5.29.2008

Neuroverso

Vocês já viram isso? O formato do universo se parece muito com o de um neurônio.



No Photoshop dá para justapor as imagens. Nem tomando ayohasca eu tive essa sensação, o universo inteiro ressoando nas sinapses:



Não sei dizer se tem a ver diretamente com o que eu penso sobre a relação entre signos e matéria. Mas mesmo que não signifique nada, é uma coincidência maravilhosa.

OBS: reli o post anterior agora que já consigo ver meu episódio Joana a contragosto com um pouco mais de leveza. O foda de blog é isso: a gente escreve no meio de uma crise, revela mais do que deveria, ainda por cima escrevendo mal, e quando a poeira baixa é tarde demais para apagar. Até mexi um pouco, melhorei o texto, mas acho que eu não colocaria algo assim no ar se não tivesse passado pela semana mais maldita dos últimos tempos.
Mas tá ok, eu nunca soube manter meus disfarces, e talvez alguém se divirta com minha "vida experimental".

5.22.2008

Vida experimental

Um de meus melhores amigos disse recentemente que eu, por ser um escritor experimental, acabo levando uma vida experimental. Ele o disse para amenizar o consenso, naquela expurgação às quatro da manhã no boteco, de que eu só me fodo. Ouvir isso do Cinco Folhas, alguém famoso não só pelo passado maconheiro que lhe garantiu o apelido, mas por colecionar uma aventura mais insólita que a outra, confirma o quanto, desde que comecei a escrever meus primeiros contos, há dez anos, a vida literária coincidiu com uma perda de controle acompanhada de situações beat.

Foi por acaso que encontrei o Cinco, o Daniel, e outros amigos nesse bar, no próprio dia em que ocorreram os motivos da lamentação. Eu havia acabado de tomar um doloroso pé-na-bunda da Joana, com quem passei três ou quatro meses certo de ter encontrado uma pessoa que me completasse. Não bastasse a dor da desilusão, que ainda me custa aceitar, aquele foi o dia em que percebi que teria que sair às pressas do apê na Barra Funda. Não vou dar muitos detalhes porque detesto essa história, mas pela primeira vez fui ameaçado de morte. Nunca fui de arrumar briga na rua, mas esse cara soube me irritar como ninguém e terminamos em acusações mútuas. Eu queria ficar no bairro apesar disso, mas logo vi que ele não estaria sozinho e não tive opções.

Minha vida, algo valioso que ainda não quero perder. Não porque eu goste muito dela, não porque eu considere toda vida uma bênção, não porque eu seja mais feliz do que triste. Quem me conhece de perto pode até não perceber, eu tento me divertir, tento disfarçar, mas não é tão fácil quanto parece. Passei por dois psicanalistas, os dois concordaram quando eu comentei que sou tão desadaptado quanto alguém que tenha sido estuprado na infância. Se eu faço questão de persistir entre os vivos não é porque a maior parte dos meus dias seja agradável, mas porque quero investigar um pouco mais. A experimentação vicia, ainda que te desgrace. De constante, tenho apenas a fé de que traduzir as dificuldades em arte nos redime – por mais que a arte pós-moderna tente nos persuadir à covardia. Eles pensam saber o que é experimentação, mas propõem exatamente o contrário.

O que sempre aparece aos montes em qualquer época são homens-enciclopédia, papagaiozinhos que se perdem no meio das abstrações. Muitos deles se dizem artistas, mas não criam, apenas seguem um manual de instruções. Posso dizer que leio bastante, mas mais importante do que minhas leituras é vivenciar minha filosofia, testar os conceitos fora das páginas. Para começar, tenho muito a agradecer aos meus amigos, que logo na adolescência me ajudaram a localizar as poses e os lugares-comuns. O Colégio Equipe foi valioso por isso, e não sei aonde eu chegaria sem os esquisitos que ali conheci. Além do Cinco, o Macarrão, figura brilhante com quem hoje faço curtas, o Kareka, que ao me botar um par de chifres revirou meus conceitos – mas revirou exatamente porque continuamos amigos -, o Daniel, que se quisesse, seria um dos humoristas mais cáusticos do nosso tempo, e o Caetano, um dos caras mais inteligentes que conheço, com quem estou dividindo a nova casa. Essas pessoas são impossíveis de se rotular, e não me trouxeram menos sabedoria do que as que eu encontro nos melhores livros. Depois vieram outros aliados, é claro, como continuam vindo, mas foram esses os da minha época de formação.

