Pela terceira vez o ombudsman, Marcelo Beraba, aprovou um texto meu, mas a Folha rejeitou por falta de espaço. Até aí, tudo bem. O que me aborrece é eu passar pelos crivos mais exigentes e não ser chamado nem para a Folha Trainee. Paciência. Ao menos o texto está aqui, para quem quiser ler.
Tamanha é a falta de opção satisfatória no processo eleitoral deste ano, que muitos se sentem tão céticos quanto, em 1899, sentia-se diante de Marechal Deodoro da Fonseca. Naquela ocasião, o sentimento popular, de maneira geral, foi de enorme descrença quanto à promessa de participação nas questões políticas. Não houve muito entusiasmo por parte do povo com a deposição de Pedro II, talvez devido a uma intuição, não totalmente enganada, de que a democracia não diminuiria de fato a distância entre governantes e governados.
Durante o século XX, foi crescendo o anseio por um Estado que solucionasse os problemas do país, e após experiências as mais variadas – a introdução do populismo por Getúlio, o projeto de JK de ocupação e unificação do território, a opressão da ditadura militar, o alívio do retorno às diretas, um impeachment por corrupção, um ex-operário que assume a presidência – chegamos a 2006 com uma pulga enorme, das mais molestas, atrás de cada uma das orelhas.
Apesar da posição que tais pragas ocupam em nossas cabeças, não convém falar em um antagonismo, na atual disputa, entre “esquerda” e “direita”. Aliás, qualquer polaridade se mostraria ilusória, desde que aqueles que tanto criticavam o neoliberalismo passaram a adotá-lo, ou desde que nenhum dos grandes partidos consegue falar em ética e honestidade sem que isto soe ridículo, mero jogo de palavras que só convence aos mais ingênuos. O clima de ceticismo entre eleitores bem informados só pode ser comparado à apatia com que se viu, no final do século XIX, o marechal apresentar-se presidente, distante e alheio aos eleitores, com pompa de imperador. Contudo, até a década passada, a política esteve presente, bem mais próxima, nos corações dos brasileiros “de esquerda” – quando esta aparentemente existia.
Lembro-me do romantismo com que eu acompanhava minha mãe, muito menino, a fazer boca-de-urna na porta dos colégios eleitorais. Íamos munidos com bottons, adesivos, bandeirinhas, e exaltávamos um partido que defendia os trabalhadores, que combatia a corrupção, cujos líderes desejavam um país mais justo. Os confrontos eram apaixonados: militantes da causa “Rouba mas faz” tinham tanta garra quanto nós, e a pequena criança tímida que eu era se sentia vivendo um momento decisivo, gritava o nome do partido. Agitavam-se com a mesma intensidade bandeiras aliadas e adversárias, e ao acreditar nos candidatos que julgávamos os mais justos, sentíamo-nos parte de um belo ideal coletivo.
As cenas de que me lembro com mais cores remetem-se há dez ou quinze anos atrás. O contraste com o momento atual é avassalador. Foi com desânimo que me encaminhei no primeiro turno para a zona eleitoral. Os amigos que tradicionalmente votavam na esquerda se mostravam igualmente desconsolados. Nesse percurso, não pude deixar de levantar uma série de questionamentos.
Seria mesmo possível um partido político que se nutrisse de utopias, ou era desde o início sonho de criança? Devemos chamar as transformações ocorridas no PT de traição e desvio, ou foram exigências de uma realidade mais complexa do que se supunha? Ou não convém esperar mais daqueles que estão hoje no poder, pois são seres humanos, e como tais corruptíveis? A democracia é mesmo a melhor forma de governo? O voto nulo funciona como protesto ou na prática é conivência? E, talvez o ponto crucial: os melhores dentre os homens saberiam resistir às tentações do poder, e se sairiam bem e com maior competência, ou é ingenuidade manter tamanha vontade de pureza em nossas idealizações?
