9.23.2008

Conto inédito na Terra Incógnita

Acabou de sair o primeiro número da revista virtual Terra Incógnita, editada por Fábio Fernandes e Jacques Barcia. A linha editorial deles é muito boa: querem deixar para trás os grandes clichês da ficção científica e mostrar uma produção que não se restrinja a este nicho quase invisível. O desafio é oferecer mais do que literatura "de genêro" e estabelecer um diálogo de igual para igual com a literatura contemporânea. Nas palavras deles, "explodir as espaçonaves clarkeanas, desprogramar os robôs asimovianos, desvendar as farsas dos códigos davincis e tirar a titia Úrsula K. Leguin para dançar forró."
Eu venho pensando que a ficção científica vai ganhar uma importância enorme nos próximos anos, principalmente com as descobertas que o LHC, o acelerador de partículas de Genebra, pode nos proporcionar. Os físicos estão a poucos passos de desvendar alguns mistérios que prometem transformar completamente nossa maneira de pensar e sentir. Não se trata de mera elocubração nerd, é bem provável que logo mais você abra o jornal e descubra que vive em mais do que quatro dimensões! Ou fique estarrecido com novidades sobre a tal da anti-matéria. Também sobre a evolução do universo se esperam algumas notícias. Tudo isso me faz crer que o século XXI vai ser dos mais empolgantes da História, e que todo escritor deveria prestar atenção à revolução que a ciência está prestes a realizar.
Meu conto na revista se chama Emaranhamento, um fenômeno que deixava Einstein assombrado e até hoje não foi explicado. Trata-se da influência entre partículas a uma distância potencialmente infinita, o que contraria os princípios da Teoria da Relatividade. Pensando nisso, escrevi sobre o "emaranhamento" de duas pessoas que se distanciam, mas continuam a influir uma sobre a outra.
Outros autores desta edição são Carlos Orsi, Guilherme Kujawski, Fábio Fernandes e Ekaterina Sedia. É só clicar aqui e aproveitar a leitura.

Obs: continuo devendo o texto sobre Hakim Bey. Meu maior inimigo tem sido o tempo (o presente mesmo, quanto ao futuro eu ando otimista). Assim que eu tiver uma brecha, cometo a insensatez de falar sobre essa criatura maldita.

9.09.2008

Terrorismo poético ou oportunista?



Desde que fiquei sabendo da última investida de Rafael Augustaitiz, muita coisa me passou pela cabeça - inclusive se valia a pena publicar qualquer coisa a respeito. Eu já havia escrito sobre a invasão na Faculdade de Belas Artes, quando ele e quarenta amigos picharam as paredes da instituição e definiram o ato como um "trabalho de conclusão de curso". No último sábado, o alvo foi a Galeria Choque Cultural, especializada em arte urbana e grafite, onde ele e seu bando danificaram dezenas de obras alheias. No primeiro ataque, eu deixei claro o quanto me parecia bisonho que um ato de vandalismo reivindicasse a anuência da academia, e o quanto isso era sintomático de uma crise mais antiga no pensamento da arte contemporânea. Algumas pessoas do meio artistíco defenderam o rapaz, o que só prova que a anti-arte faz parte de uma lógica disseminada. Meses depois, nesta ação contra uma galeria comercial, ao menos a contravenção não parece pedir elogios da parte das vítimas. Se o bando que pretende "discutir os limites da arte" falhou ao tentar obter um diploma universitário para seu líder, tampouco se esforça para obter a simpatia de muitos artistas considerados alternativos, que viam nessa galeria a maior esperança de sair das ruas para o estrelato.

Eu dei uma olhada no blog do Rafael. A primeira coisa que me ocorreu foi procurar incongruências, apontar o quanto ele, apesar da iconoclastia, procura um lugar ao sol, o quanto ele quer reconhecimento de seus pares e mecenas bacanas patrocinando o que ele está fazendo. Exatamente como os artistas que ele ataca. A verdade é que, nos tempos niilistas em que vivemos, a auto-destruição da arte é a epítome do que se tem prestigiado nos salões, com tanta insistência que não sobrou muito para se destruir. Rafael não é mais contraditório que os artistas contemporâneos, apenas levou a cabo o que os outros vêm deixando no campo da sugestão. No fundo, acho bom que isso tenha acontecido, talvez obrigue as pessoas a pensarem até o fim o que só interessava pensar pela metade.

