12.20.2009

Mosquitos e Berlusconi

Pelas minhas contas, no último mês matei uma média de 2,3 mosquitos por dia. Confesso que sinto orgulho desta marca e que é com muita felicidade que encerro a vida dos chupadores de sangue. Os jainistas se recusam a tirar a vida de qualquer criatura, por mais insignificante ou irritante que seja, mas nem com a mais profunda meditação eu suportaria insetos zumbidores. Também não há consciência ecológica que supere a emoção de ver que o tapa foi certeiro, que o bicho aprendeu que há alguma distância entre homem e artrópode.

Mas e quanto a chupadores de sangue maiores e mais perigosos, tal como Berlusconi, primeiro ministro italiano? Todos devem ter visto, na televisão ou na internet, a porrada que ele tomou de Massimo Tartaglia. A imprensa se apressou a desconsiderar o gesto de Tartaglia como ato político, devido a seu histórico psiquiátrico. Na verdade, a imprensa está sempre esperando uma oportunidade para igualar ativismo e insanidade, e não perderia essa. Não estou defendendo o gesto de Tartaglia, logo mais digo por que, mas acho que há muita ignorância em pressupor que quem busca tratamento psiquiátrico não possa ter opiniões sobre a maneira como seu país é conduzido. Há nuanças para a loucura, nem todos os casos são extremos a ponto de não restar juízo crítico. Meus pais militaram pelo movimento antimanicomial, justamente para contestar ideias como essa. Artaud e Van Gogh foram internos e criaram obras brilhantes. E ninguém aí leu O alienista? Na minha opinião, o melhor conto de Machado de Assis.

Pesquisando um pouco na web, vemos que Tartaglia era um artista. Apesar de não muito conhecido, ele teve inteligência o bastante para criar o que chamou de music picture, quadros cujas cores e formas mudam de acordo com os sons. Eu, como quase ninguém, jamais tinha ouvido falar nele antes, mas aí abaixo está a reprodução de uma obra sua, onde podemos ver dispositivos eletrônicos para acender as luzes. Não parece uma obra-prima, ele não é um Van Gogh contemporâneo, mas vale como prova de que ele não era de todo alienado.



Tartaglia não é o único que sentia vontade de dar um murro no mais polêmico e autoritário governante que a Itália viu desde Mussolini. Não é à toa que, logo após seu ataque, surgiram fã-clubes seu no Facebook com milhares de adeptos. Berlusconi é acusado de corrupção, é conhecido por comentários racistas e machistas, tem exercido a censura, tem sido um rolo compressor contra os imigrantes, para não falar na confissão de mafiosos, alegando que têm envolvimento direto com ele. Com uma fortuna de US$ 20 bilhões e a propriedade de uma grande emissora de TV, recursos para impulsionar a popularidade não lhe faltam, mas o homem por trás da tela não é nada agradável.

Confesso que senti um certo prazer ao ver o rosto de alguém tão detestável desfigurado pelo ódio de alguém que, se é mais louco do que nós, fez o que muitos queríamos. Podemos somar toda alegria que tive em me vingar das dezenas de mosquitos nos últimos tempos, deve ter sido esta a emoção que Tartaglia sentiu. Podem chamá-lo de louco, mas nós, os sensatos, estamos sempre apenas observando. Observamos Berlusconi tornar o mundo mais fascista, e observamos confortáveis uma reação que tentava desequilibrar a situação.

Multo bene. Eu queria falar um pouco do prazer, porque uma parte de mim quer sair por aí distribuindo porrada em todos os corruptos, manipuladores e proto-fascistas que nos sugam o sangue. Para ser ainda mais franco, não vejo até aí grandes problemas éticos, não acho moralmente "feio". Acho que o status quo, apesar de legitimado pelo pacto social, pode ser muito mais violento do que um gesto como o de Tartaglia. Dois dentes quebrados e um inchaço no rosto não são nada em comparação com a fome, a pobreza, a alienação e a perda de liberdade que Berlusconi impinge. Alguma agressividade é necessária para não se acabar exangue.