Inquieto que sou, não poderia parar por aí – como, na verdade, não paro em lugar algum. Aos 17 anos de idade, eu já estava convencido de que, para ser escritor digno do nome, é preciso levar a sério aquele clichê de “viver um pouco de tudo”. Eu queria montar um repertório de experiências o mais elástico possível, para depois recombiná-lo à vontade. O importante é viver coisas que me ajudem a entender qualquer tipo de pessoa, por mais diferente que ela seja de mim. Tendo isso em mente, encarei batalhas das quais eu muito me arrependeria, se não fizessem parte desse projeto ambicioso. Alguns escorregões foram quase propositais. Eu não tinha medo de quebrar a cara, porque, mesmo que eu me desse mal, aprenderia algo sobre a queda, e isso, por si só, parecia tão atraente quanto a possibilidade da vitória.

Algumas loucuras cometidas atendiam pelo nome: Flávia, que soube me derrotar com maestria, Telma, a quem devo muito do que hoje sou, Mari, que mantém em segredo uma obra poética das mais fortes, Dani, doce menina com quem vivi momentos mágicos, Lila, terrorista carioca que só se permite viver o Real, Paty, uma agente dupla na capital do poder, Malu, 40 anos de experiência e aparência de 27 - e agora a Joana, que me enfeitiçou ao bailar entre a alta filosofia e o erotismo. Todas bruxas, no bom e no mau sentido. Mulheres que me deram muita alegria, mas não sem me tomar algo. Não fosse assim, eu me sentiria morto. A questão não é o rock and roll, não é a trilha sonora ou a indumentária. De quando em quando, preciso colocar minha própria alma na mesa de apostas. Quem não está preparado para perder também não sabe o que é a vitória.

Acho engraçado lembrar dos meus momentos mais corajosos – não só com as mulheres, mas realizando atos de terrorismo poético, consumindo drogas mesmo com risco de "não voltar", trabalhando em Londres para bancar aventuras européias, combatendo os preconceitos de três gerações de artistas, dizendo tudo o que eu penso mesmo ciente das represálias – acho engraçado, porque a verdade é que eu sou uma das pessoas mais tímidas que eu conheço. Se é que pode ter uma explicação, acredito que esteja na lei da inércia. Pelo que vejo, as pessoas costumam se sentir bem em vários ambientes e em situações mundanas, ou ao menos mais à vontade do que eu, o que as desobriga de rupturas radicais. Quanto a mim, demorei demais para sentir que tenho qualquer direito à existência. Não houve – ao menos até onde eu sei – nenhum trauma de infância, nenhum estupro ou proximidade com a morte. Mas fui criado de um jeito muito esquisito, enlouquecedor em seus detalhes, que atrasou muito minha aproximação com “o mundo real”.

L’enfant le terrible é alguém que aos 12 anos mal sabia dar "Bom dia”. Um pouco antes disso, tinha dificuldade até de virar o pescoço para olhar para as pessoas. Meus gestos eram todos travados, minhas palavras não saiam da boca, por mais que eu tentasse. Foi essa minha tabula rasa. Vocês podem achar que é exagero, romantismo, existencialismo barato – ainda mais vindo de um artista, que adora criar mitologias sobre si.... mas só eu sei como foi minha evolução, e acho que foi tanta força que eu despendi (e ainda hoje despendo) para simplesmente me convencer de que posso existir, de que posso falar, enfim, de que posso viver, que a continuação desse impulso só poderia ser acelerada. E um tanto descontrolada.