E eu não estou fora disso. A maneira como penso arte hoje em dia não pode ser entendida sem o contato que tive com o terrorismo poético - que o Rafael cita sem saber do que se trata, do contrário diria "anarquismo ontológico" em vez de "antológico". Se eu vislumbro coisas que os acadêmicos têm dificuldade de enxergar, devo muito à minha leitura de Hakim Bey, ao grande impacto que me causou Ari Almeida e à experiência de sair da retórica para a ação. Também tive minhas experiências com a subversão do cotidiano, mas tive a decência de não chamá-la de arte. O terrorismo poético que eu conheci, para quem não sabe do que estou falando, tem muito mais generosidade do que destruição pela destruição. A anti-arte é um discurso do ressentimento, nos afasta de Dionísio, ao passo que o terrorismo poético propõe o choque como maneira de despertar a consciência dos desavisados, de proporcionar um pouco de poesia a quem jamais entraria em uma galeria de arte. Uma das sugestões de Hakim Bey é invadir as casas alheias, mas, em vez de roubar, deixar objetos desconcertantes. Sem dúvida, essa proposta influenciou o filme Edukators, mas conheci quem o fizesse na prática.

Quando entrei em contato com o maior terrorista poético do Brasil, Ari Almeida, apesar de estar cometendo meus próprios crimes poéticos, eu pensei que ele iria me ignorar ou me mandar à merda, simplesmente porque eu continuava me interessando por pintura e outras artes comerciais. O discurso que mais zumbiam na minha orelha era o detestável pós-modernismo de faculdade, e me surpreendi ao saber que a radicalidade do Ari, muito mais ampla do que a dos artistas contemporâneos, não precisava da tal da morte da pintura. O grande barato é não se importar com dogma nenhum, e logo notei que mesmo quando nos diferenciávamos nos métodos, nós buscávamos coisas parecidas. Mais surpreso ainda eu fiquei quando ele me disse que adorou um dos meus artigos sobre arte, justamente porque sentiu que eu lhe dava alfinetadas. Era Não-vida e a superação da anti-arte, onde eu tentei distinguir os objetivos de qualquer militância criativa e os das artes plásticas. Fiz isso justamente para evitar essa institucionalização do caos que vejo imperar na arte contemporânea. Afinal, qual o sentido de uma transgressão consentida?

Verdade que meu número de pinturas é maior que o número de ataques que realizei, mas sempre foi uma questão de honra deixar meus atos de terrorismo poético fora do meu portfólio de artista. Eu jamais cobraria nota na faculdade para o que aprontei na rua ou pediria ao Ivo Mesquita para expor na Bienal. O marasmo crítico chegou a tal ponto que eu poderia muito bem fazê-lo e estar em sintonia com o que há de mais "vanguardista", mas me recuso a agir assim por um motivo muito simples. Eu adoraria ver a subversão do cotidiano se espalhar ao máximo, em vez de confiná-la ao meio artistíco. Foram ações não-autoritárias, é bom deixar claro. O que eu fiz nas ruas - ataques críticos-poéticos a shoppings e a lanchonetes - qualquer um que queira se sentir menos passivo pode fazer, e acho que ao menos os jovens deveriam tentar, com a naturalidade de quem combate o próprio tédio.

Ainda assim, confesso que para mim mesmo não é tão fácil entender como posso ter me apaixonado por duas atividades que a princípio parecem concorrer uma contra a outra. Faz sentido se influenciar igualmente por Ari e por Kandinsky? Ou dar atenção a Hakim Bey sem perder de vista Guimarães Rosa? É por isso que a pergunta do título acima não se dirige tanto a Rafael e seu bando. Nem para os grafiteiros alternativos que, segundo o movimento PixAção, traíram a verdadeira arte de rua ao colocarem seus trabalhos à venda. É a mim mesmo que questiono. Como posso realizar pinturas, ou seja, arte em seu sentido mais convencional, depois de já ter deixado Matisse e Miró de lado e ter ido para a rua? Depois de ter despejado a criatividade numa militância muito mais frontal do que a de uma tela? Pior que isso: o que eu devo fazer se, a partir da publicação do Puro Enquanto, a demanda por óleos de Hegenberg se tornar maior que a demanda por óleo de baleia? Moralismos e ideologias à parte, o Ivan de hoje, ainda não muito famoso e com apenas 28 anos, não gostaria de ser desapontado por um Ivan veterano, que ao se afogar em mares de dinheiro se esqueça do quanto a arte pode ser potente. Não posso garantir muito sobre quem eu serei no futuro - e quem é que pode? - mas não acho que todo artista que finalmente consiga viver de arte se esqueça completamente de como era quando começou. Além do mais, para mim não há opção: o que eu crio é sério o bastante para consumir uma quantidade enorme de tempo e energia, a ponto de até hoje eu não ter conseguido conciliar arte com uma profissão estável. Vivo de free-lances para ter algum tempo livre, mas vivo mal. Talvez os moralistas preferissem que eu fosse um artista ainda mais "atitude", que eu passasse a vida inteira sem vender uma peça, mas a obra que eu tenho para criar não é compatível com horários de hobby. Se eu não conseguir transformá-la em ganha-pão, aí sim estarei fazendo a maior concessão: pintar e escrever muito menos do que eu poderia, ficar aquém de onde posso chegar.