Entretanto, não necessariamente agressividade física. No fim das contas, a vingança falhou, pois a maioria dos italianos não percebe que seu primeiro ministro é um inseto asqueroso. Quase jainistas, sentem piedade por quem lhes retribui com desprezo e vileza. A popularidade do "pobre coitado" subiu sete pontos em uma semana! As pessoas fazem questão de oferecer a outra face, nem percebem de quem estão apanhando. Mesmo assim, a FAI (Federação Anarquista Italiana), se empolga, acha que vai ser ouvida e comete um atentado a bomba em uma universidade... Ninguém se feriu, mas, mais uma vez, acho que o governo pode se fortalecer com isso. As pessoas ficam assustadas, não consideram o contexto político para além do que a TV vomita, tampouco têm ímpeto revolucionário para se engajar numa luta sangrenta. O resultado acaba favorecendo quem está no poder, não tem a menor graça.

A resposta ao fascismo deve ser agressiva, porém dificilmente funcionará se escorrer sangue. O inimigo - não só na Itália - é dono da mídia. Tem se mantido no poder com a manipulação dos fatos, portanto é numa guerrilha de contra-informação que se deve engajar. Eu sinto que venho fazendo minha parte com meus textos, mas não é privilégio de escritor. Qualquer um tem capacidade para se tornar um vetor de transformação, seja através de blogs, de ativismo criativo, terrorismo poético, em conversas nos bares, corredores, universidades, em intervenções urbanas, em manifestações culturais e contraculturais, contestando tudo que nos degrada.

12.12.2009

Os dias da peste



Na ficção científica, o debate mais quente tem sido o do experimentalismo formal versus foco no conteúdo. É uma falsa oposição, mas é um tanto aborrecido notar que muitos especialistas do gênero fiquem tão tímidos diante de certos desafios, como os propostos por Nelson Oliveira em As três leis. O que Nelson vem propondo em seus artigos é extremamente alvissareiro para escritores de FC, ao menos para os que querem sair do nicho e ganhar atenção de um público e de uma crítica que ultrapassem os limites do gênero. Assim como Rubem Fonseca não é estimado apenas por fãs de romance policial, a ficção científica pode ir mais longe do que tem ido. Aliás, no exterior a sci-fi tem se repensado, o Brasil é que está atrasado - e que graça pode ter uma ficção especulativa que não olha para a frente? Olhar para a frente não significa pegar 1984 e jogar para 2084 - também pode ser, mas há outros links a se fazer.

Sob o pseudônimo de Luiz Bras, Nelson aponta que a literatura mais aceita pela crítica, herdeira de Clarice, Guimarães ou do mesmo Rubem Fonseca, tem se repetido demais. Por maior que seja o apuro formal dos escritores contemporâneos, estes têm sido pouco inovadores, especialmente no conteúdo. Podem monopolizar os elogios dos críticos com uma escrita consciente e madura, porém têm propiciado inevitáveis sensações de déjà vu. A ficção científica, por outro lado, sempre se esmerou pela inteligência inventiva, lidando com um vasto repertório de possibilidades narrativas. O conteúdo tem sido o forte da sci-fi; a forma, o triunfo da literatura considerada "séria": por que um não pode aprender com o outro?

Há resistências dos dois lados, preconceitos, posições identitárias, preguiça. Por isso que uma das minhas maiores alegrias literárias do ano foi Os dias da peste, de Fábio Fernandes. Antes mesmo de abrir o livro, a conversa que eu tive com o autor no lançamento já me sinalizou que os intercâmbios são possíveis. Leitor atento de Leminski e Borges, Fábio defendia o cuidado com a linguagem e atacava o purismo de ambos os lados. No bar da Bela Cintra, ressaltava que há tecnologia em tudo, até mesmo na camisa que vestimos, portanto, por mais humanista que se queira ser, não há como se livrar dos aparatos, recusar a ciência, ignorar as máquinas. Isto não significa que todo escritor deva escrever sci-fi ou ser expert em mecatrônica, apenas evitar a negaçao de um fato consumado. Aliás, Fábio diz estar mais interessado na reação das pessoas à tecnologia do que nos gadgets em si.



