1.26.2009

Terra em trânsito




Nasci em 1980. Minha infância se deu no momento mais alienado do século, década de Xuxa, do auge da cultura kitsch, de ascenção do neoliberalismo e de desencanto geral pela política. Os anos 90 foram um pouco menos ingênuos, mas ainda tiveram um gosto parecido. Minha geração crescia convencida de que o mundo jamais iria mudar, portanto o melhor era ouvir seu CD preferido no último volume e esquecer o barulho da rua. O máximo de rebeldia possível era ouvir rock pesado, querer mais que isso era sonho inútil.

Só no finalzinho do século as coisas começam a esquentar. Se Nirvana e Pearl Jam haviam feito de Seattle uma referência underground, em 1999 milhares de manifestantes conseguiram levar sua filosofia para além dos viodeclipes. Gente de todo o planeta e de diferentes milítâncias se uniram em torno de um denominador comum, a anti-globalização. Um levante descentralizado, sem projeto fechado, sem líderes, sem partido, mas que sabia muito bem o que combater. É isso a micropolítica, resistência sem linhas duras e sem falsas ilusões.

Mais recentemente, vimos a eleição de um negro no país mais poderoso do planeta, que até então ostentava a fama de ser um dos mais conservadores. É possível que haja alguma relação de causa e efeito, que a organização (pulverizada, é claro) dos militantes de 1999 tenha conseguido influir na mentalidade do americano médio, tornando seu voto um pouco menos covarde. Claro que para quem, como aqueles manifestantes, percebe o tamanho do inimigo, ainda é pouco eleger um negro de nome árabe e idéias bonitas. O capital ainda está aí, a democracia ainda é limitada, a mídia ainda aliena mais do que informa. É pouco, mas é mudança. É significativo, no mínimo como símbolo, como algo que já está ressoando na cabeça das pessoas no mundo todo com muita mais potência do que as Xuxas locais e yuppies globais. O presidente é pop, assim como Nirvana ou Pearl Jam, mas são vetores que interferem nos rumos da História.

Não menos interessantes que a eleição de Obama, me chamam a atenção os conflitos na Grécia. Anarquistas quebrando carros como vingança contra a polícia pelo assassinato de um garoto de 15 anos. A primeira lembrança é a violência, em 2005, com que os parisienses de sangue árabe trataram os carros da cidade. A diferença é que, na França, tal evento terminou na eleição de um candidato de direita, Sarkozy, exatamente porque o radicalismo gerou medo, e o candidato com discurso mais repressor obteve vantagem. A situação para os revoltosos terminou pior do que quando começou. Na Grécia, no entanto, é bem provável que se dê o contrário. Tão ou mais radicais do que os franceses, os anarquistas gregos conseguiram enfraquecer o atual governo, conservador. As pesquisas mostram uma guinada de um candidato socialista, visto como alguém que poderia, ao menos em parte, atender aos anseios dos revoltosos e melhorar o país. O eleitor comum não se intimidou com a destruição de carros nem com aquela gente ao mesmo tempo sonhadora e furiosa. Talvez porque, com a destruição de grandes lojas e lanchonetes, tenham conseguido ver com mais calma os templos dóricos, e lembrar em que tipo de ambiente a arte e a filosofia podem vicejar. Ou porque entendam que não se pode obedecer ao poder quando este se impõe brutalmente sobre a vida e a morte dos cidadãos. Além disso, a população pôde se nutrir de algumas palavras sobre biopolítica, quando estes, ao saquear supermercados, tiveram a gentileza de distribuir mantimentos. As pequenas lojas são poupadas, deixando claro que os inimigos são as grandes corporações, de acordo com a mentalidade que vimos em Seattle 99.

Foi na Grécia que surgiu a democracia, e não será lá que deixará de existir tão cedo. Assim como as lojas de bairro são poupadas, um presidente que consiga se preocupar com a gente comum não sofrerá retaliação pesada por parte dos sonhadores. Cada vez mais, os anarquistas admitem que sua intenção não é derrubar o sistema, não é reconfigurar o poder a seu modo, mas mostrar alguma reação a quem tem culpa no desmazelo em que o mundo se encontra. Alguma resposta é preciso dar aos gananciosos que nos levam à atual crise, exploram os trabalhadores e impõem o status quo com brutalidade. Boa parte dos revoltosos gregos são jovens altamente qualificados que não têm perspectiva de ganhar mais que 700 Euros - são chamados de Geração 700.

Voltando para Obama, de quem a maioria gosta, e que não causa polêmica porque não envolve destruição. É ótimo ver Obama no poder, não sou esquerdista à moda antiga a ponto de achar que se não saímos da democracia, não temos nada a celebrar. Alguma mudança vai ocorrer, já está ocorrendo. No entanto, como poderíamos chegar a este momento de esperança generalizada, de felicidade quase apoteótica, se não tivéssemos, décadas atrás, os Panteras Negras combatendo o racismo americano de maneira violenta? Em 2008, Obama pode ter um discurso conciliador, mas só porque nos anos 60 os negros enfrentaram a polícia, causaram distúrbios em grandes cidades, saquearam lojas, de maneira semelhante ao que os gregos estão fazendo neste momento. Os bravos Panteras Negras possibilitaram a inserção dos negros na sociedade, sem a qual não teríamos o presidente no qual depositamos alguma esperança.