Por mais que pareça tarefa impossível, dadas as afeições que carregamos ao longo dos anos, eu gostaria de ser racional e ponderado em meu julgamento, no momento de voltar às urnas para um segundo turno. Quero estar, ao menos, acima dos preconceitos tanto do “petismo até a morte” quanto do “anti-petismo fanático”, duas cegueiras demasiado parciais. O eleitor que tenha aprendido com a experiência irá decidir, neste ano, não apenas aquilo que considera mais interessante para si e para o país, como também assinalará qual sua posição diante do que os aspectos mais ásperos que a realidade tem revelado.
Tenho bem claro para mim que não há saída incólume.
10.26.2006
10.23.2006
Altos e baixos da 27a Bienal
Saiu no Cronópios: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1850
Não há a menor dúvida de que esta é a edição mais politizada que já houve, dentre todas, da Bienal de São Paulo. Curada por Lisette Lagnado, “Como viver junto”, que sucede ao “Território livre” de Alfons Hug, é direcionada para o engajamento em problemáticas sociais e para a crítica à arte como mercadoria. Duas referências balizaram tanto o espaço expositivo como as proposições teóricas: Roland Barthes, de quem se tomou emprestado o título da mostra, e Hélio Oiticica, cujos conceitos de ambiente e de interação com o espectador se estenderam por todo o pavilhão. De modo geral, foi retomado muito do que se pensou nos anos 60 e 70 quanto ao papel do artista na sociedade.
Bem prevenido, portanto, estará aquele que não buscar belas pinturas e esculturas no prédio da Bienal. A concepção da curadoria é a da dissolução da arte na vida, e portanto, uma certa renúncia ao objeto artístico enquanto tal. O mais próximo que se chega de um apreço pela beleza pictórica é diante de Mustafa Maluka, sul-africano longe de ser um pintor excelente, que nos chama a atenção para esquecidos heróis negros com alguma vivacidade na paleta. Já as esculturas abstratas de León Ferrari são o mais próximo que se chega de um deleite com a forma pela forma, apesar de na mesma sala se encontrarem peças suas que ironizam o patriotismo e a religião. Ou seja, querendo ou não, a Bienal deste ano não permite uma atitude meramente contemplativa.
Verdade seja dita que toda arte é política. Toda arte é humana, e o animal humano é intrinsecamente político. Esta Bienal pode ser uma das melhores oportunidades para julgar se é ou não interessante uma opção explícita pela arte militante, engajada, em detrimento do apelo eminentemente estético. Para ser justo com a curadoria de Lisette, é preciso ver os altos e baixos com imparcialidade.
Há alguns momentos em que se consegue conciliar o “politicamente correto” com poesia. É o caso das vestimentas de vinil de Laura Lima, que recuperam Hélio Oiticica e a noção do espectador como parte da obra. São belas, também, as fotos de Guy Tilim e de Miki Kratsman, por mais tensos que sejam seus cenários – respectivamente, África e Tel Aviv. È lindo o resultado estético da proposta de Antoni Miralda, que dividiu a autoria do seu trabalho com centenas de brasileiros anônimos, oriundos de diversas capitais, que decoraram os pratos de comida cada um a seu gosto. Funciona muito bem o laboratório de Wang Youghen, que em vez de nos apresentar peças com o aviso “Não toque”, permite ao visitante revelar fotos na sala escura. Vale conferir, igualmente, Narda Alvarado, que criou cartões inteligentes e bem-humorados. Quanto a Marilá Dardot respondeu perfeitamente à proposta de “viver junto”, e encorporou com graça, em seu espaço, obras de outros artistas. E de Gordon Matta-Clark, suavemente delinquente, reuniu-se diversos trabalhos instigantes.
É difícil determinar o quanto esses artistas efetivamente transformam a sociedade. Ao menos são capazes de nos proporcionar experiências ricas, e isso, por si só, é inestimável. Bem mais duvidoso, infelizmente, é o caráter da maior parte das obras expostas, que se sustentam muito mais através de discursos do que como presença ou fruição autêntica. Abundam projetos para renovação urbana, slogans contra todo tipo de injustiça, a afirmação dos humildes contra os poderosos e a crítica à arte e ao espaço expositivo. Há algo nos pavilhões da Bienal que lembra muito o horário político na televisão. São propostas, promessas, sonhos embalados em uma estética que, no fundo, não diz muito mais que a dos candidatos partidários. “Acredite nisto, eis aqui a bondade, a honestidade, a maneira correta de se fazer um mundo melhor.”
