1.13.2009

Telma

A Telma foi ótima, a ponto de me deixar mal acostumado. Me tirou do pântano emocional em que eu me afundava, no momento em que a lama já batia no nariz. Forte o bastante para me puxar para fora, quem mais poderia? Ela gostava de me morder a mão, a qualquer hora do dia me deixava sulcos avermelhados. Meu maior gesto de carinho era deixar ela imprimir essa marca na pele, e era bom, me ajudava a despertar. Alguns amigos a chamavam de Tiranossauro Rex por essa mania. Talvez também pela cabeça grande, que abriga um cérebro potentíssimo. Nietzsche, que adotei como pai, foi ela quem me apresentou. Estudou alemão só para ler o bigodudo no original, e o mais incrível é que revezava Gott ist tot com bruxaria, desobedecendo tanto o Cristo quanto o Anticristo. Ela tinha poderes, eu vi de perto.

Sentíamo-nos especiais juntos, o resto do mundo poderia se foder, nós nos entendíamos. Tínhamos nossa própria linguagem, criávamos nossas palavras, nossos jogos, nossa filosofia. Dois esculachados que, à beira da derrota, ainda insistiam, ainda queriam rir, e, entre altos e baixos, ao menos buscavam converter as mágoas em força. Ninguém vinha nos tratando bem, nem família nem amigos, muito menos o que podemos chamar de sociedade. É preciso admitir, a tragédia nos unia, aproximávamo-nos porque ameaçados. Nossas mãos estreitas uma na outra, mas o toque frio da escuridão nos antecipava. Fortalecíamo-nos juntos, precisávamos um do outro.

Mas não sei se eu soube ser tão bom para ela quanto ela para mim. Ela me salvou. Sem ela eu estava desmoronando, ela me salvou com seus beijos, seus seios, seu vampirismo, sua fé, seus alfinetes, seu feitiço, e, é claro, com um amor tão honesto que não sei se fruto de sabedoria ou de desespero, apenas que jamais tive semelhante. Nunca mais a mesma confiança, onde nosso melhor e nosso pior eram inconsúteis, onde até as mordidas eram carinho. Nossas palavras eram afiadas - podiam ter seu veneno, mas o sabor de fundo era doce, sempre.

Tudo o que tenho de Telma hoje são lembranças, além de uma ou outra foto. Espero que ela não se importe por eu contar, mas a foto não exponho: gosto muito de lembrar do que fizemos em nosso primeiro fim de semana na praia, com um apartamento todo só para nós. Bem mais novos, ainda não tínhamos intimidade com nossos corpos, sentíamo-nos inexperientes e cautelosos um com o outro. Eu havia entrado há pouco na faculdade de artes plásticas e, em parte porque os tímidos precisam de pequenos delírios, não resisti ao impulso criativo. Peguei uma caneta, comecei a rabiscar seu corpo. E conforme as linhas ganhavam espaço por seus braços e suas pernas, as peças de roupa foram ficando para trás. Eu desenhava pacientemente, adiando o momento de possuí-la, tentando surpreendê-la com um pouco de imaginação. As linhas contornavam seus seios, faziam volutas pelo umbigo, num movimento contínuo que de quando em quando emergia em uma figura (um sol, uma flor, uma espada, um rosto). Depois deixei que ela mesma me rabiscasse à vontade, e em pouco tempo estávamos os dois nus. O encontro dos nossos corpos foi uma continuação natural do jogo, que não foi tanto uma preliminar para aquela noite de amor em especial, mas uma preliminar para toda a entrega que teríamos por mais três anos.

Não sou ingrato com quem me fez bem, quero mais que ela seja feliz com seu filho, com seu marido, com sua vida encaminhada. Estou certo de que terminamos quando chegou o momento de terminar, quando cada um tomou um rumo que divergia do outro. Tento não pensar muito nela, já faz tempo, me apaixonei outras vezes, conheci outros momentos intensos. Mas, quando tenho recaídas piegas e escrevo sobre amor, é, em boa parte, porque junto à Telma eu aprendi um amor que atende ao que entendo por verdadeiro. Podíamos ser nós mesmos, sem disputas de poder, sem dissimulações, e ainda assim, quase uma contraparte um do outro. Não estou certo de que viverei algo parecido novamente. Começo a sentir que meu maior erro tem sido buscar o mesmo em um outro tempo e com outras mulheres. Nem sequer por ter sido maravilhoso devo me prender às mesmas expectativas. O que me interessa agora é continuar aprendendo e desaprendendo até o fim dos meus dias.

4 comments:

Ivan Hegen said...

Ano novo, vou tentar coisa nova e ver se dá certo.
Vou liberar os comentários por um tempo. Se me atrapalhar muito, eu fecho, mas espero que role.

Terminando o teste, eu explico essa minha crueldade de não deixar vocês comentarem. Ainda não expliquei direito, vocês vão achar esquisito quando eu falar. Na... nem adianta tentarem adivinhar, depois eu conto.

Mas agora que tá aberto, podem fazer o que quiserem com esse espaço. Podem filosofar, poetar, punhetar, pichar, o que for.

Abraços!

Anonymous said...

Ivan, tava mesmo na hora de você abrir pra comentarios. Eu gosto dos seus textos, senão nao estaria aqui, mas acho uma contradição voce procurar ter a mente aberta no que voce escreve, mas permanecer fechado à discussão com os outros. Eu dou aula há alguns anos, acho que se eu apenas jogasse o conteúdo, por melhor que fosse, eu jamais poderia me considerar um bom professor. É na medida que ouço os outros que me aprimoro como comunicador e como ser humano.
No mais, desejo sucesso, e que você continue escrevendo com independência.

Anonymous said...

Ivan, você é tão esquisito que fica difícil saber o que comentar.
Mas, por favor, não fique bravo, encare isso como elogio. =)

Beijo, parabéns pelos textos!
E um beijo pra Telma também!

Ivan Hegen said...

Su, você pensou que eu ficaria bravo? Eu tenho carinho pela maior parte das minhas esquisitices.

Marcelo, acho que por um tempo foi bom ficar na minha mesmo, sem prestar atenção no que os outros iriam pensar. Por outro lado, você tem sua razão, pode mandar seus recados quando quiser que eu tô ouvindo.