9.25.2007

"Santiago" e a impossibilidade de sermos sinceros

O título acima foi o primeiro que me ocorreu. E a frase anterior já foi usada em um conto meu. No entanto, dessa vez não pretendo escrever uma ficção, e sim discorrer sobre um documentário. O problema, porém, começa no próprio “Santiago”, que assume a crise: não está bem certo quanto a ser um registro da realidade ou ficção. O mesmo posso dizer do presente artigo, que fica no meio do caminho entre a análise e a invenção. Por isso o título repleto de aliterações: sinuoso, sibilante. É proposital o efeito, porém se este é sincero ou apelativo, é algo difícil de se responder.
O último filme de João Moreira Salles se insere nas discussões contemporâneas com exímia competência, contudo sem submissão. É filme complexo, que opera em várias camadas, ao mesmo tempo revelador e traiçoeiro. Trata-se de um documentário sobre um documentário. Em 1992, João filmou algumas cenas de Santiago, o mordomo de seu tempo de infância, na mansão de uma das famílias mais influentes do país. Os poucos takes registrados logo foram abandonados, e 13 anos depois, movido por um sentimento nostálgico de retorno ao lar, eis que João recupera esse que foi o único filme inconcluso de sua vida. Reorganiza as sobras, fazendo delas uma reflexão sobre o que constituiria uma obra.



O tema não é apenas a obra de arte enquanto tal. Isso está presente o tempo inteiro, sem dúvida alguma, na medida que o diretor descortina os processos e deixa à mostra todo o artificialismo, todos os truques que empregou junto a Santiago, duplamente empregado, subserviente às muitas manobras de João em busca do máximo efeito estético. Aos 45 anos, João Moreira Salles revê todo esse material com profunda desconfiança, evidenciando o quanto havia de manipulação na feitura do documentário, entre comandos de “repete” e “corta” e mise-em-scènes demasiadamente calculadas para algo que supostamente seria o registro de uma realidade.
O filme ainda vai além dessa constatação, já bastante corrente, de que a mediação corrompe o objeto retratado. Tem a coragem de mostrar que jamais somos sinceros. Não apenas como artistas, ou documentaristas, ou como críticos ou mesmo quando auto-críticos. Tudo isso é exposto sob seu caráter de mera construção. Até mesmo a voz que narra em primeira pessoa, que tantas vezes lamenta o quanto o filme de 1992 violentava a espontaneidade, constitui uma nova farsa: a voz do narrador não é a do diretor, apesar de falar em seu nome, mas a de seu irmão Fernando. Temos aí uma impossibilidade de nos apropriarmos de nós mesmos, de falarmos sem mediações, e menos ainda de alcançarmos uma verdade neutra. Por sua vez o mordomo, Santiago, é alguém que teatraliza sua vida do início ao fim, fazendo da estética uma morada tão reificante quanto a mansão dos Salles. O uniforme fazia dele um obediente mordomo, e a arte, entranhada nele em cada gesto, compreendida com uma reverência austera,
hierática, fazia dele mais um personagem do que uma pessoa.




O personagem Santiago, tão intrigante quanto o de qualquer conto de Borges, dedicou toda uma vida à inventariação de praticamente todas as famílias aristocráticas da humanidade. Seu maior orgulho era a pilha de 30 mil páginas reunindo nomes e referências de mais de seis mil anos de representantes da elite de todo o planeta. Deixava claro que a imaginação o transportava para todos esses salões, onde poder e cultura resplandeciam ainda mais que na mansão onde ele foi um empregado culto, atencioso. Aliás, o próprio João, ao final do filme, admite que não soube se aproximar do objeto de seu filme, de Santiago, e menciona a hierarquia entre patrão e empregado com uma espécie de mea culpa, mas poderíamos acrescentar que o excesso de fantasia também fazia com que Santiago se tornasse difícil de se aproximar. Era um homem inapreensível, porque, de certa maneira, era fictício. Foi um personagem de carne e osso, que passou da vida para a morte, do esquecimento temporário para a eternidade cunhada pela arte, porém sempre distante da realidade.
O que mais me anima no filme, no entanto, é perceber que a auto-crítica pode ser desafiadora, mas não necessariamente erosiva. A pertinência da estética passa por todos os questionamentos cabíveis, e nem por isso é condenada. É inegável que em “Santiago” a obra revela cruamente seus aspectos ilusórios, brechtianamente, e, ainda mais interessante, o próprio artista se desconstrói, mostra um lado seu que nada tem de exemplar – ao confessar as manipulações que efetuou como diretor e o abuso de sua posição hierárquica de antigo patrão, coisas das quais não se orgulha porém não esconde. A arte contemporânea tende a negar a aura do objeto artístico, contudo é muito comum que essa aura se transporte para o próprio artista, transformando-o automaticamente num oásis ético e também numa espécie de Midas (especialmente nas artes plásticas, onde a sentença “Arte é tudo aquilo que o artista chama de arte” se tornou salvo-conduto para pilantragens de toda sorte). No filme de João Moreira Salles, apesar de todas as ressalvas feitas, nada indica que a beleza seja impossível. A própria opção pela voz do irmão como narrador do filme proporciona ambigüidade, mas também responde a um critério estético: o diretor disse em entrevista que achava sua própria voz “feia” e preferia a de Fernando Salles, que de fato é bem mais aveludada, encorpada, desliza melhor e nos faz uma boa companhia ao longo dos 80 minutos. Também é citada uma cena de “A roda da fortuna”, filme de Fred Astaire que era o favorito de Santiago. João comenta o que acha da cena em que o casal principal se concilia através da dança: “Bonita”. E é o que lhe basta, não é o fato de algo ser belo que o torna pernicioso. Mesmo porque não é a beleza que nos impede de chegarmos à verdade, ao contrário do que alguns pensam. Não chegaremos jamais. É admirável a dialética do filme: desmantela-se e se reconstrói, é auto-crítico sem contudo anular o que está sendo criticado.



