavelmente imagina uma respiração frágil, os passos vagarosos, a pele desbotada flácida. Assim seja.

Mora sozinho em seu sobrado, passa a maior parte do dia tocando o melancólico violino. Dorme cedo todas as noites; cumprimenta os vizinhos da sacada; recebe visitas esporádicas dos filhos e dos netos. E suas sobrancelhas se apertam pensativas no esforço de rememorar tempos de infância. Uma de suas maiores alegrias é quando, em seu aniversário, os familiares se reúnem para ouvir o violino, mas o velho irá morrer hoje, em meio a disparos de assaltantes no banco.

Assim será. Suas juntas não respondem tão bem quanto as do office-boy às suas costas; a demora com que se agacha ao chão é longa demais para que pudesse desviar do trajeto da bala. Teve a cabeça perfurada.

Fato é que esse homem de saúde frágil não viveria muitos anos mais, mesmo que escapasse intacto ao tiroteio. Pensando bem, eram grandes as chances de que morresse ali no banco, senão por homicídio, de infarto.

O office-boy ficou surpreso com sua própria indiferença. Não é difícil aceitarmos que os idosos falecem. Os velhos e os recém-nascidos, que não chegamos a conhecer. Não pensava de outra maneira a mente que mora nesse corpo jovem e ativo, ansioso pela hora de trocar a pastinha da empresa pela bola com os amigos e o abraço da namorada.

O vento soprando nos cabelos e ele recebe o cruzamento - conduz a bola com elegância, a perna ágil dribla o adversário na entrada da área, completa o giro limpando o lance, pontaria firme, a bola vai, e encaixa na rede do gol! Ele corre até Michele para receber o abraço.

Rapaz alto e bronzeado; suas maneiras têm um brilho alegre. Adolescente agitado, muito falante, amigável. Um pouco relaxado nos estudos, sua mãe sempre reclamou, mas ele nunca foi de causar problemas. E, se os estudos não o instigavam, o dinheiro fazia dele um trabalhador razoável.

Somente uma vez olhou a morte de perto, no velório do bisavô. Parecia estar apenas dormindo, o derrame cerebral não manchou as feições do cadáver. Naquela noite o garoto tentou imaginar a escuridão dos que partiam - porque estava em um cemitério.

Algumas semanas depois, entrou na fila de um banco carregando na pasta as contas da empresa, e notou que o homem à sua frente se parecia muito com o parente defunto - talvez fossem os suspensórios. Não soube dizer por que, mas organizou em sua mente uma nova morte para esse bisavô reencarnado. Nova morte, em um tiroteio, o velho tentava se esquivar, uma bala se enterrava no crânio. Porque o cenário era um banco, não o hospital.

Saiu da agência, suspirou para longe suas imaginações. O nome do jovem é Cristóvão, como o de Colombo.

Antes de atravessar a rua parou no orelhão, para telefonar ao chefe. Passou os valores, e quando guardou o fone no gancho reconheceu outra vez o velho, que alcançava a rua em passos cautelosos.

Tudo se passou em quatro segundos. No primeiro, viu o homem caminhando pela marquise. No seguinte, viu sua cabeça desviar brusca para o lado, e o sangue esguichando. Depois, ladrões encapuzados abrindo caminho aos tiros, em fuga desordenada. O bisavô morto, agora o velho. Houve um novo disparo - então ele soube.

Aqui termina a narrativa. Certamente chegaram repórteres, tentaram retratar a morte com suas câmaras fotográficas. Falharam, porque é falso nosso aprendizado de que é no instante coincidente ao clique das objetivas quando os corpos se tornam matéria abandonada. Suas vidas haviam se desgarrado antes, em um momento imperceptível ao relógio e aos vivos.

Um estalo repentino, semelhante ao de um graveto que se parte com as mãos? Uma aproximação incerta, como a passagem da vigília para o sono; degradée sombrio e torpor? Uma sinestésica erupção de sentidos; irradiação de loucura; desmoronamento; sensação de queda?...

