3.25.2008

Ronaldo Cagiano escreve sobre o Será

Saiu no último domingo no Hoje em Dia, que circula em Minas Gerais e Brasília, uma resenha do autor de "Dicionário de pequenas solidões" sobre meu "Será".


Alegoria sobre o abismo

Ronaldo Cagiano

Tendo iniciado com o pé direito sua estréia literária com os contos de A grande incógnita (Annablume, SP, 2005), o jovem escritor paulista Ivan Hegenberg incursiona com novo fôlego no romance Será (Ragnarok, SP, 2007), cuja história faz um (in)tenso mergulho na realidade contemporânea, com um olhar crítico sobre os rumos da técnica e da ciência, a partir da revelação da vida, dos condicionamentos e ações de personagens desajustados emocional e socialmente.

O universo narrativo de Ivan Hegenberg projeta-se para o século XXIII, uma época que sofre os efeitos de um caos já ancestral, que se manifesta na estagnação da vida, nos prejuízos causados pelos desequilíbrios sociais e ambientais, levando ao esgotamento não só da natureza, mas também à falta de perspectiva para a própria ciência, ainda que os seres tenham a seu favor todos os benefícios de um progresso alcançado nos séculos passados.

Ao mapear esse novo ambiente em que, de um lado o homem depara-se com os resultados da evolução e, de outro, com as conseqüências da transformação da vida pela tecnologia, criando suas ilhas tanto de excelência produtiva quanto de isolamento, solidão e neurose, o autor compartilha com o leitor uma preocupação com os destinos da humanidade e do Planeta, questionando o modus vivendi de uma civilização cujos ícones vão sendo paulatinamente desmantelados.

Este século XXIII que serve de pano de fundo à trama é permeado de contradições. Não se trata de uma visão hiperbólica, ou escatológica, do caos inadiável, mas a percepção dos caminhos que podemos trilhar caso a condição humana insista na prevalência de uma lógica vital que privilegie o “ter” no lugar do “ser”, do virtual em vez do real, o que vem levando de roldão a sociedade a um estágio cujo ritmo avassalador impõe a cada um relações descartáveis e um profundo abismo existencial, ensejando uma crime que é fruto do escalonamento de valores morais, espirituais e éticos.

Ao abordar a questão da transição do homem para esse “futuro” de aparências e conveniências, cujo desenvolvimento cuidou de arraigar ainda mais o materialismo e a racionalidade em lugar de ratificar a alteridade e o encontro, Ivan denuncia a forma mais sutil de medievalismo, representada pelo fundamentalismo das religiões, das ideologias políticas e do mercado. Instituições que criaram uma relação esquizofrênica do homem com o seu semelhante e o próprio meio e que impõem um ritmo autofágico, sem esperança para qualquer projeto onírico. Será traduz-se numa narrativa metafórica do abismo em que estamos metidos, sobre a vida que poderia ter sido e não foi, território em que se percebe a tênue fronteira entre o delírio e a sanidade.

Romance repleto de surpresas e imprevistos, com nítidas influências niilistas e clariceanas, antecipa uma reflexão sobre o eterno embate do espírito contra a consciência, da vida contra a morte, do virtual contra o real, da tecnologia contra os sentimentos. Ao mesmo tempo perturbador e poético, mas que nos coloca frente a frente com nossos dilemas e faz uma competente e sensível crítica dos valores na sociedade contemporânea, na expectativa de um caminho com volta. Com este segundo livro, o autor consolida seu trabalho e apresenta-se como uma das promissoras vozes da nova ficção, demonstrando completo domínio da arte narrativa.

3.01.2008

A tropa e o urso


Não é nada fácil encontrar o encaixe. O que leva um diretor como Costa-Gravas, que há décadas aborda apenas temas políticos em seus filmes, que desafia a igreja e o capitalismo com a convicção de um bolchevique, contradizer tudo o que representa ao conceder o Urso de Ouro a "Tropa de elite", considerado o filme mais fascista dos últimos tempos?

Verdade seja dita que a esquerda está cada vez mais perdida, mas acho que ninguém esperava tanto. É como se ele fizesse de propósito, como se o objetivo fosse o de causar indignação em seu meio. Na qualidade de presidente do júri em Berlim, ele certamente estava a par de todos os ataques ao filme de Padilha - sobre a apologia à tortura, sobre a ação repressiva colocada como solução, sobre o desdém para com o pensamento crítico - mesmo assim, um dos diretores vivos mais engajados parece ter dito: "Eu não me importo com o fato de o filme ser fascista. Me empolgou, é isso o que interessa." E ele vinha insinuando isso desde a abertura do festival, ao declarar que a diferença de qualidade entre um filme de ação e um filme de arte seria mera questão de gosto.

