8.28.2008

Orelha de Puro Enquanto

Por Fernando Bonassi


Por enquanto é isso aí... Aqui...

Isso tudo, aliás, é puro enquanto! Por mais que queiramos permanecer...

O tempo passa com essa velocidade de arrepiar. Chega a dar vertigem na paisagem!

É também uma miragem. Há muitos sonhos maus, esperanças desfeitas e mal estares por baixo de toda essa sacanagem consentida...

Então vêm esses malditos pesadelos, amores e autores que nos ensinam aquilo que não gostaríamos de saber. Aliás, é duro de entender quem é mentira enquanto a realidade é produzida pelas agências de propaganda da verdade, onde os produtos humanos exibem esnobes os seus rótulos, mas escondem o prazo de validade. Puro Enquanto faz um ruído no disco do moto contínuo; é um ponto de desencontro com aquilo que viemos nos fazendo...

Assim, puro enquanto é também um rito de passagem para uma outra coisa. Uma crise que seja. Uma espécie de viagem com destino incerto, o certo lugar dos infernos de nós mesmos.

Puro Enquanto deixa esse cheiro esquisito, meio novo e meio antigo, meio fóssil e meio sintético, bem fedido na garganta...

Puro Enquanto é uma caixa de esgoto, ressonância ou de segredos, travestida de armário de cacarecos. É esse desalento desgraçado, embalado por ironias impagáveis. O preço, no entanto, está fechado e acertado com o editor e o livreiro. São mentiras cristalinas, deslavadas e pagas com dez por cento das favas amargas na conta corrente do autor.

Deve, é claro, dar um tranco, ou um treco na mente dos contentes obscuros.

Tem uma coisa masoquista muito sádica também, como convém a quem leu Dostoiéviski desde criancinha.

É uma coisinha diabólica que invoca o próprio diabo mais invocado para esclarecer. O esclarecimento que ele tem, ou dá, no entanto, pode ser duvidoso. É incômoda a poesia do desconforto!

Escrever pode ser gostoso, mas viver é que é perigoso. E Ivan descreve a nossa ignorância muito bem.

Puro enquanto é isso aí, ou aqui... Cada um sabe o que faz... Ou deixa de fazer, mas leia atentamente o que eu te digo: se segure pra torrente desse livro.


Fernando Bonassi é escritor, dramaturgo, roteirista e gosta muito da pegada do Ivan.

Obs: Puro enquanto está quase pronto. Se tudo der certo, sai no final do ano.

A literatura contemporânea segundo Bonassi

Adorei a orelha que o Bonassi escreveu para o Puro Enquanto, que deixei no post logo acima. Para quem quiser saber porque eu me identifico com a escrita dele, recomendo veementemente sua nova peça, Literatura contemporânea. Está em cartaz em São Paulo no SESC Paulista, mas acredito que vá circular pelo Brasil todo.
É um monólogo afiado, interpretado por César Figueiredo, onde se discutem diversos problemas que assolam a atividade do escritor. A dificuldade de se manter resistente quando a escrita é encomendada, os impasses ideológicos, as veleidades (ou frescuras, como ele traduz) e a nostalgia por um tempo em que a literatura parecia mais transformadora. O texto do Bonassi não se rende a facilidades: a tudo isso ele vê de um panorama vasto, pós-utópico, sem esquemas prontos, passeando pelas correntes do pensamento contemporâneo sem que nenhuma se torne camisa-de-força. Ao mesmo tempo - e não fosse isso, não teria graça alguma - ele não absolve nem a si mesmo, sabe rir de si e de seu lado sórdido, permitindo que a literatura não se reduza a mero projeto moralizante.

Vou deixar para vocês um trecho em que ele cutuca os escritores que não passam de representantes da boa consciência:

Um gesto resistente desses terroristas parece mais convincente do que suas páginas moralistas e supostamente revolucionárias... Não que sejam reacionárias, mas é esse "bom senso" que as aniquila... e como o "bom senso" é de todos, há sempre essa vivência emprestada, entendiada, empestada...


Foram tantas as vezes em que eu senti exatamente isso, diante de obras feitas com nada mais do que "boas intenções"...

