12.30.2006

Rita de Cássia e a gota d'água

Decidi escrever sobre Rita de Cássia por um motivo: notei que NENHUM órgão de imprensa deu a atenção que o episódio merecia. Assunto um tanto pesado para o final de ano, mas não escolhi data para os acontecimentos.
Aliás, neste ano, tivemos uma notícia atrás da outra com uma coisa em comum: dos ataques do PCC à facada em ACM Neto, da invasão do MLST no Congresso aos ataques recentes no Rio, parece que a reverência – leia-se respeito ou leia-se temor – dos marginalizados perante as figuras de autoridade já não se impõe como limite. Em outras palavras, a estrutura sócio-econômica dá mostras de desgaste, pois há quem não tenha absolutamente nada a perder e demonstra isso em ação. Não se pode ignorar que esses ataques são sintomas da desigualdade social, ou de que a tendência é que a situação piore – como em um efeito dominó, o radicalismo de um inspira o de outros, pois o “tabu” se perde, abre-se precedentes. Não é preciso qualquer aparato ideológico para compreender, basta observar e analisar com sensatez. É perceptível que os detentores de poder já não estão de todo seguros ou que mantenham pleno controle da situação. O quanto o preço a se pagar pela miséria atinge a todos, ricos ou pobres, começa a ficar explícito em 2006, contudo já poderia ter sido adivinhado há muito tempo por qualquer pessoa provida de um mínimo de inteligência e sensibilidade.

Rita de Cássia e a gota d’água

Nem mensalão nem escândalo algum causaram, na história recente, tamanho repúdio por parte dos brasileiros como a tentativa de aumento salarial de 91% dos parlamentares. Não pela anticonstitucionalidade do ato, mas pelo descaramento, pela falta de pudor, pela naturalidade com que os parlamentares demonstram quais são seus interesses primeiros e últimos. Mal terminaram as eleições - aparentemente a única ligação entre a classe política e seus cidadãos - nossos supostos representantes já se sentiram à vontade para agir sem sequer disfarçar seu pouco caso.

Passeata em Brasília, abaixo-assinado na internet, e o mais sincero desgosto nos desabafos de cada um, em toda e qualquer parte do país. No entanto, estranha-me que tão pouca atenção da imprensa tenha tomado o caso de Rita de Cássia Sampaio de Souza que, no último dia 18, apunhalou com uma peixeira o deputado federal Antônio Carlos Magalhães Neto. A notícia foi vinculada, contudo sem qualquer destaque pela televisão ou pela mídia impressa. A meu ver, uma discussão das mais importantes deixou de ganhar o espaço merecido.

Em breve entrevista, Rita afirmou estar “revoltada com a classe política”, o que a teria motivado à tentativa de homicídio. Segundo ela, ACM Neto lhe prometera ajudar a resgatar seu FGTS, que estaria retido, no entanto ele – como era de se esperar? - nada fez. A desilusão da eleitora atingiu o paroxismo com a votação pelo reajuste salarial, e ela não pôde conter seu impulso de se vingar deliberadamente do deputado que um dia lhe conquistou alguma confiança.

À parte qualquer pré-julgamento, a expressão de Rita nos toma de assalto e nos mostra a que conclusões pode chegar o mais instintivo sentimento de revolta. Aparentemente, ela não estava agindo de acordo com nenhuma ideologia contundente, ou lutando em nome de valores acima de seus próprios interesses. Contudo, se a violência de seu ato não se justifica, ao menos é compreensível seu sentimento. Que atire a primeira pedra quem, neste país tão corrompido, nunca teve vontade de assassinar um de nossos políticos. As fantasias não necessariamente precisam ser realizadas, porém, perdoem-me a expressão, será que Rita foi a única a sentir o aumento de 91% como uma verdadeira facada?

É violento o descaso dos políticos, sendo este o ponto que requer atenção. É uma agressão colocarem como prioridade o conforto pessoal com tão pouca cerimônia. A mensagem subentendida é a de que estão governando para si mesmos, atingindo o ponto da tirania, pois sequer a dissimulação se faz necessária. Suas resoluções não condizem com a realidade brasileira, e tamanha é a falta de sensibilidade que não pode ser de todo surpreendente o fato de alguns reagirem tomados por paixão. No caso de Rita, nem heroína nem vilã, fica claro o quão insuportável foi, para ela, sentir-se impotente diante de um cenário que feriu profundamente seu senso de justiça.

