9.27.2006

Menino

Escrevi esse texto assim que terminei de ler a tese de mestrado da minha mãe, a psicanalista Márcia Porto Ferreira - o título é "Crianças que não conseguem esquecer" - sobre menores abandonados.

Eu voltava a pé do bistrô, contente, de alma leve. Barriga forrada de bons petiscos, o humor maravilhosamente leviano, desentendido de pesos e amarguras. Eu e um par de meus melhores amigos rimos a noite inteira, contando mil casos e piadas, sem qualquer censura. Às quatro da manhã saímos à rua, e me ofereceram carona, mas eu preferi caminhar. Em momentos de pura jovialidade, não dispenso o ar livre. Eu era apenas mais um boêmio, acompanhava com a vista o esvaziamento gradativo dos bares. Ainda se ouvia cerveja descendo nos copos, tilintares de vidro, e alegria nas vozes altas, ébrias, dos que não iriam parar de celebrar antes do raiar do sol. Eu gingava satisfeito, ruminando minha fartura, meu hálito de bom vinho, o rosto relaxado de tanto rir... Gostaria que essa carta fosse tão alegre como começou, mas foi terrivelmente triste o que vi em seguida.

Próximo à ladeira, no gelado da noite, um menino abandonado. Tremendo, aflito. Tinha por volta de dois anos de idade, não muito mais. Chamava por uma mãe que não estava ali para ouvi-lo. Não estou certo de conseguir expressar o quão desprotegido percebi aquele garoto... Não creio que ele entendesse inteiramente o que quer que houvesse lhe acontecido. Um menino de fraldas, perninhas gordas expostas ao vento, mal protegido de toda a maldade adulta que estalava em cada fresta, em cada sombra.

Eu me aproximei lentamente. Ele não percebia meus movimentos, seu rosto virado contra o muro. Era como se bastasse não enxergar a cidade, olhar para uma parede qualquer, e a cidade também não o enxergaria. Ele era criança o bastante para esse pequeno delírio, a fantasia de que fechar os olhos equivale a fechar o mundo. Cheguei um pouquinho mais perto, vi que ele estava chorando. Realizava algum faz-de-conta, gestos repetidos com as mãos, e balbucios que eram suas palavras mágicas. Mesmo assim, ele não sabia onde encaixar o abandono da mãe em seu ritual. Até mesmo porque, não há nada que pudesse substituir a ausência da mãe.

Chamei a polícia, fiquei ao lado do garoto até chegarem. Apenas fiquei assistindo, sem falar com ele. Ao seu lado, me assegurei de que ninguém iria machucá-lo. Mas eu não sabia que carinho lhe dar, achei que talvez se assustasse comigo, saísse correndo, sumisse. Então esperei por dez minutos até a viatura chegar, e durante todo esse tempo o menino sequer percebeu que eu estava ali.

Me dói um pouco lembrar do grito que ele deu quando enfim o guarda chegou. Com certo cuidado, porém de um profissionalismo enojante, o policial o ergueu sem perda de tempo pela cintura e o levou ao carro. O menino se debatia, e o guarda fazia sshhhhhh, em vão querendo acalmá-lo.

Penso que eu deveria ter me envolvido um pouco mais. Não acompanhei o policial quando ele partiu, apenas respondi às suas três ou quatro perguntas que me endereçou antes de me dispensar. Mas eu poderia ter ido um pouco além, ao menos descobrir em que abrigo o garoto passou o resto da noite, ou me manter informado quanto ao que se passou nos dias subseqüentes. Mas não sei nada, não procurei saber. Nem sequer se sua mãe está viva, ou o estado de saúde dele, ou se sabem seu nome. Não fiz. Nada.

Porque é terrível demais. Não quero me identificar com uma história de tamanho abandono. Triste demais para mim, vocês nem sabem. Não pensem que eu não senti nada; eu tentei e não pude. Tentei, sim, falar com o menino, eu gostaria de lhe presentear com um pouco de atenção, dar ao menos uma voz melodiosa para ele ouvir. Alguém precisava falar com ternuras, ele é uma criança, um menino daquela idade precisa de um mínimo de doçura, de esperança mesmo. Alguma coisa tranquilizante, titiritititi-ti, sussega minino bonito, tudo vai ficar bem, prometo pra você, titiritititi-ti, sussega, sussega, sussussussussega. Ou fazer uns carinhos na cabeça, ou dar um pouco de colo e balançar, ou apenas exibir um sorriso amistoso.

Mas não consegui. Por um lado porque perdi minha inocência de modo muito brutal e já faz tempo. Não consigo mais realizar sequer a mímese de uma ilusão-infantil, por mais que isso me pareça triste e severo. Não consigo, está além das minhas forças. E por outro lado... senti que se eu desse um pedaço do meu coração para aquele menino, que tanto precisava, eu perceberia o quanto estou parecido com ele. O quanto, por trás das risadas e das aparências, estou tão sozinho como um menino frágil que chora, que precisa de um calor que nem mesmo sua mãe pôde dar.

Ah. Não... Eu não queria chorar.

9.25.2006

Gaia

Às vezes sinto como se meu pau
fosse do tamanho de um continente
e sem me queimar eu pudesse
abraçar o planeta
penetrar

o centro quente

Então sei o quanto quero este suor
de corpo bem perto
tão junto que me adentre
Como se fosses a própria Gaia
de louca magia extensa

Respire fundo, agora
eu te ensino
a sentir

cada veia como um rio
cada pêlo como vida
cada gemido um furacão

Nada mais quero na terra
do que teus tremores
teus morros, mares e amores
Lamber o sal de teus desertos
Vencer o frio de tuas geleiras
Prolongar-me em tuas florestas
E invadir-te subterrâneo

Venha mais perto
Venha magma vibrante fervente
Venha selva de desejos que transpire
Venha rajada de vento e maré alta
que com lampejos de paixão me arruíne

Ninguém mais do que eu
é o altivo conquistador exilado
que anseia como ao mundo
pela graciosa tempestade
caindo de mim sobre teu colo

E o tremor vulcânico

de teus espasmos



Ivan Hegenberg, 2005.