3.16.2009

House, de David Shore



Dizem que heroína pode viciar na primeira dose, o que me leva a ficar longe dela, apesar de dizerem que não há Terra qualquer prazer comparável. Mas de House eu não escapei. Não faz muito tempo que tomei a primeira dose e já estou obcecado. O programa passa todos os dias na Universal às 20h e na Record quinta-feira à meia-noite. Trata-se de um médico mal-humorado e sádico, que não demonstra qualquer compaixão pelos pacientes ou respeito às regras do hospital. Em compensação, é brilhante como um Sherlock Holmes ao diagnosticar os casos clínicos mais enigmáticos. Sua equipe tem que aguentar diariamente suas tiradas sarcásticas, os pacientes passam pelos procedimentos mais invasivos, e mesmo assim, talvez protoganize o que há de mais humanista na televisão. As situações vão ao limite, porque também o espectador precisa de procedimentos radicais, precisa que a agulha penetre o coração e que os neurônios se rearranjem.

Dr. House é o personagem mais complexo que já se criou para a televisão, pois somente ao longo de muitos episódios conseguimos notar o mínimo de afeto que ele tem pelos demais. Misantrópico, escapando da depressão pelo brilhante humor sarcástico e pelos desafios intelectuais, ele tenta a seu modo vencer as dificuldades que tem para sentir algo pelas pessoas, para se importar até mesmo com seus colegas mais próximos. Em um dos episódios, Foreman, seu braço direito, se infectou em serviço, e, mesmo próximo de sucumbir, aparentemente não arrancava o chefe de sua frieza racional. Por mais que já esteja no senso comum a figura do médico como alguém cujo olhar é excessivamente técnico, impassível diante do sofrimento alheio, a anestesia moral do protagonista pode ser chocante. Ele não hesita ao sacrificar um recém-nascido, desde que com isso possa diagnosticar outros. O médico e o monstro são uma pessoa só, no entanto ele salva vidas, o que põe qualquer julgamento sobre seu cárater em suspensão. Com um vigor filosófico mais comum em Sartre do que na tevê, abundam as situações em que é a própria agressividade que permite à mente dissecar os problemas, ir à raiz, e encontrar a cura.

É nos detalhes sórdidos que muitas vezes o diagnosticista encontra a chave para os maiores quebra-cabeças. O detetive pressiona cada paciente até as lágrimas para extrair informações relevantes, beirando a tortura para se certificar que o paciente não está escondendo nada. "Todo mundo mente", inclusive para si mesmo, como os histéricos, criando falsos sintomas e mantendo em segredo o que realmente corrói os órgãos. Ao perceber que é preciso ir além do que se mostra, o espectador vai, aos poucos, delineando a luta entre vida e morte que agita o doutor. Uma bengala é o apoio para a perna doente que o atormenta com dor constante, mas sua luta é menos física do que existencial. O que lhe acomete é a náusea da falta de sentido, é o tédio diante das convenções sociais que tornam qualquer vida uma questão meramente estatística. House sofre o efeito colateral do excesso de inteligência, o desencanto de quem atravessa a superfície dos homens, tanto as vísceras quanto o cérebro. A investigação nos torna mais aptos a encontrar a cura, no entanto precisamos de antídotos para que a inteligência mesma não nos torne catatônicos. O que sustenta a série há mais de cinco anos não é o diagnóstico de cada paciente do hospital, que, por complexo que seja, a equipe resolve em algumas horas ou dias. É a tarefa, muito mais difícil, de arrancar o próprio Dr. House de sua beligerência contra a vida. Uma mais ampla noção de saúde.

Com David Shore, roteirista da série, podemos flexibilizar a hierarquia costumeira que coloca os livros sempre acima dos programas de televisão. Enquanto meio, a tevê não é necessariamente mais limitada que o cinema, que também pode ter o foco na audiência ou na qualidade. Embora na imensa maioria das vezes o foco esteja na audiência, Shore se confessa impresionado com a não-interferência dos produtores sobre seu programa. De fato se nota que ele tem grande liberdade para ousar e fazer de House uma série surpreendemente autoral. O personagem pode causar inveja a qualquer escritor que lhe preste atenção, os diálogos são polifônicos a ponto de nos lembrar de Dostoievski, a trama é ágil e captura. Há em David Shore uma inteligência de quem não se limita às fórmulas fáceis, não importa o veículo em que trabalhe.

Impressionado eu fico ao constatar que um programa tão dilacerante tem sido a série mais assistida. Um programa que vai além do entretenimento fácil, que exige cérebro e estômago do espectador, que o obriga a formular algo em vez de apenas absorver passivamente. Não passa de academicismo insistir que o feito não seja possível, se já temos o prognóstico, e é positivo. Neil Gaiman fez algo semelhante nos quadrinhos, e Matt Groening nos desenhos animados. David Shore conseguiu se infiltrar na cultura de massas e proporcionar a uma imensa multidão algo de que ela é carente, que podemos chamar de arte.