Neste exato momento, estamos recorrendo à internet. É consenso que tal ferramenta vem transformando nossa maneira de comunicar, de interagir com os outros, e consequentemente nossa maneira de pensar. Os Dias da Peste faz um excelente retrato do pensamento internético. Brincamos ao apelidar o Google de Deus, já o tomamos como uma entidade, um cérebro gigante, mas até o momento cremos tê-lo sob controle, afinal nos asseguramos de ter alma e os computadores, não. Mas por quanto tempo teremos esta certeza? As primeiras páginas do romance são a apresentação de Lucida Sanz, uma curadora que em 2109 resgata os antecedentes da chamada Convergência, a partir da qual, nós suspeitamos, a inteligência dominante passará a ser pós-humana. O que isto significa, vamos decifrando aos poucos, em notas de rodapé preparadas pela curadora. O livro se organiza em torno das anotações de Artur, blogueiro de nossos tempos, em diários virtuais que começam em abril de 2010. Artur tenta desvendar o súbito comportamento anormal que acomete os computadores de todo o planeta. Trata-se de uma peste digital com consequências caóticas - aeroportos parados, economia estagnada, população em pânico. Não parece um vírus comum, pois cada máquina responde ao usuário de maneira única, recorrendo às informações arquivadas para dialogar e pedir para não ser desligada.

Se a história avança por posts e podcasts, é pelos rodapés que compreendemos, paulatinamente, para que novo mundo apontam. Para os leitores pós-humanos de 2109, nosso presente é visto com estranhamento, pois mesmo a ideia de um mundo físico causa dificuldades de compreensão. São cômicas as interpretações não muito lúcidas desses historiadores do século XXII. Eles sofrem com as gírias, com as piadas e com as ambiguidades. Por exemplo, quando o blogueiro diz que se fodeu "em verde e amarelo", o rodapé comenta que "não foi encontrada na BioWeb nenhum registro de relações sexuais envolvendo tintas". Muito se perde, não se tem mais registro nem de Napoleão Bonaparte, embora a maior perda pareça ser a de nossa subjetividade. Estamos diante de uma nova mentalidade, mais limitada em alguns aspectos, mas turbinada em outros. Desde as vitórias de Deep Blue sobre Kasparov, os computadores nos humilham, no entanto fomos nós que os programamos, eles amplificam possibilidades de nossas próprias mentes.

Para Lucida Sanz e seus leitores, a narrativa linear é coisa do passado. Os links e o hipertexto oferecem sempre uma camada a mais, numa continuidade incessante de referências onde a obra fechada não mais se sustenta. A convergência de Fábio, vamos notando, é a do universo da ficção científica com a semiótica, ambas imbricadas em pesquisas com inteligência artificial. É difícil ler Steven Pinker (Como a mente funciona), e não concordar que a inteligência humana, até certo ponto, pode ser elucidada pela informática, pois muitos de seus processos são semelhantes. A hipótese de que um dia se possa criar máquinas com volição não é de todo fictícia, pois a linguagem humana também recorre a procedimentos que podemos considerar automáticos. Não é preciso esperar por 2019 para se inquietar com isso. Os artigos - muito bem escritos, por sinal - de Oliver Sacks também nos mostram o quanto somos maquínicos, pois basta um defeito no cérebro para fazer com que um homem não distingua sua mulher de um chapéu, não retenha memória recente ou perca completamente sua personalidade sem deixar de realizar tarefas lógicas. Onde está, portanto, a subjetividade?

Tomamos um comprimido contra a depressão e nos tornamos outra pessoa - nossa "alma" era melancólica ou tínhamos um problema na recaptação da serotonina? A ciência nos propõe questões tão ou mais perturbadoras que o existencialismo ou a psicanálise. Correr para a igreja para não enfrentá-las não nos salva dos comportamentos automáticos, apenas reforça o determinismo psíquico. O otimismo do livro - também o meu - é o de que o homem ultrapassa os aspectos artificiais da inteligência ao usar o humor, a palavra poética e ao se deixar levar pelos afetos. Contudo, do Deep Blue aos computadores "artistas" de Bill Seaman, estamos ameaçados a menos que enfrentemos nossos padrões pré-programados com uma vida criativa. A linguagem coloquial, "espontânea" de Artur é colocada sob suspeita pela lógica da inteligência artificial, no entanto esta não dá conta - os sentimentos mais simples são os mais herméticos para as Inteligências Construídas, para as máquinas que tentam inutilmente compreender o homem. Não é por exibicionismo que Foucault, Deleuze ou Umberto Eco são citados no livro, pois devemos nos preparar para desafios à nossa própria humanidade.