A demagogia, ao que parece, deve ter sido um dos critérios de seleção para Lisette e, na maior parte do tempo, o resultado é enfadonho. “Eu conjugo o conceito do artista propositor com a missão pedagógica da Bienal: vamos tomar a questão educativa como plataforma essencial. Talvez seja possível falar em um artista educador” nos diz a curadora. Com isso, a exposição em seu conjunto adquire um cunho didático. Lamentavelmente, não se trata sequer de uma aula de estética, de semiótica ou de filosofia. Está mais para uma visão restrita e ingênua de geopolítica, algo tão pouco abstrato que mal colabora com o trabalho de um bom professor.
Não cabe aqui citar os destaques negativos, pois a insuficiência da proposta é o que chama a atenção, mais do que seis ou sete nomes que choquem pela baixa qualidade. A maioria dos artistas em exposição apresenta uma leitura do tema “viver junto” que falha por não abarcar a individualidade, inelutavelmente precedente a qualquer interação ou co-existência. O erro foi não terem refletido o quanto a convivência é um problema bem mais intricado, sutil e profundo do que se possa abranger com posicionamentos pré-fabricados. Uma constatação é a de que a opção pelo pensamento de Oiticica, em vez de libertadora, neste caso foi aprisionante. Não é de se surpreender, pois o que funcionou com naturalidade para Hélio não necessariamente funciona para um cenário artístico completo, com mais de cem propositores envolvidos.
Para finalizar com uma nota mais otimista, fica aqui registrado o melhor momento da 27a Bienal, a obra da cubana Ana Mendieta. Seu trabalho é ao mesmo tempo forte e sensível, tomando o corpo humano como um lugar vazio em busca de preenchimento. No deserto do Novo México, ela cava silhuetas de seu corpo na terra, e através de performances tão simples quanto viscerais, estabelece um intenso diálogo entre homem e natureza. Está muito longe de ser um trabalho literal, panfletário, e nem por isso deixa de ser político – é certamente uma demanda, por uma vida mais plena, como toda grande obra de arte.
Não há a menor dúvida de que esta é a edição mais politizada que já houve, dentre todas, da Bienal de São Paulo. Curada por Lisette Lagnado, “Como viver junto”, que sucede ao “Território livre” de Alfons Hug, é direcionada para o engajamento em problemáticas sociais e para a crítica à arte como mercadoria. Duas referências balizaram tanto o espaço expositivo como as proposições teóricas: Roland Barthes, de quem se tomou emprestado o título da mostra, e Hélio Oiticica, cujos conceitos de ambiente e de interação com o espectador se estenderam por todo o pavilhão. De modo geral, foi retomado muito do que se pensou nos anos 60 e 70 quanto ao papel do artista na sociedade.
Bem prevenido, portanto, estará aquele que não buscar belas pinturas e esculturas no prédio da Bienal. A concepção da curadoria é a da dissolução da arte na vida, e portanto, uma certa renúncia ao objeto artístico enquanto tal. O mais próximo que se chega de um apreço pela beleza pictórica é diante de Mustafa Maluka, sul-africano longe de ser um pintor excelente, que nos chama a atenção para esquecidos heróis negros com alguma vivacidade na paleta. Já as esculturas abstratas de León Ferrari são o mais próximo que se chega de um deleite com a forma pela forma, apesar de na mesma sala se encontrarem peças suas que ironizam o patriotismo e a religião. Ou seja, querendo ou não, a Bienal deste ano não permite uma atitude meramente contemplativa.
Verdade seja dita que toda arte é política. Toda arte é humana, e o animal humano é intrinsecamente político. Esta Bienal pode ser uma das melhores oportunidades para julgar se é ou não interessante uma opção explícita pela arte militante, engajada, em detrimento do apelo eminentemente estético. Para ser justo com a curadoria de Lisette, é preciso ver os altos e baixos com imparcialidade.