Nem por isso acho que os problemas se resolvam tão facilmente. Acho que, apesar das contradições, Rafael aponta para uma angústia genuína. Não seria mal um pouco de humildade da nossa parte: o cara está disposto a enfrentar polícia para dar seu recado, não precisamos pensar que seja tudo encenação. É bom saber que nem tudo é retórica - ainda há quem se incomode quando o comércio sufoca as sempre pequenas possibilidades de a arte permanecer honesta. Não concordo com o autoritarismo de seu método, mas a apatia geral também seria tão triste quanto. É bem provável que Rafael tenha lido a mesma matéria que eu, na Folha de São Paulo da semana passada: o dono da galeria atacada falando de arte como quem fala de ações na bolsa. Baixo Ribeiro, o galerista, demonstrava sua animação com os colecionadores iniciantes que, segundo ele, ganham gosto por arte ao constatar, após um par de anos, que as peças que haviam comprado estão se valorizando. Até o galerista de um espaço alternativo diz que é a rentabilidade que deve levar uma pessoa a apreciar arte? Pensando no quanto o valor de uma obra vem se reduzindo ao seu valor de mercado, também me passa pela cabeça alguma maneira de desestabilizar esse esquema. No entanto, acho que se chega mais longe com um mínimo de sutileza. Aliás, este post já é bem menos sutil do que eu gostaria.Se eu não testemunhasse o quanto não estão entendendo nada, eu não teria que ser tão explícito, não precisaria dizer que a cada artigo que escrevo me parece mais plausível abalar o pregão.

O que vai acontecer quando finalmente os colecionadores perceberem que 90% da arte contemporânea é pura enganação? Isto sim, pode causar muito mais impacto do que a destruição física de algumas pinturas. Muita gente perdendo dinheiro muito rápido - basta deixar claro o que é arte de verdade, para que a desvalorização do que não presta seja estrondosa. O único jeito de fazer isso é através de um pensamento que se mostre mais sofisticado do que os discursos que se ramificaram da anti-arte. Não me parece tão difícil de fazê-lo: se não engolirem o moleque de 28 anos que constatou que a subversão funciona melhor fora do circuito, são muitos os intelectuais mais "respeitáveis" que apontam para a fragilidade da arte pós-moderna. Basta reavivar os melhores livros de Harold Rosenberg. Ou fazer uma leitura decente de Nietzsche, de Lacan, de Deleuze, de qualquer um que tenha pensado o ser humano com este nível de complexidade.

Mas já que queremos todos parecer tão ousados, e já que calhou de eu só conseguir escrever este artigo em um 11 de setembro, termino com uma pequena sugestão para todos os artistas do ressentimento. Em vez de agir só com sinal negativo (sempre moralmente, sempre reclamando de que arte não deveria dar aos mãos ao comércio, etc), por que não agir de forma mais potente, com sinal positivo? Por que não usar o enorme montante que a arte consegue proporcionar a uma pessoa (e, supostamente, uma pessoa com consciência crítica) de uma maneira que desnorteie o status quo? Até o Bin Laden, fanático e anêmico, é mais interessante do que vocês: por mais que ele detestasse os dólares, juntou muitos deles para organizar um ataque eficaz. Longe de mim fazer apologia à violência, mas vocês não conseguem ver que a partir de certo ponto o enfrentamento não se dá mais internamente, não se faz na obra de arte? Nas artes visuais já está mais do que provado que não, o autoritarismo também não interessa, mas e quanto a um terrorismo verdadeiramente... poético?


PS: Mesmo quem não for fiel à deusa da discórdia, peço que faça uma oração para Éris em nome do Ari, que está com um problema grave no rim.