Além disso, não gosto muito do mundo à minha volta, antes de mais nada é o contexto que me causa mal-estar. Por isso, aproveito o excedente de energia - que depois de disparada se mostra dificílima de se reprimir – para tentar tornar o mundo um pouco mais a meu gosto. Nessa hora, faço questão de sair dos meus parâmetros semi-autistas para atingir um gosto e uma inteligência à altura do meu embalo. Tanto nas leituras quanto na vida experimental, percorri a vida em profundidade e extensão, menos para contar vantagens do que para entender o que é estar vivo. Qualquer roteiro era válido, mesmo porque ninguém jamais me indicou qualquer ponto de partida. Quando todos os valores se equivalem, quando saímos dos jogos das convenções, nossas escolhas tendem a ser estéticas, poéticas – por isso, também, a variedade das coisas com que me deparei.

Não interessam os detalhes, o sentimentalismo barato, dizer que quase sucumbi, que durante anos estive doente, que de uma hora para a outra perdi tudo o que sustentava minha vontade de viver. Quem quiser uma história triste, que procure nas novelas mexicanas. Mas não tenho dúvidas de que peguei atalhos que a maioria das pessoas passa a vida inteira sem conhecer. Sobre arte, sobre relações humanas, sobre nossa psicologia. Metade do que eu sei se deve às armadilhas em que caí.

Esse é o texto mais constrangedor que já publiquei, mas se não fosse também um dos mais importantes eu pouparia a mim e ao leitor. Tem algumas coisas que eu faço questão de dizer, que, se por acaso eu morrer de maneira abrupta, ficarei mais tranquilo por ter deixado registrado. Uma delas é que eu jamais teria sobrevivido à minha trajetória sem boa arte. Se não existisse boa literatura no mundo, e bons filmes, boas canções de rock, boas pinturas, se não fosse o exemplo dos artistas de vanguarda, eu teria desistido. Não digo suicídio - embora tenha pensado muito nisso - mas fraqueza mesmo. Quando uma pessoa não encontra mais nada que a prenda à vida, ela tende a adoecer e morrer. Acontece com outros e estava começando a acontecer comigo. A arte me salvou, isso não é exagero. É verdade que o remédio de um pode ser o veneno de outro, mas acho que distinguo o tipo de arte que salva uma pessoa que vai até seus limites. E sei, igualmente, que arte prejudica, que te coloca mais perto de sucumbir. Foi na pele que eu senti: a “morte da arte” dos pós-modernos não me fez mais forte, mais corajoso, mais inteligente, não ampliou meu espírito. Não causou nada de bom a quem mais precisava de arte - quando todas as outras ilusões se despedaçam, só resta a ilusão que se assume como tal.

Esse atalho é precioso: ao longo de anos fui reconhecendo, fisiologicamente mesmo, que tipo de arte enaltecia meu espírito e qual me enfraquecia. Não vou resumir tudo num post, mas em geral é o contrário do que pode parecer: a arte “politicamente correta” nos afunda. Se nem no imaginário você se liberta da culpa, aquilo vai te esmagando, te paralisa, e, mesmo que pareça adequado à primeira vista, impede de andar tanto quanto se poderia. Um pouco de agressividade, na medida certa, é o que dá a energia necessária para seguir em frente. Quem sabe até a energia necessária para um gesto caridoso – mas não o faça com culpa, não desperdice teu lado animal, confie um pouco mais nos instintos. Do contrário, nem mesmo tua visão de amor será forte o bastante.

Há muitos anos tento desvelar as camadas da mentira, e por mais que eu desconfie de todas as aparências, entendo que o amor é possível. O erro está somente em achatar o amor. É um sentimento real, no entanto bem mais esquivo do que Hollywood nos leva a crer. Dá para estender o mesmo pensamento para a sociedade. Existe uma vontade autêntica de transformar o mundo, mesmo que em muitas pessoas isso fique reprimido. Não tenho dúvidas de que se possa mudar muitas coisas, a começar pela mentalidade, mas é preciso saber até onde o sonho tem chances de se tornar real. Não acho possível, por exemplo, uma utopia clássica, tipo socialismo ortodoxo. É simplista demais. Andei pensando nisso por anos, cheguei a me perguntar se eu não deveria abraçar o socialismo, e agora sinto que posso pronunciar algo a respeito, sinto que conheço algo da dinâmica das forças e fraquezas do ser humano. Uma utopia dessas exigiria uma estabilidade para a qual o homem não tem a menor predisposição. Nesse ponto, os livros de psicanálise são mais úteis do que os de política, e melhor ainda se acompanhados de experiência de vida.