Um adendo que talvez seja pertinente: nós podemos desconstruir completamente a vida, considerar o quanto estamos presos a inúmeras contingências, e apesar disso continuar afirmando-a. Se alguma liberdade é possível, só pode começar justamente aí, numa consciência que não precisa de atestado de óbito para se vivissecar. O filme de João se situa na fronteira entre arte e vida, mas não me parece negar nem uma nem outra: há um intenso diálogo entre as duas instâncias. Mesmo assim persiste uma margem, são dois países que se distinguem pelo emprego de suas leis. O documentário de 1992 era imperfeito porque espetacularizava a vida, que deveria valer por si mesma, espontânea. Já a cena de Fred Astaire vale pela beleza porque é ilusão consentida, é truque porém jamais se propôs a não sê-lo.
Quanto a este artigo, que não pretende rivalizar com o filme, muito mais complexo, fiz o que pude para torná-lo agradável. Gastei algumas horas escolhendo as palavras, pensando em sua sonoridade e nas associações que elas despertam, a fim de construir um conjunto harmonioso. Não me ocupei apenas do conteúdo, busquei também os meus efeitos. Não chego a dizer que realizei aqui uma obra de arte, contudo provavelmente contei alguma mentira, mesmo que não tenha percebido, o que de certa forma aproximaria esse texto ao de uma ficção. Aliás, devo confessar que não estou muito certo de que o título acima foi o primeiro que me ocorreu. Sinceramente creio que sim, mas minha memória é um tanto enevoada, difusa, nunca registra muito bem a realidade...

9.11.2007

Bush e Bin


Mais um 11 de setembro, procurem não ficar com medo.
Bush de um lado, terroristas do outro, e no fundo eu só queria morar num mundo em que o mais importante fosse a imaginação. Infelizmente não é. A guerra física não é a mais interessante nem a mais gloriosa, mas como convencer a quem só tem talento para oprimir? E como ignorar tudo isso, se a cada tiro que ressoa os poemas mais belos parecem um tanto mais frágeis, insuficientes?
Não há moral na história, nunca houve, não esperem que comece a haver agora. O chato é que ninguém aprende nada. Em Nova York vão erguer um prédio ainda maior do que o das torres destruídas, apenas para que o ódio estimulado ganhe alguns andares. Da parte de Bin Laden, temos a "singela" declaração de que os Estados Unidos podem se ver livres do terrorismo caso se convertam ao islamismo. É verdade que os fanatismos se parecem muito entre si, mas não vejo as pessoas trocarem um pelo outro com tanta facilidade.
Ainda assim, dos dois, acho Bin Laden o mais inteligente. O que não é difícil, dado que esta humilhação a gente tem que engolir: o homem mais poderoso do mundo no momento, aquele que chefia a White House, tem o Q.I. do Forrest Gump. A competição ficou mesmo fácil para o árabe, mas acho que qualquer um que tenha assistido "Na trilha de Bin Laden", documentário transmitido essa semana na GNT, percebeu que aquele sujeito esquisito não entrou para a história à toa. Há décadas ele vem elaborando estratégias, discursos e alianças com uma habilidade surpreendente.
Não acredito muito na versão Michael Moore de que o árabe e o americano são parceiros de crime, de que tudo é um grande show, de que eles fazem a festa juntos para depois dividir os lucros. Acho que até poderia ser uma hipótese coerente - ou seja, Bush e sua equipe se importam tão pouco com o próprio país que são capazes de tudo, mesmo atrocidades inolvidáveis, já que gerar pânico é maneira garantida de movimentar deliciosos dólares bélicos. Seria no mínimo plausível, caso o Pentágono não tivesse sido atingido. Teorias conspiratórias fazem sucesso, e Bush, psicopata como é, até poderia achar divertido derrubar dois grandes prédios antes de construir um maior, mas não faz sentido algum incluir a sede da inteligência militar. Por mais que ele ligue muito pouco para a inteligência de modo geral, não o imagino dando um tiro no próprio pé.
Aliás, precisamos mesmo de teorias conspiratórias desse nível? Não vejo necessidade alguma de exageros para se constatar a amplitude da ardileza. Alguns atos terroristas são menos lucrativos do que outros e eventualmente abalam o mercado, mas nem por isso deixamos de notar que a globalização projeta sombra por toda parte. O objetivo principal tem sido alcançado em escala planetária, tanto no ocidente como no oriente, e tanto na jihad quanto no american way of life: implantou-se a idéia de que a vida não é moeda de grande valor. Alguns vivem tão-somente em favor do dinheiro, outros morrem contra os valores de uns. E os sobreviventes que se sintam bem-aventurados, já que essa lógica não tem prazo determinado para expirar.