2.26.2007

O carnaval-arte de Paulo Barros


Oba! Essa saiu no Cronópios:

Não se pode colocar todo o peso da palavra “alienação” no futebol ou no carnaval. Gostar de folia ou de esporte não implica necessariamente em ignorância quanto a outros assuntos mais sérios. Aliás, de que vale uma filosofia que não preze a alegria ou que ignore o corpo? Algumas das pessoas mais inteligentes que conheço amam estas duas festas tipicamente brasileiras - a que se celebra com a bola nos pés e a que se celebra com pandeiros e fantasias. Todos os povos têm seus rituais, e os nossos são marcados pelo improviso, pela malícia, pela ginga. Tradições nacionais costumam ser rígidas e repetitivas, as nossas ao menos se apresentam com alguma criatividade. É claro que as válvulas de escape se tornam bastante limitadoras quando hipertrofiadas, quando excluem os demais aspectos da vida. Mas há uma outra questão que eu pretendo enfocar até o final do artigo.




Eu pessoalmente aprecio mais o futebol do que o carnaval. Deleito-me com a inteligência e a plasticidade de uma bela jogada, ao passo que me sinto um pouco gringo no carnaval, principalmente por não entender nada de samba. No entanto, contrariando minhas próprias expectativas, fui fisgado este ano pelas imagens do sambódromo, quando me deparei com a Unidos do Viradouro. Raramente perco mais do que dois minutos assistindo aos desfiles, mas por sorte calhou de a Viradouro atravessar a Marques de Sapucaí no momento em que parei para olhar. E foi uma sorte mesmo, eu tenho que admitir que esse tal de Paulo Barros, o carnavalesco por trás da escola, me deixou fascinado. Ele inovou com muito bom gosto, nos presenteando com um resultado tão sofisticado que não há porque hesitar em chamá-lo de um verdadeiro artista.





Pesquisando um pouco, notei que nos anos anteriores ele já trazia elementos novos à passarela. Em 2004, apresentou um carro repleto de pessoas pintadas de azul, que, cintilando em coluna ascendente, representavam a cadeia de DNA. Em 2005, Dom Quixote foi o fio condutor para o mundo da imaginação. Em 2006, Mozart visitou o Brasil, entrou em uma roda de samba e regeu a imensa “ópera de rua”. Um dos carros alegóricos era um gramofone gigante que se convertia em orquestra, onde em sincronia perfeita as pessoas tocavam música ou trocavam o disco.





Neste ano o mote foi o Jogo, abordado desde os cassinos até o pinball, passando pelos esportes e por “Onde está o Wally”. As soluções visuais surpreenderam, indo muito além da ostentação kitsch que se costumava ver nos desfiles tradicionais. Um dos carros que mais me causou impacto foi a alegoria dos Jogos Olímpicos. Mulheres moviam os braços em nado sincronizado, tendo uma lona azul imitando a altura da água na cintura. Subitamente, a lona é retirada, e o que era piscina se transforma em quadra de basquete, com jogadores quicando a bola ferozmente. O que era harmonia feminina e leveza se converteu em confronto direto e combativo - dois aspectos do lúdico sintetizados com muita graça. Também me intrigou o carro do Castelo de Cartas, virado de ponta-cabeça em alusão ao samba-enredo “A Viradouro vira o jogo”. As rodas expostas para cima provocavam uma sensação de estranhamento, por se tratar de uma opção mais conceitual do que estética. Faz parte do estilo de Paulo Barros não só oferecer o belo, mas também causar suspensões e deslocamentos, tal como os bons artistas plásticos.





O que confirma o temperamento desse carnavalesco como o de um autêntico criador é sua disposição para o risco e seu perfeccionismo. O melhor exemplo disso é sua perigosíssima decisão de colocar a bateria sobre um carro alegórico. Se a bateria errasse, o desfile inteiro desandaria. Mesmo assim ele fez 300 ritmistas subirem e descerem as escadas de um elegante tabuleiro de xadrez sobre rodas. Era grande a chance de tamanha ousadia terminar em vexame, sendo que os solavancos do carro poderiam colocar a batucada em descompasso. Mas, graças aos ensaios exaustivos, tudo correu bem, e a bateria foi aplaudida pela multidão. É pouco provável que alguém jamais tenha efetuado na Sapucaí manobra mais corajosa.





