7.04.2006

Dos novos códigos para a fé



Deus está morto? Os indícios são de que, mais de cem anos depois da sentença de Nietzsche, a entidade suprema continua viva em nossa cultura. No entanto, um olhar atento não poderia deixar de perceber que, nos últimos anos, a fé tem se reformulado. Por exemplo, o sucesso de “Código da Vinci”, que agora repete nos cinemas a febre que obteve nas livrarias, é significativo à medida que politiza e desmistifica aspectos da religião católica. Se tomarmos o cinema como uma espécie de catalizador de opiniões, vale também lembrar de “Quem somos nós?” que buscou cientificizar o debate metafísico, e da figura de Tom Cruise, inegável astro das telas, que vem se tornando garoto-propaganda da polêmica cientologia.

Vamos por partes. Em “Código da Vinci” temos um fenômeno comercial extraordinário, que, junto a intriga policial e tensão amorosa, apresenta a quebra de alguns dos maiores tabus católicos. A principal imagem que se corrompe é a do Cristo sobre-humano, a-histórico, virginal e puro, ainda que Jesus como filho de Deus permaneça incólume. Dan Brown, autor do livro, foi competente ao menos em um ponto: soube seduzir o leitor comum para uma desconstrução de preceitos, soube convidar ao questionamento de dogmas que resistem na mentalidade ocidental há quase dois milênios. Infelizmente, a precisão científica de seu livro é pífia, e ainda que calcada em argumentos pertinentes, está longe de constituir uma tese aprofundada - aliás, já se apontaram mais de duzentos erros históricos que permeiam a narrativa. Contudo, Dan Brown realizou o interessante feito de ao menos inquietar as massas, o que já é, por si, algo a se considerar.

Talvez seja ainda cedo para dizer se, a longo prazo, o público médio que leu o livro ou assistiu ao filme irá realmente se apropriar do deslocamento de ponto de vista que ali se propõe. Transformações na mentalidade são lentas, e requerem tanto um estopim quanto a continuidade de estímulos. Já seria, contudo, uma interessante mudança de patamar se boa parte dos cristãos pudessem assimilar que a Bíblia não é um livro definitivo, tendo sido escrita por homens e decupada por ordens de um imperador - Constantino, no concílio de Nicéia. Tal apreensão seria um salto positivo, pois a perspectiva histórica tende a nos humanizar. Em detrimento de uma leitura moralizadora dos evangelhos, a politização da fé tende a conferir maior dignidade à vida terrena.

Missão impossível

A tradição cristã é a dominante na sociedade ocidental, porém jamais foi a única. O ocultismo sobreviveu às Inquisições, as religiões africanas resistiram à aculturação, o budismo ganhou novos adeptos ao longo do século XX. E, recentemente, este milênio vem apresentando algumas maneiras tecnicistas de se relacionar com a fé. É o caso da cientologia e da mescla de física quântica com espiritualidade, duas correntes que iniciam perceptível fase de ascensão – a primeira, impulsionada por declarações de Tom Cruise; a segunda, por livros e documentários como “Quem somos nós?” e a influência de físicos de alto escalão. São crenças que, de uma forma ou de outra, cativam aqueles que sentem o cristianismo como algo anacrônico.

A cientologia deriva muito mais da ficção científica do que de um pensamento que se possa chamar racional. Seu fundador foi o americano L. Ron Hubbard, que se notabilizou como escritor de sci-fi, e portanto se confundem na seita sua obra ficcional com sua obra doutrinária. Sua mitologia original é no mínimo extravagante, remontando a 75 milhôes de anos atrás, sendo Xenu uma entidade alienígena que supostamente teria colonizado a Terra. A cientologia professa a reencarnação e propõe uma dispendiosa limpeza espiritual, mediante um tratamento por etapas. De científico, aparentemente há apenas o emprego de máquinas, como o e-metter, uma espécie de detector de mentiras. Tal aparelho seria usado em sessões de terapia regressiva, e auxiliaria a localizar “engramas” - traumas acumulados ao longo das várias encarnações. Constam muitas acusações contra a seita, considerada prejudicial à saúde mental de seus adeptos, e têm sido freqüentes as batalhas judiciais contestando sua legitimidade como religião. Ainda assim, tem sido um negócio extremamente lucrativo, em especial nos EUA e na Europa.

A ascenção da cientologia, a despeito dos inúmeros alertas contra a instituição, pode ser vista como sintoma de desespero, diante de uma preocupante sensação de vazio. Neste ponto, retomo o Nietzstche de Gott ist tot: “Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? (...) Não vagamos através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo?” O filósofo iconoclasta já previa o preço a se pagar pela morte de deus, um sentimento de vazio para o qual ninguém estaria realmente preparado. Para os seguidores da cientologia, Jesus talvez esteja morto, mas deus está tão vivo que não hesitam em gastar rios de dinheiro em seu nome. Talvez o cristianismo sofra, no mundo industrializado, de uma defasagem imagética que a fantasia de Hubbard se propõe a suprir. Afinal, seus adeptos se relacionam melhor com aparelhos como o e-metter do que com o confessionário da igreja, e preferem uma mitologia espetacular, recheada de toques de ficção científica, do que episódios bíblicos que remontem à antiguidade. Eis uma religião que apresenta um espírito de aventura semelhante ao dos filmes hollywoodianos. Não é de se estranhar que alguns de seus astros tenham sido fisgados. É uma seita que une perfeitamente a eterna busca por respostas e a artificialidade consumista de nossa época.