Agora mesmo, em algum lugar da cidade, alguém deve estar atravessando. Eu queria ouvir.

Uma maníaca fase de transição, depois vem. Sob recusa, gemidos, pavores, pânico. Ela vem, sua chegada demonstra que as aflições não eram assim tão tragicamente insuperáveis. Vem negra, e fria? Imagino um corpo abandonado num universo sem estrelas. O domínio do nada. A consciência se perde e ignora a perda. Nenhum sentimento. O corpo não guarda memória do que foi, torna-se menos do que casca, oco por dentro em um espaço oco.

No quarto em que escrevo estou há quase duas horas absorvendo a escuridão da noite, mas não consigo sentir. O poço no qual todo instante se dissolve, inapreensível como o infinito.

Suponhamos então uma terceira personagem: um paranóico, em um dos mais acentuados graus. A todo momento experimenta a sensação do precipício. Acredita ter, em lugar do coração, uma frágil bolha de ar no peito, prestes a estourar. Acometem-no vertigens avassaladoras, sofre como se fosse a morte, chora todos os pesares de quem agoniza. Mesmo este homem, nem ele, sequer entrevê a carícia gelada. Não antes do tempo.

Frágeis bolhas de ar que somos. Tão fácil morrer, tão fácil matar. Muitas vezes de forma inocente. Para fabricar o papel em que escrevo foi preciso matar uma árvore, para a tinta de minha caneta foi preciso outro tanto. Inevitável, ao longo dos anos um único ser humano consome uma quantidade de vidas equivalente ao de populações inteiras, começando pela carne de que se alimenta.

Sobre a página em que escrevo uma pequena formiga está caminhando, da esquerda para a direita. Parece perdida, circulando sem norte. Sinto por ela alguma simpatia. Está se aproximando da ponta da caneta, ignorante de seu destino. Vou esmagá-la, mas de maneira que o ponto final desta oração coincida com a mancha de seu

cadáver .

Estou ensaiando um assassinato maior, desde as primeiras linhas. É por isso que passo as horas imerso no escuro, convidando-me sombras.

Estou falando no presente, este que vivo agora entre o último e o próximo bater do coração, no fugidio espaço entre uma contração e outra. Falo agora. Agora. Agora. Diástole. Sístole. Diástole. Sístole. Este tempo mais fugaz que as águas de uma corredeira, que nos escorrega pelas mãos, e fracassamos querendo congelar.

Estou ensaiando um assassinato maior. Vou matar o velho.

Ele vai morrer, talvez não passe desta noite. Toda essa tinta e papel não foi gasta para outro fim, eu não conto ficção. Porque sou eu o velho do banco. E o garoto, e a formiga, e outros. Morrerei, não com uma bolha imaginária no peito, mas pelo pulmão sangrando. Gota a gota esvaziando minha alma.

Dizê-lo por escrito é como assinar meu atestado de óbito. Como se concluísse minha carta de referências a Deus, que ele escolha para mim o céu ou o inferno. (Deliro na hora próxima, a única voz que me chama é a escuridão da cova). Eu tenho medo, queria estar preparado. O ponto final para tudo o que fui na vida, trocar a certeza da respiração para desintegrar no nada... É tão impossível quanto terrível quanto inevitável.

O ponteiro do relógio prossegue, em seu ritmo monótono e incisivo, cadência sem perdão.

Não posso continuar este relato agora, o farei pela manhã. Peço apenas um último desejo: se eu não puder terminar, por amanhecer morto, por amanhecer morto, peço que assinem embaixo, deixando o trabalho menos inconcluso. Já devem ter adivinhado o nome. Assinem: O homem.

2 comments:

Unknown said...

mta coisa pra ler...devo imprimir talvez pq nao tenho saco de ler na frente do computador e sei q gosto do q vc escreve.Este aqui eu tive um pouquinho mais de paciencia e gostei muito, original.Posso colocar seu link no meu blog?

Ivan Hegen said...

Claro que pode, Camila! Fique a vontade!

beijo