8.02.2009

Mordendo a língua

Mordo a língua. Mas o gosto do sangue é adocicado. Depois de tantos combates, tenho maior clareza do que eu sentia pelo inimigo. Melhor admitir que desde cedo eu me inclinava para a dentada. Mordo a língua, porém sem me trair, pois é da linguagem, e não do músculo, que estou falando. De qualquer modo, não era apenas repúdio o que guiava meus ataques à arte pós-moderna. Entendo que havia, simultaneamente, uma atração. Uma proximidade com o limite, com o momento em que a linguagem se contorce sobre si mesma. Ficou muito claro, para mim mesmo, a partir do último conto que escrevi, Esquizóide, publicado no Portal Stalker. O personagem passa a suspeitar que é um personagem, ele se pergunta o que pode haver além do espaço metafórico onde está inscrito. A ficção refletindo sobre si mesma. Como num Mito da Caverna invertido, o personagem, de formas ideais, tem sua origem no mundo imperfeito do autor. É a partir de dentro que o pacto ficcional sofre um abalo e o espaço da arte se revela em seu processo, perdendo sua realidade autônoma. Basta isso para se chegar muito perto do instante da Morte da arte - embora meu convite seja para olhar a margem do abismo, não para se atirar.

Não acho que todos os artistas contemporâneos entendam a diferença entre olhar para a morte sem medo e cometer de fato o assassinato (ou o suicídio). Meu reconforto é compreender que não estou agindo como mera contraparte, minha ação não é mera reação. Poupando o dinheiro do analista: não era só pelo poder do inimigo que eu me chocava com a morbidez de seus discursos, tinha a ver comigo mesmo. Era urgente discernir o que os antiartistas faziam e o que eu mesmo pretendia fazer. A diferença é enorme, embora tenha sido muito complicado entender qual era, e a confusão tenha me levado a muitas dúvidas quanto ao meu próprio trabalho. Quanto à estupidez de alguns deles, mantenho o que eu disse antes, até com maior convicção, de que denigrem não só a arte como a vida. Os argumentos estão no Crepúsculo de Paradigma e em outros artigos, não preciso repetir. Acrescento apenas que se eles não existissem, teria sido mais simples, porém a partir do momento em que eles fizeram um estrago enorme, precisei quebrar a cabeça. O que teve seu lado bom, me forçou a pensar a arte até o fim (até a "morte"). Foram anos até entender como levar a linguagem tão longe quanto eu queria sem incorrer nos erros deles - na quase literal Morte da arte, para resumir. Fico aliviado em perceber que não era tanto por eles que eu estava obcecado. Seria impossível continuar testando limites em meu trabalho se eu não compreendesse onde traçar minha bifurcação e escapar das armadilhas.

Desde meu primeiro livro, que comecei a escrever aos 17 anos, muita vezes estive próximo da destruição do espaço ilusório. Alguns de meus contos brincavam com os sinais gráficos, como em O homem que de fato morreu, onde um ponto final se converte em formiga esmagada; ou em Neurocirurgia, onde a linguagem da narrativa se desagrega em meio a um surto psicótico do protagonista. Foram coisas que escrevi por instinto, não conhecendo praticamente nada das teorias pós-modernas. Em Puro enquanto, já consciente dos debates atuais, o que coloco em cena é justamente o embate entre ilusão e realidade. No romance, a linguagem fragmentária é a de alguém em coma, tentando despertar porém demasiado fascinado pelo mundo dos sonhos (ou da arte). Porém, mesmo explorando tensões, a busca pela riqueza estética deixa poucas dúvidas quanto minha crença na força da fantasia. Com este último conto, Esquizóide, mais explícito na auto-referência, estão acentuados os vetores contraa ilusão. É algo que só interessa se você tiver uma boa noção de até onde a ilusão resiste. Se sacudimos a arte, podemos trazê-la mais perto de nós. Se ela passar por algumas provações, nos parecerá mais forte, interagindo com maior proximidade.

De modo geral, acho que os escritores contemporâneos souberam não arruinar a literatura, ao passo que muitos artistas visuais se esforçaram para realmente impossibilitar a arte. Muitos dos mais jovens têm outra pegada, mas ainda vemos retardatários. Minha maior dúvida, hoje, é se as especifidades da arte visual eram tais que a antiarte seria inevitável (por questões históricas, econômicas, do suporte, etc). Se comparo com o que houve na literatura, a tentação é a de dizer que nem seria preciso teoria pesada para evitar o sangramento: a intuição mesma
poderia dar conta. Bastaria não confundir a auto-mutilação dos penitentes com a ousadia dos aventurosos. Os escritores souberam roçar o limite sem esgarçá-lo (mesmo porque, se você leva ao esgarçamento, algo se afrouxa). Contudo, se eu, que detestava a antiarte, levei dez anos para traçar a diferença, acho que nas artes plásticas estava mais difícil de percebê-la do que na literatura. De fato pareceu que para ampliar o campo da arte, seria preciso matá-la, e também eu estive confuso quanto a avanços e recuos.

Em muitos momentos, um verdadeiro espírito livre precisa testar um limite, e se sentirá um covarde se não o fizer. Cravar os dentes nas palavras em fluxo, ou sentir na boca o sabor das tintas. Um artista ou um escritor pode morder a língua sem que o gosto sutil de sangue cause grande mal. O sangue só será amargo se jorrar demais e atravancar a fala. Agora mordo a língua e a sinto doce.

3 comments:

Su said...

= )

Sabe o que achei? Very cute! To meio girlie hoje, né? mas gostei.

bjinho

Ivan Hegen said...

Su

Enquanto for "cute" e não "kitsch", não vou tomar como ofensa

beijo

Anonymous said...

o que eu estava procurando, obrigado