8.23.2008

Do lado de lá do mundo

Os desafios e contradições da China em transição me fazem lembrar de uma das minhas canções favoritas, China Girl. Parece ter mais a mão de David Bowie que a de Iggy Pop (eles compuseram juntos), mas prefiro a versão do segundo. A canção faz sentido pela sua violência, a começar pela sem-cerimônia com que as guitarras corrompem as tradicionais melodias chinesas. Milênios de cultura de um império soberano são deformados pela invasão pop, e os gritos de Iggy revelam a intensidade de um dilema. Por maior que seja a paixão, (I’m a mess without you), o americano sente que vai arruinar sua amada, ao lhe dar televisão, olhos azuis e um homem que quer dominar o mundo. Ele chega a confessar o lado fascista de seu desejo, as visões de suásticas na mente, no entanto a guitarra prossegue, demolindo os fraseados mais delicados de uma tradição que não lhe pertence. A música é de 1990, início da abertura econômica da China para o ocidente.

Confesso que não é fácil, mas venho tentando entender o que se passa com os 1,3 bilhões de habitantes deste país. Se, por um lado, as projeções de crescimento econômico parecem infalíveis, na política e na cultura o solo é dos mais instáveis. Para começar, o choque de gerações é muito forte. Os velhos ainda reproduzem a moral maoísta, os jovens cada vez mais adquirem valores ocidentais. A mudança de costumes, acelerada pela internet, é bem mais abrupta que nossa revolução sexual dos anos 50 e 60. Hoje os jovens vão para as baladas e fazem sexo casual, ainda que não precisem mais do que abraçar alguém na rua para serem mal vistos por quem viveu outros tempos. Durante a chamada revolução cultural de Mao, não eram permitidas demonstrações de afeto em público, como beijos ou caminhar de mãos dadas. A paixão era considerada um sentimento “burguês" e “contra-revolucionário”, por nos afastar dos interesses coletivos. Mao certamente concordaria com as visões de suásticas da canção, muito mais do que os roqueiros que a compuseram. O moralismo do Partido era tomado a peito pela população, capaz de apedrejar os casais que ostentassem seu romance. Parece folclore mccarthista, mas tamanha era a repressão que muitas pessoas morriam virgens mesmo quando casadas, devido à total ignorância no assunto. Ainda hoje é um problema sério para os sexólogos chineses, por mais que o governo invista em conscientização. A expressão “criado com a avó”, que usamos para descrever alguém assexuado, na China pode significar um adulto que não sabe sequer quais são as partes do corpo envolvidas em um ato sexual.



Não está longe o dia em que a China ultrapassará os EUA e se consolidará como a principal potência econômica mundial. Só não acredito que tão cedo ela possa ocupar o mesmo espaço no imaginário popular, nos empurrando cultura de massa com o mesmo fôlego que a indústria cultural norte-americana. Por enquanto, acontece o oposto: os jovens chineses que têm algum poder aquisitivo se comportam como os brasileiros, preferindo a cultura enlatada dos gringos do que suas raízes ou qualquer coisa mais autêntica. Isto, é claro, para os que podem se regalar com cultura, para os que vivem o lado bom do crescimento chinês. Alguns se tornam milionários rapidamente, outros viverão até o fim uma miséria de terceiro mundo. Supostamente, estão todos contribuindo igualmente para um país "comunista”, mas é pouco provável que essa ideologia tenha a mesma aceitação hoje do que no tempo dos avós. Ficou para trás o tempo em que o maoísmo podia ser recebido como dádiva pela esquerda no mundo todo. Os jovens chineses parecem ver na revolução cultural o mesmo retrocesso que nós vemos hoje; e, em comparação, a abertura para o ocidente parece mesmo com um avanço. Pena que não seja um progresso tão entusiasmante: como a China girl, deixam-se arrebatar pelos americanos.

O preço desta aproximação entre capitalismo avançado e resquícios de ideologia autoritária pode ser mais alto que o de uma Guerra Fria. Em pleno ano olímpico, a China massacra os tibeteanos, e por mais que o ocidente se oponha, não pode fazer nada. A China canta Why don't you just shut your mouth up, tanto para a imprensa local quanto para os demais países, provando que ninguém contraria quem detém um sexto dos consumidores do mundo. Dinheiro jamais se importou com ideologia, do contrário o McDonald’s não poderia ser o restaurante oficial dos Jogos de Pequim. O Partido Comunista também está mais preocupado com dinheiro do que com Marx, já que não se incomoda em firmar parceria com empresas do país que propagou o fordismo. Se o discurso oficial é comunista, na prática temos uma exploração do trabalhador que não se via desde o século XIX. Em um documentário transmitido no GNT, vi cenas de uma fábrica de jeans onde as operárias enfrentam rotinas de até 16 horas seguidas, sem hora extra, ameaçadas de demissão à menor reclamação, sem direitos trabalhistas, ganhando um salário insignificante. As filmagens tiveram que se fazer em segredo, pois qualquer documento que mostre o lado sórdido do país é reprimido com prisões – o que, de fato, aconteceu com alguns integrantes da equipe. E é sob esta pressão que a China vem obtendo um crescimento anual de quase 10%.