Entre as inúmeras citações, ganham destaque os diálogos de Artur com um escritor consagrado, Sant'Anna (livremente inspirado em Sérgio Sant'Anna). Sant'Anna não disfarça seu desprezo pela literatura de ficção científica, no que representa a opinião majoritária da academia. Artur tinha feito uma oficina literária com o mestre em sua juventude (assim como o próprio Fábio) e tenta, inutilmente, convencê-lo de que há boa sci-fi, desde que se separe o joio do trigo. São mundos distantes, Sant'Anna permanece refratário a esse universo, no entanto o blog de Artur, de maneira didática, convida o leitor a deixar de lado seus preconceitos e conhecer o que a sci-fi tem a oferecer. Os embates de Artur com Sant'Anna, me parecem, são a tentativa do próprio Fábio de ser reconhecido como escritor competente, não só entre os aficcionados pelo gênero. Não seria o primeiro brasileiro a ganhar esse status, uma vez que Bráulio Tavares, merecidamente, recebeu elogios de ninguém menos que José Paulo Paes. Em minha opinião, Os dias da peste é um livro essencial, não só para leitores de sci-fi, mas para qualquer um que acompanhe literatura contemporânea. Lamento apenas alguns falhas na edição - erros de datilografia, na cronologia e outros pequenos lapsos. Nada que não possa ser resolvido numa segunda tiragem, mas são detalhes que mereceriam melhor cuidado. No mais, torço para que o livro tenha a longevidade de muitas edições, por mais que não saibamos o que o futuro (do livro em papel, da literatura, da humanidade, das Inteligências Construídas) nos reserva.

12.06.2009

Na torcida

O Campeonato Brasileiro mais imprevisível da história bem que merecia um post bacana. O Flamengo campeão foi a cara da temporada - depois de tanto vacilo dos favoritos, tinha mais que ser um time vindo bem abaixo na classificação, desorganizado, numa escalada que, por mais meritória que fosse, deixou claro o quanto a zebra estava solta. Palmeiras, São Paulo ou Inter só não levantaram a taça porque escorregaram muito, especialmente no final. Mais surpreendente do que os tropeços bisonhos dos times favoritos, foi o Fluminense, que tinha seu rebaixamento dado como certo, mas se livrou na última rodada, após uma campanha quase milagrosa no segundo turno. Mesmo com meu time fora da dísputa, achei o campeonato mais emocionante dos pontos corridos, pela quantidade de surpresas.

Mas desculpem, não vou me estender no futebol. O assunto poderia render, mas não tô no meu melhor humor. Não só por alguns problemas pessoais, mas porque minha torcida maior, nesses dias, tem sido pela saúde do Mário Bortolotto. Ele foi baleado na madrugada de sexta pra sábado na Praça Roosevelt, reagindo a um assalto. Ele quis defender uma atriz, mas o assaltante não quis conversa, agora o Mário está internado em estado grave. O episódio todo é um saco. Eu morei por um tempo a dez minutos da Praça, sempre via o Mário lá e conversava um pouco com ele. Um cara gente boa, com fôlego para escrever, atuar, cantar blues, e ainda fazer da boemia uma arte própria, um estilo. A maior ironia é que seu blog e último livro se chama "Atire no dramaturgo", mas o imbecil não precisava levar ao pé da letra.

PS: As últimas notícias são de que ele tá bem melhor, apesar de ainda estar respirando por aparelhos.
Quem quiser dar uma força e doar sangue pra ele, dê um pulo na
Santa Casa. Rua Cesário Motta Jr, 112