Tente transitar por diferentes estados de espírito, aprender com todo tipo de gente, imaginar-se sob diversas peles, olhar nos olhos dos amigos e dos inimigos. Podem contra-argumentar, dizer que eu nunca saí do semi-autismo de que falei, compará-lo com a alienação, mas acho que é exatamente por saber o quanto custa reconhecer a realidade que não consigo vislumbrar a humanidade inteira fazendo o mesmo. Tanto o cara da Barra Funda, sem estudo nenhum, quanto a Joana, especialista em Escola de Frankfurt, estão presos demais às leis da inércia. Um, em estado bruto, a outra, numa inércia das abstrações, mas o resultado é igualmente uma fuga. Quanto à Joana, não a coloco como inimiga, mas alguém que me entristece, que eu sei que dificilmente vai ser feliz. Não é para me vingar do pé na bunda, mas lamento muito ela ser a prova viva de que nem toda a filosofia do mundo é o bastante para livrar uma pessoa das disputas de poder mais mesquinhas. Eu devo ter minha parte de culpa, mas o fato maior é que a inveja matou uma vontade de amor que no início parecia boa, e eu sei que ela simplesmente não poderia evitar, por mais que tentasse.

Parecia a melhor relação que dois fodidos como nós poderíamos ter, mas novamente a inércia, mais forte que qualquer sonho, foi destruindo tudo que havia de bom. Saindo da sessão fofoca para a política, não sei porque seria diferente em qualquer governo que se dissesse utópico. E não estou comparando laranjas com maçãs - acreditem ou não os marxistas, o poder depende totalmente de pré-disposições subjetivas.

Ainda tem mais uma coisa que sinto muita vontade de contar, também descoberta pelas minhas andanças à deriva. Mas essa é a que eu mais hesito em expor abertamente. É algo que aparece, aqui e ali, nos meus livros, mas quando me perguntam eu costumo dar uma resposta atravessada. Ainda estou investigando, a resposta que dou para mim mesmo ainda é bem provisória. Para piorar, a obrigação de vocês é duvidar, seria falta de inteligência acreditarem só pela boa vontade. E seria jogar tudo fora passar a ser visto como um Paulo Coelho - ou como um louco, um sequelado, um autista. Nietzsche, Foucault, Schopenhauer - transvaloração de todos os valores, a morte do homem, o niilismo, para tudo isso havia espaço no meu hardware, mas reformular meu materialismo é, intelectualmente, o que mais me desafia. Era o que eu menos esperava, mas pelo jeito quanto mais se peregrina, e quanto mais desprevenida é a entrega, maior a chance de se deparar com esse tipo de coisas.

Só posso adiantar até aqui: de tanto cavoucar experiências, algumas delas se abriram para conjecturas “metafísicas”. Com aspas mesmo, não quero subentender "deus". Só vou poder falar disso com maior clareza depois de 2012 - não por ser o fim do calendário maia, mas quando o acelerador de partículas de Genebra nos informar ao menos em quantas dimensões nós vivemos. Nada a ver com What the bleep do we know, estou falando da física mais séria, cogitada até por Stephen Hawking. Não acho que na resposta vai ter “deus”, mas sim um amplo emaranhamento, uma sintaxe das coisas e eventos - não-causal, não finalista. Não exatamente o Supremo Esteta como eu coloquei no Será. Será é ficção, mas posso dizer que imaginei aquilo enquanto quebrava a cabeça, tentando entender o que de mais inexplicável já me aconteceu. Não duvido muito que a ciência um dia explique melhor essa interação "transcendente" entre signos, matéria e eventos. Talvez ainda neste século.
Espero estar vivo até lá. É um motivo a mais para viver.