9.29.2009

Incognoscível

Hilda Hilst: "você está se esquecendo do incognoscível. O incognoscível? É, velho Ruiska, não se faça de besta. Levanto-me e encaro-o. Digo: olhe aqui, o incognoscível é incogitável, o incognoscível é incomensurável, o incognoscível é inconsumível, é inconfessável. Ele me cospe no olho, depois diz: ninguém está te mandando escrever sobre o incognoscível, estou te dizendo não se esqueça do incognoscível. Ah, está bem. Finjo que entendo. Ou entendo realmente que não devo esquecer do incognoscível?"

Meu primeiro livro se chama A grande incógnita. O conto que dá o título foi escrito em 1997, e de lá para cá eu passei por algumas experiências que vêm desafiando minha vã filosofia. Em 1997, sequer um deus espinosiano, que não guarda qualquer resquício de religião, poderia me causar mais do que bocejos, apesar de eu devorar Clarice Lispector, que desde sua estreia enveredava por uma espiritualidade um tanto maldita com forte inspiração em Espinosa. De Clarice, eu sorvia a força das palavras, mas entendia suas aleluias e epifanias de maneira bem cética, materialista.

Cresci sob um ateísmo imperturbável, que me permitia dormir tranquilo mesmo após entrar em igrejas falando palavrão. Tamanha era a minha certeza de que a metafísica é mera ficção que eu me divertia provando que o trono de Deus é vazio, e blasfemava em seus palácios. Não creio que sequer em um nível inconsciente me senti muito culpado por isso, de tão convencido eu estava de que não há governo superior ao dos homens. A Grande Incógnita aborda reencarnação, no entanto nem por um segundo me pareceu que a metafísica pudesse ser mais do que um belo conto. Uma amiga espírita leu a história e disse que não era muito condizente com a doutrina de Allan Kardec, mas não era essa minha intenção. E até que eu me pus à prova: a convite de amigos, tomei o chá do Santo Daime, três ou quatro vezes. De todas as visões que eu tive, nada me pareceu exigir explicações que fugissem da psicologia. Ao longo desses anos, fui anotando meus sonhos, porém, mesmo que eu procurasse, não encontrei muito o que justificasse o simbolismo de Jung ou explicações transcendentais. Um ou outro episódio, confesso, me deixou intrigado, mas as pistas falsas eram abundantes.

Talvez eu fosse, desde o início, e ainda hoje, mais agnóstico do que ateu. A rigor, o agnosticismo é uma posição mais científica do que o ateísmo, pois não se pode provar a inexistência de Deus. O que se pode - ou melhor, se deve - é contestar a convicção dos fanáticos, que vomitam dogmas sem qualquer evidência de que agem seguindo a Verdade. O mais engraçado é que, onde procurei com maior afinco, nada encontrei. Talvez porque eu procurasse para não achar - onde tantos pensam ver Deus, só percebi a imaginação dos homens. No entanto, pegando-me desprevenido, de quando em quando me acontecem situações como a do Daniel Seda, cujo e-mail eu transcrevi no último post, e quem eu conheci na semana passada.



Antes de falar dessa coincidência tão improvável, vamos combinar uma coisa. Não quero que ninguém acredite em mim só por voto de confiança. Se eu contar com algo tão insólito quanto a fé, valho tanto quanto um padre, e poucas coisas causam mais sofrimento no mundo do que os dogmas. Quero que cada um tenha fé em si mesmo, acima de qualquer autoridade ou qualquer palavra. Quem me lê deve ter fé em si mesmo mais do que em mim, portanto deve guardar uma dúvida, deve perguntar se eu não estou louco, ou se não foi tudo armado entre mim e Daniel Seda. Quanto a mim, venho preferindo fazer como o Ruiska de Hilda Hilst. Tenho lidado com o incognoscível como inconfessável, não me esquecendo dele mas raramente falando abertamente sobre.

Não sei ao certo sequer se eu deveria ter colocado o e-mail do Seda no ar. Em primeiro lugar porque é inconsumível - vide o silêncio nos comentários, apesar da boa visitação. E principalmente porque não consigo juntar o que penso sobre "metafísica" e os demais assuntos que me interessam, de arte à política. O Daniel é bem diferente de mim nesse aspecto: ele fala de telepatia sem muitos rodeios, vendo na internet um potencializador desses fenômenos e um prelúdio para uma sociedade mais igualitária. Pelo que me diz, ele vê tal potencial de maneira semelhante ao que eu descrevi no Será. Claro, ele sabe que, se eu escrevi A grande incógnita sem intenção de divulgar Kardec, também não escrevi Será para ser lido ao pé da letra. "Será", em ficão, deve ser lido como "Seria", do contrário não se defenderia a distância necessária entre arte e vida. Contudo, a aproximação entre Seda personagem e Daniel mostra até que ponto o diálogo entre as duas instâncias pode ser dinâmico e estreito. Não apenas a maneira como Daniel chegou até o livro, relatada no e-mail, mas certas semelhanças de nossas trajetórias surpreendem. Também ele se formou em artes plásticas mas tem se aproximado cada vez mais da literatura, buscando unir as duas linguagens. Também ele estudou Deleuze e anotou seus sonhos durante anos. E gastou horas e horas tentando imaginar como transpor um pouco da mentalidade anarquista para a realidade, sem se perder na utopia pela utopia. Se eu não fosse o próprio, acharia que esse Ivan Hegenberg batizou o personagem de Seda como homenagem, já conhecendo Daniel há tempos. Acho saudável que duvidem, mas eu não posso me dar esse luxo sem considerar que minha memória deve ter pulado alguma parte, pois não estou avisado da armação.

Não faço a menor ideia de porque atraio sincronicidades e fenômenos afins. Lembro, no entanto, que diversos escritores que se empenharam em levar a linguagem ao seu limite acreditaram tocar no incognoscível. Hilda Hilst pensava poder captar as vozes dos mortos; James Joyce se convenceu de que sua filha era telepata; Clarice falava de Deus com tão estranha proximidade que foi convidada a um simpósio sobre bruxaria; Guimarães Rosa hesitou por anos em aceitar a cadeira na Academia, como se soubesse que morreria três dias depois da honraria. Nenhum desses episódios vale como prova de nada, a não ser, talvez, de uma correlação entre uma certa compreensão da linguagem poética e uma experiência de mundo que crê ter intimidade com a "metafísica". Talvez. Há também a física quântica, que me faz a um só tempo esperançoso e cauteloso. Estou aguardando, não quero especular muito.

Ainda prefiro a ciência, gaia que seja, à fé pura e simples. Em poucos anos, o acelerador de partículas de Genebra ajudará a explicar os fenômenos não-newtonianos. Para quem não sabe, na física de partículas observam-se situações tão desnorteadoras que teorias como dimensões extra ou a simultaneidade entre passado, presente e futuro são consideradas com a maior seriedade. Há também quem esboce uma correspondência profunda entre matéria e informação, para não falar em teorias mirabolantes como as divulgadas no esquisitíssimo Quem somos nós?. Estima-se que em dois ou três anos, teremos algumas respostas para essas questões. Já imaginou o incomensurável tornando-se comensurável?

Tudo isto é tão confuso para mim quanto pode ser para os leitores, mas estava difícil passar para qualquer outro assunto enquanto o e-mail do Daniel ficasse flutuando sem reflexão. Agora, até mesmo pela incapacidade de avançar nesses mistérios, vou voltar à programação "normal".

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