Recuemos para 1933, em Le Mans, França. Temos o famoso caso das irmãs Papin, duas impecáveis empregadas domésticas que assassinaram sua patroa em um surto não-premeditado. Foi notável como os existencialistas souberam enxergar o quanto as serviçais, exploradas de maneira despótica pela patroa, não foram apenas as assassinas, mas também vítimas. Simone de Beauvoir registrou: “Somente a violência do crime cometido nos dá uma medida da atrocidade do crime invisível, onde os verdadeiros assassinos ‘apontados’ são os patrões”. A reação das irmãs Papin não teve, a princípio, um cunho político, tendo sido uma reação de ordem afetiva, um descontrole emocional contra um modo de vida desumanizado, injusto, insuportável.

Aos aspectos mais objetivos da política, deve-se acrescentar as percepções subjetivas que os mesmos acarretam, para que tenhamos uma acepção mais ampla de tal palavra. Não me parece equivocado assinalar que o costumeiro paternalismo está caindo por terra, pois já não é capaz de iludir como antigamente. A sensação de abandono e distanciamento por parte dos eleitores é crescente, e começa a assumir novas formas. Há uma carência de programas legítimos na política partidária, e é também uma carência, dessa vez mais íntima e passional, o que eventualmente provoca reações as mais imprevisíveis. Muitos aderiram aos abaixo-assinados e às passeatas, que são as manifestações permitidas pela lei, dentro de um código que chamamos de civilizado. Em casos como o de Rita de Cássia, o que temos é puro pathos, impulso que se desatou, gota d’água inevitável. Não se pode, contudo, dizer que seu gesto não tenha sido resposta a uma agressão.



12.07.2006

O pesadelo orgânico de Janaina Tschäpe


São duas as exposições de Janaina Tschäpe em cartaz na cidade, em plena época de Bienal - exatamente quando todo o mercado de arte de São Paulo atinge sua temperatura máxima. Isso demonstra o prestígio que a artista conquistou no circuito comercial, tendo há muito ultrapassado o rótulo de “esposa de Vik Muniz”. Para além do sucesso mais frívolo, temos, no Paço das Artes e na Galeria Fortes Vilaça, boas oportunidades para averiguar se seu trabalho possui tanta força quanto a reputação que vem conquistando.
A foto e o vídeo dominam o Paço das Artes, retrospectiva com várias etapas de sua obra; na Galeria Fortes Vilaça, são enormes aquarelas, seus trabalhos mais recentes, que dão cor à exposição. Não é de se estranhar a variedade de linguagens empregadas: há uma evidente inspiração pictórica em suas fotografias, e, nas pinturas, a busca pela mesma ambientação insólita de trabalhos anteriores. Em suas próprias palavras, sua aventura é a de “retratar não o mundo dos sonhos, mas a sensação de estar em um.” Esses sonhos, na maior parte das vezes, são perturbadores, muitas vezes representando o corpo como uma moradia bizarra. Bolhas, bexigas e tentáculos de borracha presos aos modelos, fazem com que seus corpos, contraditoriamente, pareçam a um mesmo tempo pesados e leves. Pesados: os movimentos são torpes e lentos, lutam contra a gravidade da terra ou contra a água; leves: porque coloridos e plenos de ar.
Janaina Tschäpe assume desde o nome uma identidade um tanto deslocada. O “Tschäpe” denota sua origem alemã, e “Janaina” revela brasilidade. O racionalismo e a precisão típica de um país, e a paixão e visceralidade de outro se confluem em perfeita harmonia, numa obra que diz respeito a lugares e tempos mais íntimos que as demarcações de fronteira. As flores e frutos de sua série "Botanica" não compõem o cenário de uma floresta tropical. São alucinações fotografadas, em que as cores vibram intensamente: azuis, vermelhos, laranjas e verdes impossíveis, incandescentes. Os modelos humanos de 'Melantropics" não desbravam a mata; caminham dentro de sonhos, deixando-se deformar pelo ambiente. Brincando de deus, Janaina converte as leis da natureza em uma espécie de pesadelo orgânico.
A literatura, pode-se notar, influencia a obra da artista. Nota-se uma qualidade narrativa mesmo nas fotografias, enganosamente estáticas. Seus modelos são mais propriamente personagens que outra coisa, incitam-nos a imaginar de que mundo fantástico poderiam ter surgido. Romantismo gótico alemão, Novalis e Borges inspiraram a atmosfera melancólica de alguns dos trabalhos, como nos belíssimos "He drowned herself as she called him to follow", "Blood, sea" e "Lacrimacorpus". Uma de suas séries chama-se "Água viva', como o livro homônimo de Clarice Lispector. Há semelhanças entre estas duas: o fascínio pelo insólito, o estranhamento diante dos detalhes, o poder de síntese, e a aproximação entre animalesco e divino no ser humano.