Somente sendo muito tacanho para negar que a História esteja em pleno curso, que o mundo esteja realmente mudando. A democracia sob a internet tem uma dinâmica muito diferente da que se viu até então. Um ponto comum entre Seattle, Obama e o levante grego é que todos recorreram à internet para se organizar. Na internet, é possível driblar aquela opinião "Fox News", em que a mídia convence cada um de que o mundo deve ser sempre o mesmo. Hoje os vetores se tocam mais, os links se abrem uns nos outros - o radicalismo de uns pode culminar no discurso conciliatório de outros, mas estão conectados, não se diluem tão facilmente quanto se pensava, não se esgotam, permanecem em trânsito constante. Cada situação tem seus vetores em andamento, é preciso compreender localmente quais são, pensar em termos micropolíticos. Cada transformação tem sua velocidade. Não adianta pensar que quebrar carros é revolucionário em qualquer contexto, pois até na França, com toda a simpatia que aquele país tem por Maio de 68, o resultado foi desfavorável. No entanto, são muitas as direções para onde podemos olhar e perceber algo se movendo, linhas de fuga se desenhando, desde que aceitemos que as coisas não são tão estáticas quando chegamos uma vez a acreditar.

1.13.2009

Telma

A Telma foi ótima, a ponto de me deixar mal acostumado. Me tirou do pântano emocional em que eu me afundava, no momento em que a lama já batia no nariz. Forte o bastante para me puxar para fora, quem mais poderia? Ela gostava de me morder a mão, a qualquer hora do dia me deixava sulcos avermelhados. Meu maior gesto de carinho era deixar ela imprimir essa marca na pele, e era bom, me ajudava a despertar. Alguns amigos a chamavam de Tiranossauro Rex por essa mania. Talvez também pela cabeça grande, que abriga um cérebro potentíssimo. Nietzsche, que adotei como pai, foi ela quem me apresentou. Estudou alemão só para ler o bigodudo no original, e o mais incrível é que revezava Gott ist tot com bruxaria, desobedecendo tanto o Cristo quanto o Anticristo. Ela tinha poderes, eu vi de perto.

Sentíamo-nos especiais juntos, o resto do mundo poderia se foder, nós nos entendíamos. Tínhamos nossa própria linguagem, criávamos nossas palavras, nossos jogos, nossa filosofia. Dois esculachados que, à beira da derrota, ainda insistiam, ainda queriam rir, e, entre altos e baixos, ao menos buscavam converter as mágoas em força. Ninguém vinha nos tratando bem, nem família nem amigos, muito menos o que podemos chamar de sociedade. É preciso admitir, a tragédia nos unia, aproximávamo-nos porque ameaçados. Nossas mãos estreitas uma na outra, mas o toque frio da escuridão nos antecipava. Fortalecíamo-nos juntos, precisávamos um do outro.

Mas não sei se eu soube ser tão bom para ela quanto ela para mim. Ela me salvou. Sem ela eu estava desmoronando, ela me salvou com seus beijos, seus seios, seu vampirismo, sua fé, seus alfinetes, seu feitiço, e, é claro, com um amor tão honesto que não sei se fruto de sabedoria ou de desespero, apenas que jamais tive semelhante. Nunca mais a mesma confiança, onde nosso melhor e nosso pior eram inconsúteis, onde até as mordidas eram carinho. Nossas palavras eram afiadas - podiam ter seu veneno, mas o sabor de fundo era doce, sempre.

Tudo o que tenho de Telma hoje são lembranças, além de uma ou outra foto. Espero que ela não se importe por eu contar, mas a foto não exponho: gosto muito de lembrar do que fizemos em nosso primeiro fim de semana na praia, com um apartamento todo só para nós. Bem mais novos, ainda não tínhamos intimidade com nossos corpos, sentíamo-nos inexperientes e cautelosos um com o outro. Eu havia entrado há pouco na faculdade de artes plásticas e, em parte porque os tímidos precisam de pequenos delírios, não resisti ao impulso criativo. Peguei uma caneta, comecei a rabiscar seu corpo. E conforme as linhas ganhavam espaço por seus braços e suas pernas, as peças de roupa foram ficando para trás. Eu desenhava pacientemente, adiando o momento de possuí-la, tentando surpreendê-la com um pouco de imaginação. As linhas contornavam seus seios, faziam volutas pelo umbigo, num movimento contínuo que de quando em quando emergia em uma figura (um sol, uma flor, uma espada, um rosto). Depois deixei que ela mesma me rabiscasse à vontade, e em pouco tempo estávamos os dois nus. O encontro dos nossos corpos foi uma continuação natural do jogo, que não foi tanto uma preliminar para aquela noite de amor em especial, mas uma preliminar para toda a entrega que teríamos por mais três anos.

Não sou ingrato com quem me fez bem, quero mais que ela seja feliz com seu filho, com seu marido, com sua vida encaminhada. Estou certo de que terminamos quando chegou o momento de terminar, quando cada um tomou um rumo que divergia do outro. Tento não pensar muito nela, já faz tempo, me apaixonei outras vezes, conheci outros momentos intensos. Mas, quando tenho recaídas piegas e escrevo sobre amor, é, em boa parte, porque junto à Telma eu aprendi um amor que atende ao que entendo por verdadeiro. Podíamos ser nós mesmos, sem disputas de poder, sem dissimulações, e ainda assim, quase uma contraparte um do outro. Não estou certo de que viverei algo parecido novamente. Começo a sentir que meu maior erro tem sido buscar o mesmo em um outro tempo e com outras mulheres. Nem sequer por ter sido maravilhoso devo me prender às mesmas expectativas. O que me interessa agora é continuar aprendendo e desaprendendo até o fim dos meus dias.