7.04.2006

Igualados pela ignorância

O próprio Ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, me deu um parecer positivo quanto a este artigo e o encaminhou à Redação do jornal. Infelizmente, foi recusado nessa segunda etapa, porque o assunto já estava muito pautado. Agruras de um jovem escritor quase desconhecido.



Como entender o que ocorreu na semana passada, não só em São Paulo como em inúmeros focos por todo o país, sob as ordens do Primeiro Comando da Capital? O que pensar e o que sentir a respeito das rebeliões? É evidente que se passam coisas completamente diferentes na cabeça de cada um, variando conforme sua percepção da realidade. Contudo, vale o esforço de não sermos simplistas diante do caso, e tentarmos refletir da maneira mais panorâmica possível a respeito de um fenômeno que ainda não sabemos bem como irá se desdobrar.

Por um lado, é tão desamparador o momento político em que se encontra o país, e tão baço o horizonte que vem se desenhando nos últimos anos, que uma reação violenta desta grandeza não deixa de ser uma importante mensagem. De fato, é inegável que Marcola e seus subordinados provocaram tumulto o suficiente para causar ao menos um sobressalto na tal da “elite branca”. E, da mesma maneira, é difícil dizer que o modo irresponsável com que os poderosos vêm sugando a camada desfavorecida não seja uma das principais causas desta convulsão. Dificilmente os soldados da organização, nos recentes ataques, arriscariam a pele de maneira tão explicita e vulnerável se tivessem perspectivas realmente dignas. Convém perceber, no entanto, que todo o fenômeno não está exatamente voltado para questões sociais abrangentes, como é o caso do MST no campo.

Tomemos como um ponto de partida a genealogia do PCC. Não é nenhum segredo o quanto a vida nas cadeias sempre foi território desprovido de qualquer respeito aos direitos humanos. Maus-tratos diários por parte dos carcereiros e entre os presos, inclusive com a prática constante do estupro. O Primeiro Comando da Capital foi criado em Taubaté, em uma penitenciária onde as condições estavam tão abaixo do que se pode considerar aceitável, que doença mental e suicídios atingiam índices alarmantes. Num ambiente que podemos chamar de infernal, a facção foi criada como uma rede de proteção para os detentos, e quanto a isso realmente obteve conquistas notáveis. Atualmente não há muitas ocorrências de estupros nas prisões nas quais se ramifica o PCC, pois seu estatuto não o permite, e é considerável o poder de negociação que seus membros adquiriram quanto a seus direitos.

O PCC foi criado por necessidade premente das pessoas mais brutalizadas por nosso sistema. É compreensível que eles gritem; mas precisamos levar em conta a cegueira que se soma a tal ressentimento. Na semana passada, não hesitaram em prejudicar a vida de muitos trabalhadores, que pagaram altos preços sem estarem diretamente vinculados a suas mazelas. Aqui e ali, sobretudo entre os jovens, encontra-se quem exalte as ações do dia 15 - ações de terrorismo aberto - como atitudes de guerrilheiros justificados. Seria mais preciso dizer que se trata de uma organização com interesses próprios, em contínua expansão, e que, é bom destacar, vem se tornando cada vez mais lucrativa. Formam seus próprios advogados, fazem empréstimos a juros, arrecadam mensalidades, gerenciam tráfico de drogas e de armas. Não há sinais de uma ideologia que vá muito além de interesses econômicos ou relativos à condição carcerária. Talvez fosse, sim, louvável que tamanha capacidade de articulação se voltasse para lutas mais solidárias, contudo não é bem esta a intenção por trás. Todavia, muito mais absurdo do que considerá-los heróis revolucionários seria desconsiderar o contexto no qual o crime atinge estas proporções.

Infelizmente, tenho percebido uma grave falta de visão em depoimentos de membros da alta sociedade. É chocante o quanto a elite de modo geral não parece ter percebido o recado, nem mesmo gritante como foi dado, e o quanto ainda não percebeu sua parcela de responsabilidade nesta situação. Na minha interpretação, fenômenos como este evidenciam que a elite brasileira não é tão astuta e habilidosa como sua posição privilegiada possa dar a entender. Fato é que os poderosos não compreendem muito bem, não têm o controle que no passado já tiveram, e não sabem lidar com o monstro que ajudaram a criar. Ou seja, o dinheiro já não os faz tão poderosos como imaginavam. O típico quatrocentão explorador não é muito menos alienado do que os criminosos semi-analfabetos que concretizaram as missões terroristas. Afinal, creio não se tratar de sensacionalismo dizer que não há um único homem rico no Brasil que não precise de uma boa dose diária de fé – uma boa dose de esperança idealista, sem garantia real - para não ser seqüestrado ou mesmo morto de um momento para o outro.

Uma coisa me parece cada vez mais evidente: a constatação de que a história está em pleno movimento. Certamente a questão ainda está longe de ser resolvida, e é provável que novos conflitos se repitam. O fato de o governador Lembo ter culpado a “elite branca”, conforme depoimento, nos dá alguma esperança de que uma nova maneira de pensar venha, aos poucos, ocupar mais espaço – nem que, infelizmente, seja por motivos de pressão extrema. Os desdobramentos permanecem imprevisíveis, porém fica a sensação de que vivemos uma dinâmica de forças que não é a mesma de meros dez anos atrás. Temos visto que não existe mais esquerda e direita, a dicotomia presente em todo século passado; mas também que é cada vez mais difícil situar o que está dentro e o que está fora do que anteriormente se entendia por “sistema”. Tudo passa a se amalgamar no mesmo organismo. Já não é mais possível separar bandidos do resto da sociedade, já não se pode simplesmente separar partes. Elemento algum, num momento próximo a uma situação-limite – pois é disso que nos aproximamos – pode ser levado em conta isoladamente.

3 comments:

Ivan Hegen said...

A resposta está no próprio texto: "Temos visto que não existe mais esquerda e direita, a dicotomia presente em todo século passado; mas também que é cada vez mais difícil situar o que está dentro e o que está fora do que anteriormente se entendia por 'sistema'."

O próprio título não te sugere que não estou tomando partido de nenhum dos extremos?

Anonymous said...

Ivan, maravilhoso seu texto! Entretanto, cabe uma pequena discordância de minha parte: a "elite branca" decerto percebe e muito bem sua parcela de culpa, entretanto jamais vai assumi-la. Isso seria dar respaldo a uma avalanche de críticas e, porque não, ações contra essa política de exclusão a que somos submetidos diariamente. Eles percebem, mon cher, pode ter certeza disso... ;) Bjokas!

Ivan Hegen said...

Oi, Bel!
Você será sempre bem-vinda nestas paragens, acho que a gente concorda em muitas coisas.

Sobre a ressalva, não tenho dúvidas quanto a eles perceberem o estrago que fazem. Mas insisto que eles não percebem muito bem o quanto também se fodem com isso (desculpa a palavra, mas não tem muito o que maquilar por aqui). Mesmo Higienópolis, que é um bairro de elite de são Paulo, deixou de ser seguro para as madames passearem com seus cãezinhos, e tornou-se uma das regiões com mais assaltos na cidade. Se tivessem uma mentalidade menos imediatista, teriam muito mais sossego e desfrutariam melhor de sua fortuna. Mas não. Preferem matar a gansa do ovos de ouro e afundar junto, por pura estupidez.