Ao McDonald’s não interessam nem a semi-escravidão dos trabalhadores nem o genocídio no Tibete – enquanto as pessoas se sentirem alegres consumindo China Menu, não há problema algum. Em todo o planeta, trabalha-se cada vez mais para ganhar menos, em grande parte por culpa do modelo chinês, que obriga todos seus competidores a nivelarem por baixo. É claro que a China está muito longe daquilo que os comunistas mais simpáticos sonharam – vamos admitir, existem comunistas bem-intencionados, assim como existem padres humanistas. Até mesmo Godard, na minha opinião o cineasta mais inteligente do século XX, caiu nessa, e rodou um filme um tanto idílico, impossivelmente otimista sobre sua chinesa. A revolução cultural era celebrada quando não era compreendida, quando a falta de informação permitia idealizações. Era o lado de lá do mundo, tão distante quanto o paraíso cristão. Ninguém por aqui o conhecia de perto, poderia imaginá-lo como quisesse, era bonito como escape da realidade. Hoje se pode discutir comunismo à vontade em um país como o nosso, que tem algumas liberdades democráticas. Na China, que se diz comunista, não há a menor possibilidade de discutir o que a esquerda tradicional sonha aqui – que o digam as centenas de sociólogos e antropólogos que iriam a um congresso em Pequim, cancelado para abafar qualquer conversa sobre o Tibete.



O capitalismo é insensível e o socialismo real uma desgraça elevada ao quadrado. Então o que fazemos? Agimos cinicamente e aplaudimos a cerimônia das Olimpíadas, depois vamos ao McDonald’s comemorar a união dos povos? Não sou padre, me recuso a pregar. Postura política jamais deveria ser a de um Cristo preso na cruz, deveria vir a cada um sem coação, só assim para dar liberdade de movimentação. No meu caso, venho boicotando produtos Made in China. Não muda muito, mas me sinto menos otário ao fazê-lo. O que se passa na China respinga em você, até mesmo na diminuição do seu salário – não é exagero, não há fatores isolados em uma economia mundializada.

Há alguns anos, evito também os produtos norte-americanos. Se no futebol ou no vôlei torcemos com tanta garra pelo Brasil contra os EUA, por que em política fazemos o contrário? Por que damos tanta moral a um país que nos explora copiosamente? O que os Estados Unidos vêem no Brasil é um reservatório de mão-de-obra barata e consumidores que abrem a perna fácil. Não estou nem mesmo sendo polêmico: não temos um governo como o chinês que nos impeça de falar de problemas evidentes. Ainda assim, reconheço ao menos uma coisa que os americanos criaram que quase compensa todos os filmes kistch, toda a fast-food insípida e os produtos superestimados que eles nos empurram. Eu não me sinto nem um pouco alienado ao dizer que considero o rock mais revolucionário do que qualquer tentativa de se implantar o comunismo. Mesmo quem não gosta do ritmo tem que admitir, a revolução sexual deve muito àqueles primeiros cabeludos. Por outro lado, confronto a teoria política mais doutrinária com maus exemplos como o da China. Que me desculpem todos meus amigos marxistas, mas não há nada que me leve a acreditar que o próximo ditador do proletariado, seja lá em que país surgir (no Brasil não vai ser, duvido muito), finalmente vai ser gentil com os trabalhadores e fazer tudo como manda a utopia. Para mim, isso é messiânico, é a crença em um lado de lá, tão fictício quanto o reino da Cocanha. É esquecer que onde há desejo há vontade de poder. Ou, como na canção de Bowie e Iggy Pop, esquecer que até mesmo um homem apaixonado pode arruinar aquilo que preza – e nem mesmo a consciência política pode impedi-lo. A meu ver, o rock dá conta da condição trágica do ser humano muito melhor do que o comunismo utópico. Basta notar que, por mais que que os roqueiros tenham seu lado maldito, falam de amor em todas suas nuances, ao passo que no comunismo, este se torna um de seus maiores obstáculos. É de desejo que eu quero falar, algo que não tem muito espaço no pensamento marxista.

