7.04.2006

Quando arte e religião se atracam

Artigo publicado no site da Caros Amigos


Recentemente, no Rio de Janeiro, foi retirada de exposição uma peça da mostra Erotica, em cartaz no CCBB. Trata-se de “Desenhando em terços”, de Márcia X., foto de dois terços em forma de pênis que se atravessam em cruz. A polêmica foi gerada pela sociedade Opus Christi e a decisão decretada pelo Banco do Brasil, atropelando qualquer diálogo com a curadoria. A obra já havia sido exposta em São Paulo, sem maiores problemas, porém foi recebida no Rio sob protestos.

É aterrador pensar que a censura possa estar, aos poucos, retornando ao campo da cultura brasileira. Temos de estar atentos para evitar os casos isolados, antes que eles se acumulem e passem a se tornar rotina, pois a liberdade de expressão é condição sine qua non para um ambiente cultural saudável. O caso de Márcia X. chama a atenção pela falta de diálogo com que a proibição foi feita, não dando sequer a chance de se argumentar contra a medida.

Se, em defesa da artista, considerarmos a questão como disputa moral, podemos muito bem inverter o foco que os querelantes vêm tomando. Márcia X. iniciou sua carreira nos anos 80 através de performances, numa década de intenso retorno à pintura, o que por si já faz com que sua integridade como artista seja admirável. Fato é que ela seguiu arriscado caminho próprio, sem se importar com apelos mercadológicos ou mesmo com a crítica vigente. Não teve aceitação imediata, e ainda assim prosseguiu trabalhando contra a corrente, por acreditar em seu trabalho. Pensando aqui na habilidade com que grupos como o Opus Christi transformam o sublime em dinheiro, ou lembrando das múltiplas denúncias recentes de pedofilia contra padres, não se percebe a mesma honestidade. É exatamente por isso que são importantes as obras de arte ousadas, capazes de levantar questionamentos, mesmo que se valendo de efeitos de choque.

No caso de “Desenhando Terços” temos a aproximação de dois universos a princípio distantes, mas que ao fundo estão intimamente relacionados. Freud, em “Totem e tabu”, compara os rituais religiosos com as obsessões neuróticas. Um dos traços evidentes para seu paralelo é o de que ambos se caracterizam pela repetição – como exemplos, os cacoetes e manias, rituais neuróticos; ou a reza do terço, ritual religioso. Segundo o vienense, por trás desses comportamentos haveria uma enorme energia sexual represada. Ora, se sua teoria é até hoje levada a sério e amplamente estudada, por que não se poderia sugerir associações entre o furor religioso e o furor sexual? Por que não apresentá-las numa obra de arte? Aliás, é bastante adequado exibir uma obra dessa em uma exposição sobre arte e sexualidade. Afronta agressiva seria fazê-lo em um contexto definitivamente religioso, coisa que Márcia X não viu necessidade de realizar.

O diálogo entre posições antagônicas pode ser muito profícuo, mas não a imposição taxativa, tal como foi feita. A censura fere o direito à liberdade de expressão, sem a qual não há esperança de debates dialéticos. É verdade que a obra pode parecer chocante para alguns grupos de pessoas, e de fato a ironia e a polêmica são marcas da artista em questão. É muito justo que aqueles que se sentiram ofendidos tivessem direito a algum tipo de resposta. Que protestassem, que escrevessem aos jornais, que demonstrassem seu repúdio, mas o fato de terem conseguido a censura é uma derrota lamentável para todos que entendem arte com alguma seriedade. Não é solução que possa ter lugar em um país supostamente democrático.


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