7.04.2006

Em "Ponto Final", Woody Allen traz Dostoievski para nossos dias

O novo filme de Woody Allen contrasta com a maior parte de sua obra, principalmente devido à ausência de humor explícito, à troca de trilha musical – de jazz para ópera – e pela ambientação em Londres, em vez de Nova York. Desta vez, não temos o típico personagem neurótico descarrilhando frases espirituosas, e talvez por isso o filme decepcione boa parte de seus fãs. Pouco se importando com oferecer o que dele esperam, o diretor afirmou considerar este o seu melhor trabalho. Não somos obrigados a concordar, mas seria difícil negar a sutileza de sua direção, o enredo bem costurado e a boa performance das atrizes (Scarlett Johansson deslumbrante no papel de Nola, Emily Mortmer impecável como Chloe).

Contudo, a meu ver, a maneira mais interessante de se apreciar esta última produção de Allen é entendê-la como contraponto de um clássico russo, citado explicitamente no filme. O livro “Crime e Castigo”, de Dostoievski, aparece nas mãos do personagem principal, Chris Wilton, e estrutura todo seu enredo, porém tão transfigurado como os valores de nossa época. Chris Wilton, Raskolnikóv moderno, é um ex-tenista que desistiu do esporte, não exatamente por falta de talento, mas por não ter persistência o bastante para ser o melhor. Envolve-se com Nola, uma aspirante a atriz, sexy mas sem futuro, porém se casa com Chloe, doce, milionária e inexpressiva. Aceita um trabalho como executivo que o sogro lhe arranja, ainda que não tenha vocação nem paixão para o cargo.

Ao passo que, na obra russa, o personagem principal é apresentado em seus aspectos mais sensíveis, no de “Ponto Final” não há caráter por trás de suas ações. Raskolnikóv é ambicioso, sonha com um grande passo que marque a história da humanidade, e tamanho ideal o mobiliza a cometer um crime. Chris é o oposto: não quer mais do que conforto, única motivação que o leva a lutar com todas as forças. Em “Crime e Castigo”, o assassino não é visto como vilão; vilão é o ser humano medíocre, demasiado terreno e mesquinho, encarnado em Svidrigáilov. Chris Wilton poderia ter sido um dos maiores tenistas do mundo caso suasse o bastante, mas optou pela mediocridade: um casamento sem amor, e um emprego com que não se identifica. Racional, traz a marca de nossa época, em que a estabilidade vale mais do que a paixão – a ponto de Nola receber uma das mais frias e calculadas mortes que uma amante já sofreu. Para Woody Allen, não faz sentido distinguir o criminoso de bom coração do aproveitador/conservador, simplesmente porque já não há espaço para grandes sonhos. O aproveitador de hoje não é mais do que o sonhador de ontem, desiludido.

Outro ponto que requer análise é a questão da sorte. Usando a metáfora da bola que bate na rede e pode ou não cair de maneira favorável, Allen defende que o talento e a perseverança não são decisivos para o sucesso, pois este depende em grande parte do acaso. Esta é, em última instância, a tese do filme, e mais uma diferença entre a visão de Dostoievski e a de Woody Allen. O leitor atento percebe, na cabeça de Raskolnikóv, a correnteza da psique ditando seus caminhos, o inconsciente influenciando seus atos e dando forma às consequências. Woody Allen, com tantos anos de divã, não poderia dizer que desconsidera o fator psicológico, mas, ao menos nesse filme, se demonstra mais fatalista. Chris é um homem objetivo, e como tal aprendeu a sufocar e disfarçar suas culpas, suas emoções. Adaptado, dribla tanto a esposa como a justiça. No entanto, mesmo em boa situação, depende de sorte. O mundo chegou a um grau de instabilidade onde mesmo quem está por cima não sobrevive sem essa coisa tão pouco palpável como o acaso. Ninguém está totalmente protegido, e pode levar um tiro a qualquer momento - talvez mesmo de quem lhe teve amor - ou perder uma fortuna em poucos dias. Não gostamos de pensar nisso, mas é fato marcante de nossa época.

Vive-se com cada vez menos garantias, e isso colabora para um cenário bastante insensível: onde a vida do outro vale menos do que o conforto, onde se comete crimes e enterra-se o remorso como puder, enterram-se todas as fraquezas, e de quebra enterram-se as paixões e os sonhos. A conclusão, após ver o filme, seria a de que o cineasta americano expôs o escritor russo como um idealista ultrapassado? A subjetividade já não tem lugar no mundo pragmático, e a beleza já não diz nada? Não exatamente. Para quem sente o mundo como Chris Wilton, talvez. Para os ainda capazes de humanizar crimes e erros, tanto os seus como os dos outros, não.

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