Apesar de tudo isso, e aqui entra o que chamo de problema, a Viradouro amargou um quarto lugar na avaliação do júri. A maior parte da imprensa apontava a escola como favorita ao título. Eu, fã instantâneo do artista, torcia para que se corroborasse o que me parecia quase certo. Para ter base de comparação, dei uma olhada nas outras escolas, e confesso que encontrei cenas bem interessantes – por exemplo, na Mocidade, Adão se destacava de um livro como se fosse uma ilustração ganhando vida - ainda assim, nada atingia o patamar do que a Viradouro apresentou. É por isso que me senti impelido a escrever este artigo, para sublinhar o quanto, neste país, no atual momento histórico, aquele que vai além do esperado é pouco valorizado. Nas mais diversas áreas, o que se cobra é, no máximo, que se faça bem-feito o que já é de conhecimento público, e quem apresenta algo a mais é advertido e desestimulado. Isso vale até mesmo para o carnaval, coisa que, gostemos ou não, é a cara que mostramos para o resto do mundo.Vale também para o futebol - ou não vimos, recentemente, Robinho no banco de reservas, apesar de ter sido o único jogador da equipe a atuar com brilhantismo? Se para a maior parte do planeta o Brasil não é mais do que o país do futebol e do carnaval, eu preferiria que ao menos nessas atividades exibíssemos inteligência, criatividade e arte. Alguns exemplos provam que isso é possível. Paulo Barros, a meu ver, apresenta algo de excepcional, e poderia ser um motivo de orgulho, alguém capaz de transfigurar em alguma medida a auto-imagem do brasileiro. É uma pena que não haja espaço para essa renovação – o carnavalesco já declarou que não terá condições de ousar novamente em futuros desfiles, pois as escolas cobram resultado – acho que com isso a perda para o país, em termos de identidade, é inestimável.

2.04.2007

Uma auto-biografia não-autorizada

Aos 26 anos, começa a me dar comichão de escrever um livro auto-biográfico. Não sei se é uma velhice precoce, um certo medo de morrer sem mostrar quem fui, ou porque sinto estar no final de um grande ciclo da minha vida. Acho que narrar esses meus anos “de formação” daria uma história tão boa, e tão inusitada, quanto qualquer ficção que eu pudesse criar. Quem leu meu livro de estréia sabe o quanto minha imaginação adentra territórios pouco explorados – porém a minha vida ninguém teria sido capaz de imaginar, nem eu, nem Garcia-Marquez, nem Balzac, ninguém.

Se eu contasse numa mesa de bar, dia após dia, minha trajetória inteirinha para um desconhecido, duvido muito que ele acreditasse, por mais crédulo que fosse. Aliás, mesmo que eu a narrasse para meus melhores amigos, cada um só aceitaria um pedaço, diria que o resto “não é a minha cara”. Colocar tudo no papel é a única maneira de provar que todas as minhas faces se amalgamam numa pessoa só. Posso já conhecer alguma coisa do enredo, mas para torná-lo convincente, realista, eu teria que caprichar na forma, chegar numa linguagem tão elástica quanto a diversidade do personagem em questão.

O mais difícil de compreender são os meus contrastes. Vou dar exemplos, sem aprofundar. Como é que posso ter feito uma performance terrorista-poética, com um megafone, diante de centenas de pessoas, se até os quinze anos eu era tão travado que não sabia sequer conversar? Como posso ter cenas de putaria das mais desinibidas no currículo, sendo tímido como até hoje sou? Ou o oposto: como posso manter uma inocência romântica quando me apaixono, depois de ter transposto os limites da decência? E como posso ser tão forte em alguns momentos, e tão decepcionantemente frágil em outros? Por último, que tipo de intelectual eu sou, que recebe elogios dos nossos melhores escritores, mas não consegue evitar um sem-fim de burrices que somente um retardado mental cometeria? 

Não terei tempo para isso agora, mas quando eu enfim descrever minhas errâncias, vai ser muito parecido com fazer ficção. Porque, no fundo, eu estive o tempo inteiro me inventando, me criando a partir de páginas brancas. Ninguém ditou minha vida; se alguém encomendou minha história, eu jamais atendi o pedido. Eu me sinto, constantemente, vivendo um romance experimental, onde o personagem atravessa as situações mais diversas, tentando, atordoado, aprender um pouco de tudo. Colocar minhas vivências em texto será apenas ratificação, pois em cada pequena coisa que vivo estou exercitando minha arte.