11.24.2008

Enfrentando o vazio

O vazio da Bienal, podemos dizer, é o vazio do interior de uma bolha. Uma bolha que se agigantou no afã de abarcar tudo, de se infiltrar em todo tipo de ação humana. Da mesma maneira que o mercado financeiro entrou em crise pelos excessos neoliberais, a bolha na arte se mostra prestes a estourar devido a um semelhante laissez-faire. Já temos sinais de que uma crise vá influir na outra, de que os preços dos leilões de arte se tornarão mais modestos, e que os colecionadores pensarão melhor antes de patrocinar qualquer capricho. Porém, se refletirmos apenas sobre os aspectos econômicos, a arte continuará a ser mero jogo da elite, flutuando de acordo com a demanda. A tal ponto o problema é complicado que ainda parece incerto se a intenção de Rafael Augustaitiz, ex-estudante de arte que invadiu o pavilhão com quarenta pichadores, seria o de pertencer ao interior da bolha, ou se ele já procura perfurar a membrana e forçar a explosão. Desde os anos 60, quem queira entrar para o alto circuito de arte dificilmente se arrisca a pintar uma tela, podendo ser mais vantajoso, até mesmo financeiramente, realizar uma ação radical do que batalhar com as tintas. A principal diferença entre a arte moderna e a arte que se designa pós-moderna é que a segunda tende a se restringir ao campo expandido, desprezando o campo metafórico que as cores propiciam em uma tela. Até mesmo uma pintura abstrata é considerada ilusória demais para o pensamento que hoje domina, pois as cores criam tensões e variações de profundidade que vão além da mera materialidade. A ilusão passou a ser considerada reacionária, algo que merece ser destruído – assim como se deve destruir qualquer fronteira entre o espaço da vida e o da arte. Explica-se assim o por que de não haver uma única pintura nessa edição da Bienal, onde a destruição da arte acontece mesmo sem a intervenção de pichadores.