8.14.2008

Flávia

Há anos eu quase não pensava na Flávia, mas ontem à noite sonhei com ela. Ela que encarnou meus maiores traumas, que me forçou aos mais estrambólicos desvios. Foi há muito tempo, no final do século passado. Já não tenho direito de guardar mágoas, mas só pelo avesso posso me certificar de que se foram. Sonhei que conversávamos em paz. Ela um pouco diferente, com os cabelos roxos, o rosto sereno. Não lembro do que dizíamos um ao outro, exceto uma solenidade madura, meio budista.
 Quem se agitava eram meu pai e meu irmão. Não os convidamos, mas faziam a ronda, presumindo um perigo que não existia. Fingíamos que não estavam ali, como se pertencessem à mera opinião.

Tenho pensado pouco na Flávia, mas penso bastante em Larissa, personagem do Puro Enquanto. Que é meu livro costurado com sonhos. Não há lugar, no livro, para uma Larissa tão suave quanto esta Flávia recente. Larissa é a Flávia que me marcou, mas não sei até que ponto elas coincidem. Confundiram-se por anos nos meus sonhos, hoje entendo que nenhuma das duas foi maldição. Por mais que a traição tenha doído na carne.

Eu a admirava e odiava ao mesmo tempo, pela audácia de dar prazer a mim e ao meu melhor amigo. Logo ela, a primeira mulher a quem eu realmente me entregava. Logo eu, que me sentia sem pai e sem pátria. Que me escorava nos outros para não saber dos pés. Que tinha nos amigos a única religião. Poetas morrem desses males, mas pouco importa, não houve erro. Eu estaria sempre só, a não ser que descobrisse em mim um bocado de deus. Sem metafísica e sem Verdades.

Às vezes me pergunto o que seria de mim se não fossem os abalos. Impossível saber, eis que sou fruto de grandes desvios. Não fossem as verdades e mentiras que tiveram início com Flávia, talvez eu me perdesse na retidão. Não fossem os descaminhos, eu jamais me alinharia. Traição maior teria sido rejeitar o Abismo, que eu tanto receava adentrar.

Não há necessidade de perdoar Flávia, pois pecado não é a melhor palavra. Não foi a mulher mais desonesta com quem me envolvi, tampouco a mais vã. Maior desgosto me causam as que traem a si mesmas. Essas, podem pensar que são respeitáveis, mas em sonho algum merecem perdão por suas faltas.

8.08.2008

E fez-se o escuro!

Conheci na faculdade Sofia Borges, que hoje tem uma boa exposição de fotografias na Maria Antônia. Não é a primeira vez que vejo fotos dela, mas a primeira em que elas me impressionam. Estão mais sombrias, impenetráveis, ao mesmo tempo mais sedutoras do que qualquer outra que ela tenha exposto. Curioso é que, diante desta nova fase, não consigo tirar da cabeça uma conversa que tivemos em um ateliê da ECA, anos atrás. Eu lhe dizia que mal me reconhecia ao olhar para trás, tamanha a velocidade com que vinha me transformando. Ela, completamente cética, insistia que ninguém jamais muda, que a essência é a mesma por toda a vida.