São muito canhestras as tentativas de dizer que "Tropa de elite" traz uma visão política interessante, por mais que alguns insistam em fazê-lo. Tecnicamente é bem realizado, e como filme de ação ele é mesmo envolvente. Mas, até eu, que detesto a patrulha ideológica quando se trata de arte, acho que o filme apela. Posso ter gostado de algumas cenas, posso até ter o péssimo gosto de curtir a trilha sonora, mas não posso dizer que seja um filme inocente. A história nada mais é que a de um recruta, acompanhado por seu capitão, que aos poucos abandona os estudos e a luta através das idéias para abraçar a luta armada, violenta e autoritária. Se isso não carrega uma sedução para o fascismo, alguém me dê uma definição melhor do termo, porque não acho que estou sequer ideologizando. O que eu vejo em "Tropa de elite" é o mesmo que vejo no programa do Datena: a crença de que nossos problemas se resolvem com repressão policial, em vez de investimentos sociais ou de uma mentalidade mais humanista. Não vale a pena considerar o filme como ironia, ou seja, tomando o Capitão Nascimento como vilão para fazer com que o filme pareça auto-crítico. As escolhas do roteiro, da mise-en-scène e até mesmo do cartaz de divulgação - "Existem várias versões para uma guerra. Essa é a verdadeira" - confirmam que o filme foi feito para as massas, que é apenas a versão favelada dos filmes de ação hollywoodianos.

Voltando a Berlim. Se eu detesto o maniqueísmo da esquerda ortodoxa, prefiro evitar chamar Costa-Gravas de fascista, apesar de achar que ele errou feio ao consagrar esse filme que, na minha opinião, não deveria dar orgulho aos brasileiros. Também não vou dizer qeu "ele envelheceu", seus filmes recentes são contundentes. Ele foi corajoso ao enfrentar a igreja no "Amém", e gosto ainda mais de "O corte", em que um executivo assassina um a um os concorrentes a um cargo na empresa de seus sonhos. Andei pensando no caso do cineasta, para ver se dá para chegar a algum lugar com esse episódio todo.
Vamos admitir que Costa-Gravas tenha gostado do filme fascista. Mas vamos admitir também que filmes lamentáveis do ponto de vista político possam ter, por outro lado, alguns encantos. Se quisermos ser honestos conosco, não temos como evitar essa constatação. Eu diria até que o problema não está nesses filmes. Está na recepção. Em um mundo onde todos fossem extremamente críticos e inteligentes, não haveria problema algum em filmes como esse circulando por aí - ao menos, é melhor que circulem do que impor a censura. Eu tenho capacidade de separar o que há de válido e o que há de venenoso em um filme como "Tropa de elite". O diretor de "O corte" também, muito provavelmente. A ética que seguimos na vida não precisa ser a mesma ética do que apreciamos em uma obra de arte. Pode inclusive ser oposta, porque com a ficção nos descansamos um pouco de nós mesmos. Às vezes precisamos disso. Às vezes, é esse descanso que nos permite traçarmos o caminho que mais nos interessa, com a certeza renovada de que as opções divergentes que se apresentam a nós podem ser descartadas. No mínimo, precisamos imaginar aonde vão dar as bifurcações, antes de escolher para onde seguir.

Acho que nesse ponto, começo a falar de algo que a esquerda ortodoxa tem dificuldades em perceber. Talvez até mesmo o diretor de filmes como "Z" e "O corte" se sinta sufocado com a patrulha ideológica, que não permite o menor desvio, o menor pecado, que está pronta a simplificar o mundo em duas categorias: "reacionários" e "revolucionários". Não duvido que, para se sentir livre e realizar filmes de resistência com um mínimo de tesão pelo que faz, ele tenha que deixar claro que os faz porque quer, não porque obedece a uma diretriz. A melhor maneira de fazer isso é mostrar que, como todo ser humano, ele tem sentimentos contraditórios. Deleuze já dizia que todos temos nosso lado fascista, Foucault dizia que o inimigo está dentro de nós, e Freud que no inconsciente somos todos sádicos. Desconsiderar essas questões fortalece as ideologias, mas é extremamente repressor, utiliza-se a culpa como instrumento de poder. Costa-Gravas mostrou que sabe disso, e também José Padilha, que não é um diretor mal-informado. Aliás, o brasileiro tinha condições de ser um cineasta de resistência - é dele o documentário "Ônibus 174", de enfoque mais social - mas preferiu debandar para o cinema de massa. Mera especulação, mas talvez ele tenha virado a casaca ao sentir que a esquerda ortodoxa é, muitas vezes, tão opressora quanto o Capitão Nascimento. Mais claro é que Costa-Gravas, apesar de ter se mantido fiel ao cinema engajado, sentiu-se identificado com a bifurcação, a ponto de dar uma esculachada na crítica militante, deixando claro que ele não está preso a uma doutrina. Acho que os dois exageraram na dose, não precisavam flertar logo com o fascismo para romper com o maniqueísmo vigente. Ou melhor: espero que eles estejam enganados, e muito. Espero que para romper com a arrogância da esquerda mais inflexível, simpatizar com seus piores rivais seja completamente dispensável. Espero que mesmo sem excessos desse tipo, que não apontam para a liberdade, possamos chegar a uma crítica cultural e a uma atuação política que não tenham medo de se questionar.