Ironicamente, se a pintura não pode mais ser arte, qualquer anúncio de que não é arte nada do que costumamos chamar de arte pode ser considerado uma obra avançada. É o que vemos, por exemplo, em uma instalação onde falsificações de dezenas de obras consagradas se amontoam ao lado de seus pedidos por escrito, sugerindo que seja falso até mesmo o desejo de se ver uma pintura significativa. É na constante frustração de desejos como esse que muitos dos artistas selecionados se engajam. Ao lado dessa beligerante instalação, vemos um enorme painel com o livro “O estrangeiro”, de Camus, onde todas suas palavras são recortadas e dispostas em ordem alfabética. Em entrevista, a artista diz ter escolhido o livro por apreciá-lo, mas não é difícil perceber o quanto há de inveja nessa dissecação e ordenação – na aniquilação ou controle de uma fruição que seria bem mais potente com o livro em sua integridade. Em vez de um livro dilacerante, temos um livro dilacerado, muito aquém do que poderia provocar no leitor.
Do outro lado do pavilhão – começamos pelo último andar da exposição – temos duas das poucas obras que apostam na ilusão. O vídeo de Eija Liisa-Ahtila, que aborda a loucura com uma estranha suavidade, e as instigantes gravuras de Leya Mira Brander, cujo discurso sustenta um otimismo em relação à imagem que quase não se ouve mais. Para quem compreende que obras como essas, ainda que não se valham do mesmo poder retórico, são mais complexas do que a produção tipicamente contemporânea, a proposta de “morte da arte” só pode soar rancorosa. A diplomacia costuma reinar tanto na disposição do espaço quanto nas conversas de vernissage, porém por trás das aparências a briga é feia: os pós-modernos insistem no boicote ao espaço ilusório, ao passo que, contra a corrente, alguns poucos conseguem demonstrar que isso não é possível nem vantajoso. O caráter panorâmico de toda grande coletiva faz com que coabitem o mesmo espaço rivais que se ameaçam de morte. Vazio é quem acredita que esse conflito não acarreta abalos ainda maiores. Nesse contexto, o ataque de Rafael e seu grupo Pixação, consideremo-nos artistas ou vândalos, demonstram muito claramente a tensão que está em jogo.
Desçamos do andar superior para o primeiro piso. Caminhando pela arquitetura modernista de Niemeyer, avistamos o vazio e prosseguimos. Vamos nos lembrando que, desde o urinol de Duchamp, qualquer objeto, situação, informação ou sugestão que se insira em um espaço artístico, pode ser considerado arte. Seja um cachorro doente, seja um aperto de mão, seja um anúncio publicitário, uma aula de geopolítica ou a oferta de um copo d’água. É importante esclarecer que, na maior parte das vezes pueris, esses procedimentos não fazem jus ao legado de Duchamp. O artista francês disse com todas as letras que deveria restringir esses deslocamentos a um número muito reduzido – não tendo ele realizado mais do que vinte ao longo de décadas – pois do contrário perderiam o sentido. Desrespeitando o próprio inventor do jogo, muitos dos artistas selecionados levam o truque ao extremo – não é tão difícil uma vez que se aprende – com conseqüências as mais elitistas.
Há jornalistas cobrindo a Bienal, parte deles contratados para publicação interna. No entanto, há artistas fazendo o mesmo trabalho, sendo o único diferencial o status de sua profissão. A cobertura dos artistas poderia ter a mesma qualidade, o mesmo conteúdo e o mesmo foco que o trabalho dos jornalistas – não é o que vai impresso que os diferencia, assim como a caixa de sabão em pó de Andy Warhol era idêntica à das estantes dos supermercados. O Brillo Box de Warhol exauria-se em si mesmo, mas o procedimento não mudou tanto dos anos 60 para cá. Próxima às catracas da entrada, avistamos uma antiga prensa, trabalhando ruidosamente. A máquina é bonita, antiga, mas não é ela a obra. A proposta do artista é recolher perguntas e respostas de qualquer assunto levantado pelos visitantes e reunir em livretos que são distribuídos aos participantes. Basta ler algumas linhas para se perceber que não há qualquer avanço em relação à Wikipedia. Na verdade, há um recuo, pois a Wikipedia é mais dinâmica, tem acesso mais amplo e não faz de seu idealizador um novo “artista”. A prensa da instalação, por antiga que seja, funciona bem, é o pensamento que está obsoleto: uma obra espaçosa demais, que não reconhece as possibilidades de nosso tempo.
À lógica do deslocamento se alia a um discurso que prega o fim de qualquer separação entre vida e arte – seria essa a proclamada “morte da arte”. Em vez de se produzir campos ilusionistas, passar-se-ia a olhar para a vida como se essa fosse uma obra artística. É por isso que um pichador com quatro anos de estudos na Faculdade de Belas Artes sente que sua transgressão deveria ser reconhecida pelos críticos e historiadores como obra de vanguarda. Se de fato não houver a menor distância entre espaços da vida e da arte, teremos que reconhecer que a ousadia de Rafael pode ser admirada com maior profundidade do que admiraríamos uma tela de Matisse. A mentalidade pós-moderna entende que uma pintura é apenas um objeto plano preenchido com tinta, podendo ser mais honroso para um artista subir e descer de um banquinho em uma performance assumidamente narcisista do que criar um objeto. Sendo assim, como dizer que os movimentos dos pichadores invadindo o prédio, dominando os muros e se desviando da polícia em rota de fuga não tenham sido um balé a se apreciar esteticamente? Por que Vito Acconci sim e Rafael Augustaitiz não? Apenas por que Rafael é contra a lei? Se contarmos com esse argumento, a censura determinará o que é arte muito antes de qualquer reflexão. Melhor seria questionar se a arte tem mesmo se aproximado da realidade, ou se a figura do artista não tem sido a de um demagogo com privilégios especiais. Há pessoas que não precisaram de muito mais que visitar algumas ONGs em São Paulo e anotar o trajeto em um mapa da cidade para participarem oficialmente da Bienal. O que elas fizeram que as tornam exemplos tão mais destacados do que os funcionários dessas mesmas ONGs, que não serão considerados artistas?
Dentro do paradigma que se formou na arte contemporânea, o pior assistente social pode, desde que capte o tom do discurso e aperte as mãos certas, ser considerado um artista de respeito. Também um militante mais subversivo, que enfrente o sistema e desafie a polícia, pode, se souber imitar a pose certa, ser aclamado como artista radical. O mesmo vale para jornalistas, cozinheiros, decoradores, etc. Um dos muitos problemas que esse paradigma gera é que jamais temos uma verdadeira fusão entre arte e vida, a despeito do que se proclama. Um crítico importante porém pouco lembrado, Harold Rosenberg, cansou de demonstrar que não é possível a fusão com a vida em qualquer contexto de arte. Nesses casos, o que se passa é sempre deslocamento, jamais integração. Para Rosenberg, os estudantes da Sorbonne de 68 uniram vida e arte, fizeram da política uma dança, mas somente porque a tessitura era a da vida. Estavam do lado de fora da bolha. Ele considera também que é pouco provável que se possa ser libertário na vida sem qualquer repertório de arte ilusionista, com a imaginação sempre presa à realidade, limitada à concretude. Tendo em vista um cenário amplo, só temos a lamentar que a arte venha cooptando manifestações marginais que pouco dizem respeito a suas particularidades. Tanto a arte como a vida perdem, pois ambas se artificializam: o rótulo se fazendo valer mais do que seu caráter.
Duchamp estava certo ao considerar que os deslocamentos deveriam ser limitados. Hugo Ball, fundador do dadaísmo, também entendia que “transformar o dadá em uma tendência artística é problema na certa.” Guy Debord percebeu que teria de abandonar o status de artista para atingir a realidade em cheio. Lygia Clark, preocupando-se mais com a cura do que com a performance, deixou de querer ser vista como artista ao se aprofundar na psicanálise. Aqueles que buscaram ir até o limite da equação arte-vida perceberam que há uma linha a partir da qual uma ação já não deve mais ser considerada arte. Não porque seja menos interessante do que arte, mas porque seria falseamento vê-la como tal. Essa linha não é rígida, nem facilmente visível, é como a superfície de uma bolha. Fazendo-a, inchar, cedo ou tarde ela explode. Não há como levar o mundo todo para seu interior. Nem há motivos para isso, pois há coisas que se tornam mais pungentes quando em outras esferas. O que não se pode é tomar uma bolha, devido ao formato esférico, pelo planeta, pois a arte não é maior que a vida.