Há alguns momentos em que se consegue conciliar o “politicamente correto” com poesia. É o caso das vestimentas de vinil de Laura Lima, que recuperam Hélio Oiticica e a noção do espectador como parte da obra. São belas, também, as fotos de Guy Tilim e de Miki Kratsman, por mais tensos que sejam seus cenários – respectivamente, África e Tel Aviv. È lindo o resultado estético da proposta de Antoni Miralda, que dividiu a autoria do seu trabalho com centenas de brasileiros anônimos, oriundos de diversas capitais, que decoraram os pratos de comida cada um a seu gosto. Funciona muito bem o laboratório de Wang Youghen, que em vez de nos apresentar peças com o aviso “Não toque”, permite ao visitante revelar fotos na sala escura. Vale conferir, igualmente, Narda Alvarado, que criou cartões inteligentes e bem-humorados. Quanto a Marilá Dardot respondeu perfeitamente à proposta de “viver junto”, e encorporou com graça, em seu espaço, obras de outros artistas. E de Gordon Matta-Clark, suavemente delinquente, reuniu-se diversos trabalhos instigantes.
É difícil determinar o quanto esses artistas efetivamente transformam a sociedade. Ao menos são capazes de nos proporcionar experiências ricas, e isso, por si só, é inestimável. Bem mais duvidoso, infelizmente, é o caráter da maior parte das obras expostas, que se sustentam muito mais através de discursos do que como presença ou fruição autêntica. Abundam projetos para renovação urbana, slogans contra todo tipo de injustiça, a afirmação dos humildes contra os poderosos e a crítica à arte e ao espaço expositivo. Há algo nos pavilhões da Bienal que lembra muito o horário político na televisão. São propostas, promessas, sonhos embalados em uma estética que, no fundo, não diz muito mais que a dos candidatos partidários. “Acredite nisto, eis aqui a bondade, a honestidade, a maneira correta de se fazer um mundo melhor.”
A demagogia, ao que parece, deve ter sido um dos critérios de seleção para Lisette e, na maior parte do tempo, o resultado é enfadonho. “Eu conjugo o conceito do artista propositor com a missão pedagógica da Bienal: vamos tomar a questão educativa como plataforma essencial. Talvez seja possível falar em um artista educador” nos diz a curadora. Com isso, a exposição em seu conjunto adquire um cunho didático. Lamentavelmente, não se trata sequer de uma aula de estética, de semiótica ou de filosofia. Está mais para uma visão restrita e ingênua de geopolítica, algo tão pouco abstrato que mal colabora com o trabalho de um bom professor.
Não cabe aqui citar os destaques negativos, pois a insuficiência da proposta é o que chama a atenção, mais do que seis ou sete nomes que choquem pela baixa qualidade. A maioria dos artistas em exposição apresenta uma leitura do tema “viver junto” que falha por não abarcar a individualidade, inelutavelmente precedente a qualquer interação ou co-existência. O erro foi não terem refletido o quanto a convivência é um problema bem mais intricado, sutil e profundo do que se possa abranger com posicionamentos pré-fabricados. Uma constatação é a de que a opção pelo pensamento de Oiticica, em vez de libertadora, neste caso foi aprisionante. Não é de se surpreender, pois o que funcionou com naturalidade para Hélio não necessariamente funciona para um cenário artístico completo, com mais de cem propositores envolvidos.
Para finalizar com uma nota mais otimista, fica aqui registrado o melhor momento da 27a Bienal, a obra da cubana Ana Mendieta. Seu trabalho é ao mesmo tempo forte e sensível, tomando o corpo humano como um lugar vazio em busca de preenchimento. No deserto do Novo México, ela cava silhuetas de seu corpo na terra, e através de performances tão simples quanto viscerais, estabelece um intenso diálogo entre homem e natureza. Está muito longe de ser um trabalho literal, panfletário, e nem por isso deixa de ser político – é certamente uma demanda, por uma vida mais plena, como toda grande obra de arte.
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