Não posso dizer que conheço a Sofia muito profundamente, mas algo de sua trajetória eu acompanhei, e creio que esta, por si só, derruba a velha crença no essencialismo. Ela se transferiu para as Artes Plásticas partindo de uma faculdade de moda, nem por isso mostrava os trejeitos de quem segue naquela área. Parecia uma boneca, nada afetada mas graciosa, com suas blusas listradas, macacões, o cabelo loiro e os olhos azuis. Suas fotos também eram bastante claras, transmitiam inocência. Mesmo uma série em que ela deixava à mostra seu próprio corpo me parecia singela – fotos pequeninas, ela se enrolando toda em posições fetais, uma nudez que talvez preferisse o útero ao sexo adulto. Com o passar dos anos, uma dissonância começou a se fazer ver em suas imagens, mas ainda com elementos contornáveis, ainda preservando uma ternura reconfortante. O período de transição me pareceu bastante confuso, como que primeiros passos vacilantes. A maneira de se vestir também foi mudando, tornando-se mais dark, embora não fosse nas roupas que a expressão se transformaria com maior contundência.
Com a mostra em cartaz na Maria Antônia, os caminhos que ela se dispõe a percorrer ficam mais evidentes. A distorção das lentes puxando a gravidade para baixo, águas de um verde radioativo, objetos em desencontro, olhares fugidios e corpos que a câmera falha em aprisionar são alguns sinais de seu novo universo. Por mais que o computador entre para manipular todo o conjunto, há uma tensão que o Photoshop não concilia, a beleza maior estando naquilo que a imagem não paralisa. O tempo de exposição é grande, ao menos 15 segundos os modelos se detiveram em pose rígida – em várias imagens o modelo é a própria Sofia – enquanto o espectador, por mais voyeur que seja, mal retém o que se configura diante dos olhos. Há apuro técnico, inclusive tecnologia, e uma estranha harmonia, mas o prazer estético que as fotografias proporcionam nem de longe significa que elas se deixam capturar. Os cenários são banais, quartos de dormir, uma cozinha, uma piscina, um banheiro, no entanto os objetos, sejam utensílios domésticos ou pessoas seminuas, estão cada um em uma temporalidade diferente. A diferença de luminosidade que sofrem denuncia que são incompatíveis, que a coexistência entre as partes é precária – mesmo assim insistem em ressoar umas sobre as outras.
Em uma entrevista, Sofia falou em esquizofrenia ao descrever seu trabalho. Ela não emprega a palavra no sentido mais deleuziano, mesmo assim se percebe a quebra de barreiras, a tal da desterriorialização. É isso o que me entusiasma diante de uma boa obra de arte, o fato de escapar a categorias pré-definidas. Claro que sempre se pode interpretar as imagens de muitas maneiras, e não é fácil saber se cometemos uma violência ou um acréscimo com a incursão intelectual. Pode-se, por exemplo, analisar em um nível metalinguístico: na foto de um quarto de dormir uma cortina é saturada e faz-se tão escura quanto o pano que protege um laboratório fotográfico da luz externa; em outra imagem, Sofia opera um cortador de papel com tamanha ausência de espírito que parece prestes a decepar a mão. Poderíamos enveredar por esse caminho, pela hesitação quanto a renunciar ou não aos aspectos artesanais da criação. Ou então, detendo-se no formalismo: são estabelecidas relações internas entre objetos os mais díspares, em especial o fulgor das costas nuas, de um dourado quase tão metálico quanto uma panela cujo brilho se destaca no meio da pia. Ou psicologicamente: em um banheiro, as toalhas adquirem maior nitidez que o corpo feminino; por mais que o decote esteja aberto, a promessa carnal é tão perturbadora que a mente neurótica tem o foco na higiene. E, se quisermos, temos também a situação política: pode-se falar no quanto toda imagem ludibria seu consumidor, no quanto de mistificação há na imagem que o espectador crê resolvida, capturada, representativa da realidade. No entanto, se houve ao menos 15 segundos de diafragma aberto, o que se passou nesse tempo é muito mais do que o instante apresentado.



O que mais importa não é o enfoque específico, mas o fôlego que tem a obra para nos instigar. Ao situarmos a série de Sofia em um contexto que inclua toda a arte conceitual, o contraste com o que tem sido feito é notável. A quase totalidade dos artistas contemporâneos parece satisfeita em se deixar reduzir por um discurso, por uma “explicação”, em uma perfeita submissão à crítica. A despeito do que a Sofia me disse anos atrás no ateliê da faculdade, suas fotografias me provam que algo se transforma, algo se movimenta para além do previsível. Se não há um impulso desse tipo a obra não sobrevive à dissecação, e torna-se inócuo falar em resistência, torna-se ridículo acreditar que a arte valha mais do que o encarte em anexo. Uma forte intuição parece ter guiado a artista, mais do que a descrição pedagógica de problemas já conhecidos por quem é do meio. Uma boa notícia, diante de obras como a dela, é que a abnegação não tem nada de necessário – ou seja, ninguém precisa se contentar apenas com a forma ou apenas com o conteúdo. Não é preciso ser deleuziano para lamentar que a esquizofrenia, melhor dizendo, o desejo que não se detém nos territórios, pouco tem estimulado os artistas. É somente na confluência de muitos aspectos simultâneos que uma obra não se deixa dominar, e o interessante na série de Sofia Borges é que ali se fez o escuro. Quem já revelou em um laboratório entenderá a parábola: a luz mesmo, quando intensificada, cria zonas de escuridão.



Fotografias – Sofia Borges
visitação 20 jun a 24 ago 2008
ter a sex, das 12h às 21h
sáb, dom e feriados, das 10 às 18h
visitas monitoradas agendamento no 11 3255 7182
entrada gratuita
Local:
Centro Universitário Maria Antonia - USP
Rua Maria Antonia, 294 Vila Buarque
01222 010 São Paulo SP
tel 11 3255 7182
fax 11 3255 3140
E-mail: mariantonia@edu.usp.br
web: http://www.usp.br/mariantonia/