Meta-física

Outro fenômeno que merece atenção é a recente tentativa de popularização da física quântica, em sua vertente mais zen. O primeiro gesto nesse sentido se deu com a publicação de “O tao da física”, de Fritjof Capra, de 1975. O livro torna acessível para leigos algumas das idéias de Heisenberg, que, em confronto com Einstein, interpretou certos fenômenos quânticos com o auxílio da filosofia oriental. De fato, o mundo subatômico desafia a lógica com que estamos acostumados, e até o momento não se encontrou explicações racionais para muitos de seus aspectos, tais como o princípio da incerteza. O pensamento de Heisenberg, em alguns momentos mais filosófico do que empírico, se aproxima de uma indistinção entre consciência e matéria. Uma de suas proposições é a de que o próprio ato de observar uma partícula alteraria seu comportamento.

Por mais que seja um assunto de difícil compreensão para leigos, o prestígio de alguns físicos renomados, muitas vezes professores das melhores universidades, têm transmitido uma sensação de credibilidade a esse sincretismo moderno entre ciência e fé. O documentário “Quem somos nós?”, de 2004, ao fazer um apanhado de seus principais representantes, obteve alguma repercussão entre pessoas não necessariamente da área de exatas. Por um lado, é um debate extremamente interessante que pode e deve invadir outras áreas do conhecimento e até mesmo do cotidiano. Por outro, o perigo é o de se comprar muito fácil aquilo que não se entende bem.

No buscador google, há 1,4 milhões de menções ao filme em inglês (“What the bleep do we know’). Para “quantum” combinado com “physics”, que a princípio seria um dos assuntos mais herméticos, temos 86 milhões. Para se ter uma base de comparação, “Sartre” não atinge sequer 10 milhões. Isso é um sinal de que o assunto ultrapassou há muito o território dos especialistas, e tem cativado um público sedento de respostas. A sedução se faz pela proximidade de que estaríamos de uma explicação “racional” para “deus”.

Alguns dos físicos assumem prontamente a posição de gurus, tal como Amit Goswami, um dos mais populares deste novo nicho. Um problema é que pensadores como ele não colocam qualquer hierarquia entre método científico e misticismo oriental, e sem evidência concludente chegam a afirmar que todo o mundo da matéria é “nada além de possíveis movimentos da consciência”. Por mais que alguns conceitos quânticos possam dar brecha a afirmações desse tipo, não há qualquer prova empírica para tais extrapolações. Muito menos para pretender que qualquer homem já tenha compreendido os meandros de uma metafísica completa. Há uma certa manipulação da ciência nesses casos - nem sempre movida por má-fé, como parece ser o caso da cientologia.

Inconclusão

Mesmo que de maneira às vezes trôpega, o que temos em comum, nos três casos analisados, é o investimento no sentido de tornar instrumental o que tradicionalmente era apenas questão de credo. Temos a politização da narrativa bíblica, sujeitando um livro sagrado a investigações e revisão crítica; temos a tentativa de elevação espiritual mediada por máquinas, que com ponteiros e sinais sonoros guiam as respostas procuradas; e temos a ciência em seu papel mais inusitado, empregando fórmulas complexas para falar em transcendência.

Ratifica-se, portanto, um olhar que diminui a distância, outrora marcante, entre um plano superior e a vida terrena. Em parte, tal fenômeno se dá como forma de competir com onipresenças mais ululantes, como a concretude inevitável dos apelos publicitários. Um deus que queira competir com campanhas maciças e enormes outdoors tem que oferecer algum acesso mais pragmático do que a simples fé. Ao menos uma base que pareça sólida - não necessariamente um estudo preciso e sistemático, pois isso jamais foi exigido pelo grande público. O que se evidencia é a demanda por um deus que se possa assimilar: seja comprando a prestações, seja pensando que seu descendente foi tão humano como nós, seja acreditando que deus é decomponível em números.

Não é de todo impossível que um dia a razão consiga quebrar códigos dos mais obscuros e explicar o inexplicável. Mas convém não nos precipitarmos. Enquanto a solução não aparece, enquanto só podemos ter certeza da incerteza, usemos de nossa ignorância com um mínimo de astúcia. Sejamos desconfiados, suspeitosos de falsas promessas. É tentador desvendar o labirinto, entender de fato ao invés de apenas supor. Mas, para isso, afastemo-nos das armadilhas fáceis.

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