Acho que nunca nesse país tivemos tantos elementos que nos ajudassem a formar uma opinião menos simplista em relação a nós mesmos. Seria ótimo que cada um percebesse que vive em um momento delicado de nossa história, e que somente com um pensamento mais complexo dá para ter alguma noção do que se passa. Mas, infelizmente, as opiniões que repercutem são as mais maniqueístas, as mais banais, mesquinhas, limitadas. A realidade está toda escancarada, já não existem mais segredos, e se as pessoas insistem na torpeza é porque fazem questão de não entender.
Poderíamos ao menos sair de uma visão dualística, aprender a contar no mínimo até três ou quatro. Mas acho que eu espero demais dos seres humanos. Parece difícil mesmo sair do número dois, continuamos com histórias velhíssimas que me provocam bocejos só de lembrar. Ninguém quer raciocinar, o que vale são os esqueminhas prontos: o bem contra o mal; os pobres de um lado e os ricos de outro; a esquerda e a direita; os acertos e os erros. Ninguém consegue ver que há gradações, ninguém admite que possa haver contradições ou ambigüidades? Começando pelo governo Lula. Eu não votei nele, mas mesmo que tivesse votado estaria bem decepcionado com muitas de suas atitudes. Não estou falando apenas de mensalão, mas também de uma política econômica conservadora, de alianças com psicopatas como o Bush e Renan Calheiros, e tantas outras decisões de cunho duvidoso. Para ser breve, não é possível dizer que esse é um bom governo. Por outro lado, tem me incomodado muito uma necessidade geral das pessoas de estabelecer juízos totalizantes. Como se fosse impossível a mesma pessoa cometer um acerto ou outro uma vez que tenha errado.
Vamos com calma. O Fome Zero é populista? É. Mas tem um impacto social que não pode ser de todo desprezado. E quanto ao PAC? Ninguém quer ao menos esperar para ver se vai dar certo ou não? Mal começou e vamos todos torcer para o projeto afundar? Desculpem o cinismo, mas por quê? Temos dificuldade de juntar a imagem de um laranja com dólares na cueca com um governo que investe em infra-estrutura - é esse o ponto? Eu estou torcendo para que o PAC seja bem sucedido, não só porque minha vontade de ver melhorias está um pouco acima de paixões partidárias, mas também – aliás, principalmente – porque eu adoraria ver as pessoas tendo que se virar para dar conta de um desafio mental desses. Para quem faz questão de se ater ao maniqueísmo deve ser complicado mesmo. Mas por acaso seria fácil para quem se sente “de esquerda” admitir que um político tão suspeito quanto o Kassab, aqui em São Paulo, foi capaz de uma atitude extremamente humanista? Difícil de engolir, mas foi: a Lei Cidade Limpa, que restringiu o uso de out-doors e fachadas, melhorou toda nossa relação espacial com a cidade. Aliás, Marta Suplicy havia prometido algo semelhante, e, muito pelo contrário, fez do Lago Ibirapuera um enorme golpe publicitário do grupo Pão de Açúcar.
É cada vez mais difícil sustentar que o mundo se divida em esquerda e direita. Ao ver o Cansei, ao ler sobre o assalto de Luciano Huck ou sobre as muitas vítimas de seqüestro do país, cada vez mais me convenço de que aquilo que chamamos de elite não é simplesmente um bando de filhos da puta. São, em grande parte, pessoas sem muita ética e sem consciência social, quanto a isso os exemplos transbordam. Mas é preciso reconhecer que “maldade” não dá conta de qualificar tudo o que se passa em suas cabeças ou o que lhes guia as decisões. É preciso levar em conta que em sua maioria são pessoas tacanhas, que vivem afobadas, de sorrisos artificais, que não têm sequer a liberdade de caminhar na rua tranqüilamente – ou seja, são medíocres, antes até do que sádicos (ou masoquistas). São “de direita” por limitação espiritual, mas não porque isso lhes seja tão proveitoso quanto parece. O problema não é apenas político, também é cultural e psicológico – não quero com isso absolvê-los, apenas ampliar as possibilidades de intervenção. Acusar alguém de "infeliz" pode ser bem mais aviltante do que acusá-lo de cruel (existe um certo orgulho em relação à crueldade, é uma qualidade viril). Os agentes da cultura e os da contracultura poderiam recorrer mais a recursos como esse, que, se não forem o suficiente para retirar algumas consciências do sono, na pior das hipóteses dá um certo ânimo a quem se sente inferiorizado diante dos poderosos mais infames. E não há por que duvidar que um ou outro filho de rico "vire a casaca" e passe a agir com muito mais coerência que nesse Cansei inócuo. Algo que merece ser explorado é o fato de estarmos próximos de uma situação-limite, onde finalmente se pode perceber que sugar os pobres ao máximo não é tão vantajoso - mesmo quem está no topo corre grandes riscos de cair.
Também a esquerda ortodoxa não percebe que a distinção simplista entre dois pólos antagônicos deixa de fora muitos aspectos que deveriam ser considerados. Muita gente, ao notar as falhas desse governo – que nada mais é do que o frustrante retrato da realpolitik – tem retornado à utopia marxista com maior afinco. É inegável que o marxismo seja um ótimo diagnóstico para os principais problemas do capitalismo, ao analisar uma lógica que não podemos deixar de compreender como devastadora em sua essência. Mas a maior lacuna desse aparato teórico é a crença de que os conflitos derivam todos do sistema, quando na verdade respondem, infelizmente, a algo muito mais intrínseco ao ser humano. As pessoas são falíveis, competitivas e corruptíveis; também são facilmente enganadas. O que começa com um Lênin pode muito bem continuar em Stalin, e não há garantia alguma de que um ditador do proletariado nos representaria com maior honestidade que o torneiro mecânico eleito pelo povo. Só seria possível chegar a outro sistema político-econômico mais promissor se um grande contingente de trabalhadores e intelectuais tivesse uma mentalidade bem mais elástica, capaz de analisar o conjunto sem se deixar levar pela superfície. Não sei quantas gerações serão necessárias para tanto, e eis porque considero a “mediocridade” meu maior inimigo, e não um conceito geralmente tão mal utilizado quanto o "capitalismo".
Cálculos finais. Se você só sabe contar até dois, provavelmente verá Lula com fanatismo: ou como um salvador da pátria ou como um pária que assume a cadeira ilegitimamente. Se você conta até três ou quatro percebe que há prós e contras, e talvez até admita que esse governo, por mais decepcionante que seja, ainda é menos pior que os anteriores. Agora, se você consegue chegar a equações complexas, entende que não se poderia esperar muito mais de um governante na atual conjuntura, pois é todo o ambiente ao redor que clama por mediocridade. Enquanto não ampliarmos a consciência em todos seus estratos, não haverá como atingir transformações mais
profundas.
Post Scriptum
Qualquer dia, se meu estômago permitir, quero falar sobre as mediocridades culturais e afetivas que assolam nossa época. Mas antes, prefiro escrever sobre qualquer coisa mais animadora. É maravilhoso dar-se conta de que é aí que entra a arte: uma recusa a se deixar diminuir pelas circunstâncias. Falam tanto em anti-arte, ou então elogiam qualquer obra de arte engajada de quinta categoria... com isso ignoram que se nossa atenção ficar inteira presa à realidade, já estamos derrotados. A poesia é uma potência rebelde, não se encaixa em programas políticos, porque não precisa de sensatez.
10.22.2007
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